Não Digo do Natal
Não digo do Natal – digo da nata
do tempo que se coalha com o frio
e nos fica branquíssima e exacta
nas mãos que não sabem de que cionasceu esta semente; mas que invade
esses tempos relíquidos e pardos
e faz assim que o coração se agrade
de terrenos de pedras e de cardospor dezembros cobertos. Só então
é que descobre dias de brancura
esta nova pupila, outra visão,e as cores da terra são feroz loucura
moídas numa só, e feitas pão
com que a vida resiste, e anda, e dura.
Sonetos sobre Tempo
228 resultadosTarde Demais
Crescemos sempre assim, unidos – desde crianças
vivemos como irmãos, e, afinal, só depois
que o tempo nos mudou, é que eu e tu, nós dois,
descobrimos no amor as nossas esperanças…Mas foi tarde demais… Eu já tinha tomado
um rumo diferente – e o meu caminho e o teu
cada qual do princípio um dia se esqueceu,
e seguiu, cada qual, um rumo inesperado…Quantos anos!… Meu Deus!… É esquisita esta vida…
Depois que a nossa estrada em duas foi partida
em uma novamente, o mundo as quis juntar.. .Mas de nada serviu… De que serviu nos vermos
se o presente tornou os nossos sonhos ermos,
– se não podes me amar!… se não posso te amar!…
Música Da Hora
Habito a pausa no hábito da pauta
música de silêncios e soluços
a refrear desmandos dos impulsos
que se querem agudos sons de flauta.A vida é toda música em seu curso
do grito original em rima incauta
ao sussurro que se ouve em cama infausta
nesse fim dissonante do percurso.O tempo se encarrega do metrônomo
unido a dois ponteiros de um cronômetro
em que o delgado veste-se de momopara alegrar as horas do pequeno
que dança a marcha gris em chão sereno
fugindo ao dois por quatro do abandono.
Nos Teus Gestos
Nos teus gestos há animais em liberdade
e o brilho doce que só têm as cerejas.
É neles que adormeço, e dos teus dedos
retiro a luz azul dos arquipélagos.Os teus gestos são letras, sílabas, poemas.
Os teus gestos são páginas inteiras. São
a tua boca a namorar na minha boca,
o cio dos séculos a saudar o tempo.São os teus gestos que me acordam. Gestos
que vestem o silêncio fundo das ravinas
e assinalam a água dos desertos.Os teus gestos são música. São lume.
São a respiração do teu olhar. A seara
de espigas que ondula no meu corpo.
Sentimentos Carnais
Sentimentos carnais, esses que agitam
Todo o teu ser e o tornam convulsivo…
Sentimentos indômitos que gritam
Na febre intensa de um desejo altivo.Ânsias mortais, angústias que palpitam,
Vãs dilacerações de um sonho esquivo,
Perdido, errante, pelos céus, que fitam
Do alto, nas almas, o tormento vivo.Vãs dilacerações de um Sonho estranho,
Errante, como ovelhas de um rebanho,
Na noite de hóstias de astros constelada…Errante, errante, ao turbilhão dos ventos,
Sentimentos carnais, vãos sentimentos
De chama pelos tempos apagada…
Oficina Irritada
Eu quero compor um soneto duro
como poeta algum ousara escrever.
Eu quero pintar um soneto escuro,
seco, abafado, difícil de ler.Quero que meu soneto, no futuro,
não desperte em ninguém nenhum prazer.
E que, no seu maligno ar imaturo,
ao mesmo tempo saiba ser, não ser.Esse meu verbo antipático e impuro
há de pungir, há de fazer sofrer,
tendão de Vênus sob o pedicuro.Ninguém o lembrará: tiro no muro,
cão mijando no caos, enquanto Arcturo,
claro enigma, se deixa surpreender.
Soneto 399 Pós-Moderno
Cinema Novo, Bossa Nova, tudo
é novo nesta terra! A velharia
nos vem só do estrangeiro. O que seria
do Chaplin sem o velho cine mudo?Temos tempos modernos! Também mudo
meu modo de pensar a poesia.
Concreto e verso livre contagia,
mas algo mais à frente aguarda estudo:É o raio do soneto, que ora volta
liberto das amarras do conceito
e sem as igrejinhas como escolta.Depois do modernismo, vem refeito.
Até o vocabulário já se solta:
ao puro é duro, e ao sujo está sujeito.
Para Atravessar Contigo o Deserto do Mundo
Para atravessar contigo o deserto do mundo
Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade para perder o medo
Ao lado dos teus passos caminheiPor ti deixei meu reino meu segredo
Minha rápida noite meu silêncio
Minha pérola redonda e seu oriente
Meu espelho minha vida minha imagem
E abandonei os jardins do paraísoCá fora à luz sem véu do dia duro
Sem os espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempoPor isso com teus gestos me vestiste
E aprendi a viver em pleno vento
A Castidade com que Abria as Coxas
A castidade com que abria as coxas
e reluzia a sua flora brava.
Na mansuetude das ovelhas mochas,
e tão estrita, como se alargava.Ah, coito, coito, morte de tão vida,
sepultura na grama, sem dizeres.
Em minha ardente substância esvaída,
eu não era ninguém e era mil seresem mim ressuscitados. Era Adão,
primeiro gesto nu ante a primeira
negritude de corpo feminino.Roupa e tempo jaziam pelo chão.
E nem restava mais o mundo, à beira
dessa moita orvalhada, nem destino.
