Soneto XXII
Ao mesmo
Rico Almazém, que Deus estima e preza,
Mais forte que o poder do inferno forte,
Bem te armas de ua morte e de outra morte,
Para qualquer encontro e brava empresa.Arma-se o fraco cá de fortaleza
Para que assi resista ao duro corte;
Mas Deus sempre peleja d’outra sorte,
Cobrindo o forte de mortal fraqueza.Usou c’o inferno deste prĂłprio modo,
Iscando o anzol da natureza sua
Co’ a nossa; e foi-se o pece trás o engano.E co’ as armas da carne rota e nua
Dos Mártires venceu o mundo todo,
Hoje em ti as põem para socorro humano.
Sonetos sobre Sempre
313 resultadosPresença
SĂł saberei de ti pelos teus olhos,
que falam mais que a tua fala pouca.
Doce memĂłria (irei buscar-te sempre)
encilhada a essa égua dos minutos,onde os ponteiros trotam meus desejos,
avivando a paisagem na lembrança
vinda de ti, e em mim reconstruĂda.
Essa presença, em passos e pegadas,passeia no meu corpo, agora estrada,
caminho teu; submisso, eis meu segredo.
Que abrigar teus pés, possa, novamente,o meu sereno peito fatigado.
Este que anseia teu corpo presente
olho no olho na véspera do gozo.
A umas Lágrimas de uma Despedida
Quando de ambos os céus caindo estava
O rico orvalho, em pérolas formado,
E sobre as frescas rosas derramado,
Igual beleza recebia e dava.Amor que sempre ali presente estava,
Como competidor de meu cuidado,
Num vaso de cristal de ouro lavrado
As gotas uma a uma entesourava.Eu, c’os olhos na luz, que aquele dia,
Entre as nuvens do novo sentimento,
Escassamente os raios descobria,Se me matar (dizia) apartamento,
Ao menos não fará que esta alegria
NĂŁo seja paga igual de meu tormento.
Soneto XXXIIII
Buscando ando ventura e nĂŁo dou nela,
A tudo sĂł por ela me aventuro,
Mas por mais que acho tudo, em vĂŁo procuro
Que só de tudo, em tudo me falta ela.Se para vê-la velo, também vela
E vai de mim fugindo pelo escuro,
Eu pelo escuro a sigo assaz seguro
Como quem a não tem para perdê-la.Mas ai, que digo, como não conheço
A ventura que sem ventura alcanço,
Que mor ventura que não ter ventura.Fora ventura então de pouco preço
E tempo, mas faltando a meu descanso,
Achei ventura em vĂłs, que sempre dura.
Cara Minha Inimiga
Cara minha inimiga, em cuja mĂŁo
PĂ´s meus contentamentos a ventura,
Faltou-te a ti na terra sepultura,
Por que me falte a mim consolação.Eternamente as águas lograrão
A tua peregrina formosura:
Mas enquanto me a mim a vida dura,
Sempre viva em minha alma te acharĂŁo.E, se meus rudos versos podem tanto,
Que possam prometer-te longa histĂłria
Daquele amor tão puro e verdadeiro,Celebrada serás sempre em meu canto:
Porque, enquanto no mundo houver memĂłria,
Será a minha escritura o teu letreiro.
Às Cambalhotas Sempre Anda a Través
Às cambalhotas sempre anda a través
O Mundo, sem poder-se endireitar.
Velho, bĂŞbado e tonto, a cambalear,
Já não pode suster-se sobre os pés.Tudo nele se vê hoje de invés
Pois seu eixo quebrou, anda a rolar
Não há homem que o possa consertar:
SĂł se for, do Arquitecto a mĂŁo que o fez.Tornou-se num piĂŁo: qualquer rapaz
O faz dar quatro voltas c’um cordel
E na palma da mão dançar o faz.O que hoje fez de grande o seu papel,
Amanhã representa de Gil Blás
Neste imenso teatro de Babel.
IV – Sempre O Brasil
Nunca noite dormi tĂŁo sossegado,
Quem nem mesmo sonhei com o meu Brasil,
PorĂ©m, vendo infinito mar d’anil,
Lembra-me a aurora dele nacarada.Cada dia que passa nĂŁo Ă© nada,
E os que faltam parecem mais de mil.
Se o tempo que lá vivo é um ceitil,
Aqui é para mim grande massada.E a doença porém me consentir,
Sempre pensando nele, cuidarei
De tornar-me mais digno de o servir,E, quando possa, logo voltarei;
Pois na terra sĂł quero eu existir
Quando Ă© para bem dele que eu o sei.
Carta
Aqui, tudo Ă© bonito e quieto, a gente
vai vivendo uma vida sempre igual…
– Há um dia que o regato de cristal
de águas turvas ficou devido Ă enchente…Os dias tĂŞm passado, lentamente,
e um tédio sinto em mim, de um modo tal,
que às vezes, fico até sentimental,
lembrando-me de ti, saudosamente…Quando estavas aqui, – tudo era lindo…
Como um doce casal de beija-flores,
vivĂamos os dois sempre sorrindo…Por que nĂŁo voltas?… Vem!… – Se tu voltares
o cĂ©u há de cobrir-se de outras cores…
– as flores voltarĂŁo pelos pomares!..
Senhora minha, se de pura inveja
Senhora minha, se de pura inveja
Amor me tolhe a vista delicada,
A cor, de rosa e neve semeada,
E dos olhos a luz que o Sol deseja,NĂŁo me pode tolher que vos nĂŁo veja
Nesta alma, que ele mesmo vos tem dada,
Onde vos terei sempre debuxada,
Por mais cruel inimigo que me seja.Nela vos vejo, e vejo que nĂŁo nasce
Em belo e fresco prado deleitoso
SenĂŁo flor que dá cheiro a toda a serra.Os lĂrios tendes nu~a e noutra face.
Ditoso quem vos vir, mas mais ditoso
Quem os tiver, se há tanto bem na terra!
Aquela FĂ© TĂŁo Clara E Verdadeira
Aquela fé tão clara e verdadeira,
A vontade tão limpa e tão sem mágoa,
Tantas vezes provada em viva frágua
De fogo, i apurada, e sempre inteira;Aquela confiança, de maneira
Que encheu de fogo o peito, os olhos de água,
Por que eu ledo passei por tanta mágoa,
Culpa primeira minha e derradeira,De que me aproveitou? NĂŁo de al por certo
Que dum sĂł nome tĂŁo leve e tĂŁo vĂŁo,
Custoso ao rosto, tĂŁo custoso Ă vida.Dei de mim que falar ao longe e ao perto;
E já assi se consola a alma perdida,
Se nĂŁo achar piedade, ache perdĂŁo.
Uma Palavra
Meu canto busca sempre uma palavra
que seja companheira na canção
da minha voz que canta e se declara:
viver a vida inteira de emoção.Uma palavra só não se prepara
puxando outra palavra sem razĂŁo
na vida que se encanta e se dispara
no claro tiro cego de paixĂŁo.Viver a arte que procura ver
os lábios desbotados da linguagem
deixando a claridade me envolverno sopro que me leva na paisagem
amaciando a pena ao escrever
teu nome, meu amor, minha viagem
Ars De Eros
Enquanto vias vi fĂ´rmas e formas
mas sabia que vinhas ver os versos
depois de veres várias folhas mortas
desse outono jardim nosso em regressos.NĂŁo adianta rosnar pantera morna
o tempo rasga sempre um vento espesso
embora nĂŁo queiramos ser da horta
estrume de um adubo tĂŁo perverso,E nĂŁo me venha viĂşva simbolista
reclamar dos poemas tĂŁo transgressos
pois te mostro a visĂŁo livre e anarquista.Se Ă© para ver que venha entĂŁo diverso
o modo de te amar mais tribalista
que morro nesse clĂmax dos possessos.
Enterro de Ophelia
Morreu, Vae a dormir, vae a sonhar… Deixal-a!
(Fallae baixinho: agora mesmo se ficou…)
Como padres orando, os choupos formam ala,
Nas margens do ribeiro onde ella se afogou…Toda de branco vae, n’esse habito de opala,
Para um convento: nĂŁo o que o Hamlet lhe indicou,
Mas para um outro, horror! que tem por nome Valla,
D’onde jamais saiu quem, lá, uma vez entrou!…O lindo Por-do-Sol, que era doido por ella,
Que a perseguia sempre, em palacio e na rua,
Vede-o, coitado! mal pode suster a vela…Como damas de honor, nymphas seguem-lhe os rastros,
E, assomando no céu, sua Madrinha, a Lua,
Por ella vae desfiando as suas contas, Astros!
Inverno
Amanheceu – no topo da colina
Um céu de madrepérola se arqueia
Limpo, lavado, reluzindo – ondeia
O perfume da selva esmeraldina.Uma luz virginal e cristalina,
Como de um rio a transbordante cheia,
Alaga as terras culturais e arreia
De pingos d’ouro os verdes da campina.Um sol pagĂŁo, de um louro gema d’ovo,
Já tão antigo e quase sempre novo
Surge na frĂgida estação do inverno.– Chilreiam muito em árvores frondosas
Pássaros – fulge o orvalho pelas rosas
Como o vigor no espĂrito moderno.
Linda InĂŞs
Choram ainda a tua morte escura
Aquelas que chorando a memoraram;
As lágrimas choradas não secaram
Nos saudosos campos da ternura.Santa entre as santas pela má ventura,
Rainha, mais que todas que reinaram;
Amada, os teus amores nĂŁo passaram
E Ă©s sempre bela e viva e loira e pura.Ă“ Linda, sonha aĂ, posta em sossĂŞgo
No teu muymento de alva pedra fina,
Como outrora na Fonte do Mondego.Dorme, sombra de graça e de saudade,
Colo de Garça, amor, moça menina,
Bem-amada por toda a eternidade!
Variação Sobre Um Soneto De Shakespeare
És como um dia cálido de estio…
Azul? Não, és mais linda e mais amena
O verĂŁo como tudo traz o frio
E o verĂŁo Ă© inconstante, e tu serena.Tu nĂŁo trazes o frio, nem a pena
Da luz foste – tu vives, como um rio
Que cantasse uma mesma cantilena
Num sempre novo manso desvario.NĂŁo morre o estio em ti – e no teu rosto
Ele deixou as cores da manhĂŁ
E as tristezas suaves do sol-posto.Sem as marcas cruéis da noite vã.
E a morte que em ser também se deita
Em tua alma descansa satisfeita.
Toada Para Solo De Ocarina
Fio tênue do céu em claridade
tece esse manto gris meu agasalho
colhido pelos muros da cidade:
mucosa verde musgo que se espalhacomo tapete denso em chĂŁo de jade
Meus pés de crivo cravam esse atalho
riscando seu grafite no mar que arde
o fogo-de-santelmo em céu talhadoNesse caminho caio em minha sina
caio no mar que lava essa lavoura
num barco ébrio que sempre desafinaE colho o sal da noite a lua moura
crescente luz de foice me assassina
e me morro no haxixe com Rimbaud
X
Hirta e branca… Repousa a sua áurea cabeça
Numa almofada de cetim bordada em lĂrios.
Ei-la morta afinal como quem adormeça
Aqui para sofrer AlĂ©m novos martĂrios.De mĂŁos postas, num sonho ausente, a sombra espessa
Do seu corpo escurece a luz dos quatro cĂrios:
Ela faz-me pensar numa ancestral Condessa
Da Idade MĂ©dia, morta em sagrados delĂrios.Os poentes sepulcrais do extremo desengano
VĂŁo enchendo de luto as paredes vazias,
E velam para sempre o seu olhar humano.Expira, ao longe, o vento, e o luar, longinquamente,
Alveja, embalsamando as brancas agonias
Na sonolenta paz desta Câmara-ardente…
Saudade do Teu Corpo
Tenho saudades do teu corpo: ouviste
correr-te toda a carne e toda a alma
o meu desejo – como um anjo triste
que enlaça nuvens pela noite calma?…Anda a saudade do teu corpo (sentes?…)
Sempre comigo: deita-se ao meu lado,
dizendo e redizendo que nĂŁo mentes
quando me escreves: «vem, meu todo amado…ȃ o teu corpo em sombra esta saudade…
Beijo-lhe as mãos, os pés, os seios-sombra:
a luz do seu olhar Ă© escuridade…Fecho os olhos ao sol para estar contigo.
É de noite este corpo que me assombra…
VĂŞs?! A saudade Ă© um escultor antigo!
O Remorso
Cometi o pior desses pecados
Que podem cometer-se. NĂŁo fui sendo
Feliz. Que os glaciares do esquecimento
Me arrastem e me percam, despiedados.Plos meus pais fui gerado para o jogo
Arriscado e tĂŁo belo que Ă© a vida,
Para a terra e a água, o ar, o fogo.
Defraudei-os. NĂŁo fui feliz. CumpridaNĂŁo foi sua vontade. A minha mente
Aplicou-se às simétricas porfias
Da arte, que entretece ninharias.Valentia eu herdei. NĂŁo fui valente.
Não me abandona. Está sempre ao meu lado
A sombra de ter sido um desgraçado.Tradução de Fernando Pinto do Amaral