Sonetos sobre Sorte de Manuel Maria Barbosa du Bocage

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Sonetos de sorte de Manuel Maria Barbosa du Bocage. Leia este e outros sonetos de Manuel Maria Barbosa du Bocage em Poetris.

Quantas vezes, Amor, me tens ferido?

Quantas vezes, Amor, me tens ferido?
Quantas vezes, RazĂŁo, me tens curado?
QuĂŁo fĂĄcil de um estado a outro estado
O mortal sem querer Ă© conduzido!

Tal, que em grau venerando, alto e luzido,
Como que até regia a mão do fado,
Onde o Sol, bem de todos, lhe Ă© vedado,
Depois com ferros vis se vĂȘ cingido:

Para que o nosso orgulho as asas corte,
Que variedade inclui esta medida,
Este intervalo da existĂȘncia Ă  morte!

Travam-se gosto, e dor; sossego e lida;
É lei da natureza, Ă© lei da sorte,
Que seja o mal e o bem matiz da vida.

Eu Deliro, GertrĂșria, eu Desespero

Eu deliro, GertrĂșria, eu desespero
No inferno de suspeitas e temores.
Eu da morte as angĂșstias e os horrores
Por mil vezes sem morrer tolero.

Pelo CĂ©u, por teus olhos te assevero
Que ferve esta alma em cĂąndidos amores;
Longe o prazer de ilĂ­citos favores!
Quero o teu coração, mais nada quero.

Ah! não sejas também qual é comigo
A cega divindade, a Sorte dura.
A vĂĄria Deusa, que me nega abrigo!

Tudo perdi: mas valha-me a ternura
Amor me valha, e pague-me contigo
Os roubos que me faz a mĂĄ ventura.

Ó tu, consolador dos malfadados

Ó tu, consolador dos malfadados,
Ó tu, benigno dom da mão divina,
Das mĂĄgoas saborosa medicina,
Tranquilo esquecimento dos cuidados:

Aos olhos meus, de prantear cansados,
Cansados de velar, teu voo inclina;
E vĂłs, sonhos d’amor, trazei-me Alcina,
Dai-me a doce visĂŁo de seus agrados:

Filha das trevas, frouxa sonolĂȘncia,
Dos gostos entre o férvido transporte
Quanto me foi suave a tua ausĂȘncia!

Ah!, findou para mim tĂŁo leda sorte;
Agora Ă© sĂł feliz minha existĂȘncia
No mudo estado, que arremeda a morte.

CamÔes, Grande CamÔes, quão Semelhante

CamÔes, grande CamÔes, quão semelhante
Acho teu fado ao meu, quando os cotejo!
Igual causa nos fez, perdendo o Tejo,
Arrostar co’o sacrĂ­lego gigante;

Como tu, junto ao Ganges sussurrante,
Da penĂșria cruel no horror me vejo;
Como tu, gostos vĂŁos, que em vĂŁo desejo,
Também carpindo estou, saudoso amante.

LudĂ­brio, como tu, da Sorte dura
Meu fim demando ao CĂ©u, pela certeza
De que sĂł terei paz na sepultura.

Modelo meu tu Ă©s, mas… oh, tristeza!…
Se te imito nos transes da Ventura,
NĂŁo te imito nos dons da Natureza.

Já Sobre o Coche de Ébano Estrelado

JĂĄ sobre o coche de Ă©bano estrelado,
Deu meio giro a Noite escura e feia,
Que profundo silĂȘncio me rodeia
Neste deserto bosque, Ă  luz vedado!

Jaz entre as folhas ZĂ©firo abafado,
O Tejo adormeceu na lisa areia;
Nem o mavioso rouxinol gorjeia,
Nem pia o mocho, Ă s trevas acostumado.

SĂł eu velo, sĂł eu, pedindo Ă  Sorte
Que o fio com que estĂĄ mih’alma presa
À vil matĂ©ria lĂąnguida, me corte.

Consola-me este horror, esta tristeza,
Porque a meus olhos se afigura a Morte
No silĂȘncio total da Natureza.

Fiei-me nos Sorrisos da Ventura

Fiei-me nos sorrisos da ventura,
Em mimos feminis, como fui louco!
Vi raiar o prazer; porém tão pouco
MomentĂąneo relĂąmpago nĂŁo dura:

No meio agora desta selva escura,
Dentro deste penedo hĂșmido e ouco,
Pareço, atĂ© no tom lĂșgubre, e rouco
Triste sombra a carpir na sepultura:

Que estĂąncia para mim tĂŁo prĂłpria Ă© esta!
Causais-me um doce, e fĂșnebre transporte,
Áridos matos, lÎbrega floresta!

Ah! nĂŁo me roubou tudo a negra sorte:
Inda tenho este abrigo, inda me resta
O pranto, a queixa, a solidĂŁo e a morte.

Em SĂłrdida Masmorra Aferrolhado

Em sĂłrdida masmorra aferrolhado,
De cadeias aspérrimas cingido,
Por ferozes contrĂĄrios perseguido,
Por lĂ­nguas impostoras criminado:

Os membros quase nus, o aspecto honrado
Por vil boca, e vil mĂŁo roto, e cuspido,
Sem ver um sĂł mortal compadecido
De seu funesto, rigoroso estado:

O penetrante, o bĂĄrbaro instrumento
De atroz, violenta, inevitĂĄvel morte
Olhando jĂĄ na mĂŁo do algoz cruento:

Inda assim, nĂŁo maldiz a inĂ­qua sorte
Inda assim tem prazer, sossego, alento,
O sĂĄbio verdadeiro, o justo, o forte.

Em louvor do grande CamÔes

Sobre os contrĂĄrios o terror e a morte
Dardeje embora Aquiles denodado,
Ou no rĂĄpido carro ensanguentado
Leve arrastos sem vida o Teuco forte:

Embora o bravo MacedĂłnio corte
Coa fulminante espada o nĂł fadado,
Que eu de mais nobre estĂ­mulo tocado,
Nem lhe amo a glĂłria, nem lhe invejo a sorte:

Invejo-te, CamÔes, o nome honroso;
Da mente criadora o sacro lume,
Que exprime as fĂșrias de Lieu raivoso:

Os ais de InĂȘs, de VĂ©nus o queixume,
As pragas do gigante proceloso,
O cĂ©u de Amor, o inferno do CiĂșme.

Eu Me Ausento de Ti, Meu PĂĄtrio Sado

Eu me ausento de ti, meu pĂĄtrio Sado,
Mansa corrente deleitos, amena,
Em cuja praia o nome de Filena
Mil vezes tenho escrito, e mil beijado:

Nunca mais me verĂĄs entre o meu gado
Soprando a namorada e branda avena,
A cujo som descias mais serena,
Mais vagarosa para o mar salgado:

Devo enfim manejar por lei da sorte
Cajados nĂŁo, mortĂ­feros alfanges
Nos campos do colérico Mavorte;

E talvez entre impĂĄvidas falanges
Testemunhas farei da minha morte
Remotas margens, que humedece o Ganjes.