Soneto Do Amor Como Um Rio
Este infinito amor que um ano faz
Que é maior do que o tempo e do que tudo
Este amor que é real, e que, contudo,
Eu já não cria que existisse mais.Este amor que surgiu insuspeitado
E que dentro do drama fez-se em paz
Este amor que é o túmulo onde jaz
Meu corpo para sempre sepultado.Este amor meu é como um rio; um rio
Noturno, interminável e tardio
A deslizar macio pelo ermoE que em seu curso sideral me leva
Iluminado de paixão na treva
Para o espaço sem fim de um mar sem termo.
XXXVII
Continuamente estou imaginando,
Se esta vida, que logro, tão pesada,
Há de ser sempre aflita, e magoada,
Se como o tempo enfim se há de ir mudando:Em golfos de esperança flutuando
Mil vezes busco a praia desejada;
E a tormenta outra vez não esperada
Ao pélago infeliz me vai levando.Tenho já o meu mal tão descoberto,
Que eu mesmo busco a minha desventura;
Pois não pode ser mais seu desconcerto.Que me pode fazer a sorte dura,
Se para não sentir seu golpe incerto,
Tudo o que foi paixão, é já loucura!
O dia em que nasci moura e pereça,
O dia em que nasci moura e pereça,
Não o queira jamais o tempo dar;
Não torne mais ao Mundo, e, se tornar,
Eclipse nesse passo o Sol padeça.A luz lhe falte, O Sol se [lhe] escureça,
Mostre o Mundo sinais de se acabar,
Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar,
A mãe ao próprio filho não conheça.As pessoas pasmadas, de ignorantes,
As lágrimas no rosto, a cor perdida,
Cuidem que o mundo já se destruiu.Ó gente temerosa, não te espantes,
Que este dia deitou ao Mundo a vida
Mais desgraçada que jamais se viu!
Camões IV
Um dia, junto à foz de brando e amigo
Rio de estranhas gentes habitado,
Pelos mares aspérrimos levado,
Salvaste o livro que viveu contigo.E esse que foi às ondas arrancado,
Já livre agora do mortal perigo,
Serve de arca imortal, de eterno abrigo,
Não só a ti, mas ao teu berço amado.Assim, um homem só, naquele dia,
Naquele escasso ponto do universo,
Língua, história, nação, armas, poesia,Salva das frias mãos do tempo adverso.
E tudo aquilo agora o desafia.
E tão sublime preço cabe em verso.
Foi Já Num Tempo Doce Cousa Amar
Foi já num tempo doce cousa amar,
enquanto m’enganava a esperança;
O coração, com esta confiança,
todo se desfazia em desejar.Ó vão, caduco e débil esperar!
Como se desengana üa mudança!
Que, quanto é mor a bem aventurança,
tanto menos se crê que há de durar!Quem já se viu contente e prosperado,
vendo se em breve tempo em pena tanta,
razão tem de viver bem magoado.Porém quem tem o mundo exprimentado,
não o magoa a pena nem o espanta,
que mal se estranhará o costumado.
Houve uma Ilha em Ti
Houve uma ilha em ti que eu conquistei.
Uma ilha num mar de solidão.
Tinha um nome a ilha onde morei.
Chamava-se essa ilha Coração.Que saudades do tempo que passei.
Nenhum desses momentos foi em vão.
Do teu corpo, de ti, já nada sei.
Também não sei da ilha, não sei, não.Só sei de mim, coberto de raízes.
Enterrei os momentos mais felizes.
Vivo agora na sombra a recordar.A ilha que eu amei já não existe.
Agora amo o céu quando estou triste
por não saber do coração do mar.
Ciclo Terreno
Só morta a natureza se comporta
na expectativa podre dessas frutas
amolecidas no chão que as conforta
para o vôo de moscas dissolutas.Esse tempo ruído rói a crosta
de rugas ventiladas na disputa
de asas amaciando a pele morta
deixando à mostra o feto do desfruto.O cheiro cavo amaro pousa às costas
do vento que carrega no azedume
sementes de tanino em seu curtume.São muitos comensais nesse repasto
velando o transitório na certeza
sabendo que outra fruta volta à mesa.
Soneto XXXXV
Ecos de minhas glórias, que ficastes
Nos vales, onde foram sepultadas,
Pois morreram sem tempo malogradas,
Porque com elas não vos sepultastes?Se, como a brados de Leão, cuidastes
Que poderiam ser ressuscitadas,
São vozes essas no deserto dadas
Que a conjunção dos dias já passastes.E se ficastes para me ajudardes
A renovar meu sentimento esquivo,
Não desacrediteis minhas memórias,Que se c’os Ecos meus vos encontrardes,
Achareis, que servis mais para um vivo,
E que eles servem sós a mortas glórias.
Diálogo da Vida e o Tempo
V. Quem chama dentro em mi? – T. O tempo ousado
V. Entraste sem licença? – T. Tenho-a há muito.
V. Que me queres? – T. Que me ouças. – V. Já te escuto.
T. Prometes de me crer? – V. Fala avisado.T. Errada vás. – V. Também tu vás errado.
T. Essa é condição minha. – V. Esse é meu fruto.
T. És mulher descuidada. – V. És velho astuto.
T. Erro sem dano meu. – V. Assás tens dado.T. Ai, vida como passas? – V. Perseguida.
T. De quem? – V. De ti. – T. O Tempo o gosto nega.
V. O tempo é ar. – T. A Vida é passatempo.V. