Quantas vezes, Amor, me tens ferido?
Quantas vezes, Amor, me tens ferido?
Quantas vezes, RazĂŁo, me tens curado?
QuĂŁo fĂĄcil de um estado a outro estado
O mortal sem querer Ă© conduzido!Tal, que em grau venerando, alto e luzido,
Como que até regia a mão do fado,
Onde o Sol, bem de todos, lhe Ă© vedado,
Depois com ferros vis se vĂȘ cingido:Para que o nosso orgulho as asas corte,
Que variedade inclui esta medida,
Este intervalo da existĂȘncia Ă morte!Travam-se gosto, e dor; sossego e lida;
Ă lei da natureza, Ă© lei da sorte,
Que seja o mal e o bem matiz da vida.
Sonetos sobre Sorte de Manuel Maria Barbosa du Bocage
9 resultadosEu Deliro, GertrĂșria, eu Desespero
Eu deliro, GertrĂșria, eu desespero
No inferno de suspeitas e temores.
Eu da morte as angĂșstias e os horrores
Por mil vezes sem morrer tolero.Pelo CĂ©u, por teus olhos te assevero
Que ferve esta alma em cĂąndidos amores;
Longe o prazer de ilĂcitos favores!
Quero o teu coração, mais nada quero.Ah! não sejas também qual é comigo
A cega divindade, a Sorte dura.
A vĂĄria Deusa, que me nega abrigo!Tudo perdi: mas valha-me a ternura
Amor me valha, e pague-me contigo
Os roubos que me faz a mĂĄ ventura.
Ă tu, consolador dos malfadados
Ă tu, consolador dos malfadados,
Ă tu, benigno dom da mĂŁo divina,
Das mĂĄgoas saborosa medicina,
Tranquilo esquecimento dos cuidados:Aos olhos meus, de prantear cansados,
Cansados de velar, teu voo inclina;
E vĂłs, sonhos d’amor, trazei-me Alcina,
Dai-me a doce visĂŁo de seus agrados:Filha das trevas, frouxa sonolĂȘncia,
Dos gostos entre o férvido transporte
Quanto me foi suave a tua ausĂȘncia!Ah!, findou para mim tĂŁo leda sorte;
Agora Ă© sĂł feliz minha existĂȘncia
No mudo estado, que arremeda a morte.
CamÔes, Grande CamÔes, quão Semelhante
CamÔes, grande CamÔes, quão semelhante
Acho teu fado ao meu, quando os cotejo!
Igual causa nos fez, perdendo o Tejo,
Arrostar co’o sacrĂlego gigante;Como tu, junto ao Ganges sussurrante,
Da penĂșria cruel no horror me vejo;
Como tu, gostos vĂŁos, que em vĂŁo desejo,
TambĂ©m carpindo estou, saudoso amante.LudĂbrio, como tu, da Sorte dura
Meu fim demando ao CĂ©u, pela certeza
De que sĂł terei paz na sepultura.Modelo meu tu Ă©s, mas… oh, tristeza!…
Se te imito nos transes da Ventura,
NĂŁo te imito nos dons da Natureza.
JĂĄ Sobre o Coche de Ăbano Estrelado
JĂĄ sobre o coche de Ă©bano estrelado,
Deu meio giro a Noite escura e feia,
Que profundo silĂȘncio me rodeia
Neste deserto bosque, Ă luz vedado!Jaz entre as folhas ZĂ©firo abafado,
O Tejo adormeceu na lisa areia;
Nem o mavioso rouxinol gorjeia,
Nem pia o mocho, Ă s trevas acostumado.SĂł eu velo, sĂł eu, pedindo Ă Sorte
Que o fio com que estĂĄ mih’alma presa
à vil matéria lùnguida, me corte.Consola-me este horror, esta tristeza,
Porque a meus olhos se afigura a Morte
No silĂȘncio total da Natureza.
Fiei-me nos Sorrisos da Ventura
Fiei-me nos sorrisos da ventura,
Em mimos feminis, como fui louco!
Vi raiar o prazer; porém tão pouco
MomentĂąneo relĂąmpago nĂŁo dura:No meio agora desta selva escura,
Dentro deste penedo hĂșmido e ouco,
Pareço, atĂ© no tom lĂșgubre, e rouco
Triste sombra a carpir na sepultura:Que estĂąncia para mim tĂŁo prĂłpria Ă© esta!
Causais-me um doce, e fĂșnebre transporte,
Ăridos matos, lĂŽbrega floresta!Ah! nĂŁo me roubou tudo a negra sorte:
Inda tenho este abrigo, inda me resta
O pranto, a queixa, a solidĂŁo e a morte.
Em SĂłrdida Masmorra Aferrolhado
Em sĂłrdida masmorra aferrolhado,
De cadeias aspérrimas cingido,
Por ferozes contrĂĄrios perseguido,
Por lĂnguas impostoras criminado:Os membros quase nus, o aspecto honrado
Por vil boca, e vil mĂŁo roto, e cuspido,
Sem ver um sĂł mortal compadecido
De seu funesto, rigoroso estado:O penetrante, o bĂĄrbaro instrumento
De atroz, violenta, inevitĂĄvel morte
Olhando jĂĄ na mĂŁo do algoz cruento:Inda assim, nĂŁo maldiz a inĂqua sorte
Inda assim tem prazer, sossego, alento,
O sĂĄbio verdadeiro, o justo, o forte.
Em louvor do grande CamÔes
Sobre os contrĂĄrios o terror e a morte
Dardeje embora Aquiles denodado,
Ou no rĂĄpido carro ensanguentado
Leve arrastos sem vida o Teuco forte:Embora o bravo MacedĂłnio corte
Coa fulminante espada o nĂł fadado,
Que eu de mais nobre estĂmulo tocado,
Nem lhe amo a glória, nem lhe invejo a sorte:Invejo-te, CamÔes, o nome honroso;
Da mente criadora o sacro lume,
Que exprime as fĂșrias de Lieu raivoso:Os ais de InĂȘs, de VĂ©nus o queixume,
As pragas do gigante proceloso,
O cĂ©u de Amor, o inferno do CiĂșme.
Eu Me Ausento de Ti, Meu PĂĄtrio Sado
Eu me ausento de ti, meu pĂĄtrio Sado,
Mansa corrente deleitos, amena,
Em cuja praia o nome de Filena
Mil vezes tenho escrito, e mil beijado:Nunca mais me verĂĄs entre o meu gado
Soprando a namorada e branda avena,
A cujo som descias mais serena,
Mais vagarosa para o mar salgado:Devo enfim manejar por lei da sorte
Cajados nĂŁo, mortĂferos alfanges
Nos campos do colérico Mavorte;E talvez entre impåvidas falanges
Testemunhas farei da minha morte
Remotas margens, que humedece o Ganjes.