Sonetos sobre Sonhos de Antero de Quental

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Sonetos de sonhos de Antero de Quental. Leia este e outros sonetos de Antero de Quental em Poetris.

Sonho

Sonhei – nem sempre o sonho é coisa vã –
Que um vento me levava arrebatado,
Através desse espaço constelado
Onde uma aurora eterna ri louçã…

As estrelas, que guardam a manhĂŁ,
Ao verem-me passar triste e calado,
Olhavam-me e diziam com cuidado:
Onde está, pobre amigo, a nossa irmã?

Mas eu baixava os olhos, receoso
Que traíssem as grandes mágoas minhas,
E passava furtivo e silencioso,

Nem ousava contar-lhes, Ă s estrelas,
Contar Ă s tuas puras irmĂŁzinhas
Quanto és falsa, meu bem, e indigna delas!

Aparição

Um dia, meu amor (e talvez cedo,
Que já sinto estalar-me o coração!)
Recordarás com dor e compaixão
As ternas juras que te fiz a medo…

EntĂŁo, da casta alcova no segredo,
Da lamparina ao trémulo clarão,
Ante ti surgirei, espectro vĂŁo,
Larva fugida ao sepulcral degredo…

E tu, meu anjo, ao ver-me, entre gemidos
E aflitos ais, estenderás os braços
Tentando segurar-te aos meus vestidos…

— «Ouve! espera!» — Mas eu, sem te escutar,
Fugirei, como um sonho, aos teus abraços
E como fumo sumir-me-ei no ar!

A Germano Meireles

SĂł males sĂŁo reais, sĂł dor existe:
Prazeres sĂł os gera a fantasia;
Em nada[, um] imaginar, o bem consiste,
Anda o mal em cada hora e instante e dia.

Se buscamos o que Ă©, o que devia
Por natureza ser nĂŁo nos assiste;
Se fiamos num bem, que a mente cria,
Que outro remédio há [aí] senão ser triste?

Oh! Quem tanto pudera que passasse
A vida em sonhos só. E nada vira…
Mas, no que se nĂŁo vĂŞ, labor perdido!

Quem fora tão ditoso que olvidasse…
Mas nem seu mal com ele entĂŁo dormira,
Que sempre o mal pior Ă© ter nascido!

Nocturno

EspĂ­rito que passas, quando o vento
Adormece no mar e surge a Lua,
Filho esquivo da noite que flutua,
Tu só entendes bem o meu tormento…

Como um canto longínquo – triste e lento-
Que voga e subtilmente se insinua,
Sobre o meu coração que tumultua,
Tu vestes pouco a pouco o esquecimento…

A ti confio o sonho em que me leva
Um instinto de luz, rompendo a treva,
Buscando, entre visões, o eterno Bem.

E tu entendes o meu mal sem nome,
A febre de Ideal, que me consome,
Tu só, Génio da Noite, e mais ninguém!

Lacrimae Rerum

Noite, irmĂŁ da RazĂŁo e irmĂŁ da Morte,
Quantas vezes tenho eu interrogado
Teu verbo, teu oráculo sagrado,
Confidente e intérprete da Sorte!

Aonde sĂŁo teus sĂłis, como corte
De almas inquietas, que conduz o Fado?
E o homem porque vaga desolado
E em vĂŁo busca a certeza que o conforte?

Mas, na pompa de imenso funeral,
Muda, a noite, sinistra e triunfal,
Passa volvendo as horas vagarosas…

É tudo, em torno a mim, dúvida e luto;
E, perdido num sonho imenso, escuto
O suspiro das coisas tenebrosas…

Voz Interior

(A JoĂŁo de Deus)

Embebido n’um sonho doloroso,
Que atravessam fantásticos clarões,
Tropeçando n’um povo de visões,
Se agita meu pensar tumultuoso…

Com um bramir de mar tempestuoso
Que até aos céus arroja os seus cachões,
Através d’uma luz de exalações,
Rodeia-me o Universo monstruoso…

Um ai sem termo, um trágico gemido
Ecoa sem cessar ao meu ouvido,
Com horrível, monótono vaivém…

Só no meu coração, que sondo e meço,
Não sei que voz, que eu mesmo desconheço,
Em segredo protesta e afirma o Bem!

Contemplação

Sonho de olhos abertos, caminhando
Não entre as formas já e as aparências,
Mas vendo a face imĂłvel das essĂŞncias,
Entre idéias e espíritos pairando…

Que Ă© o mundo ante mim? fumo ondeando,
Visões sem ser, fragmentos de existências…
Uma névoa de enganos e impotências
Sobre vácuo insondável rastejando…

E d’entre a névoa e a sombra universais
Só me chega um murmúrio, feito de ais…
É a queixa, o profundíssimo gemido

Das coisas, que procuram cegamente
Na sua noite e dolorosamente
Outra luz, outro fim só presentido…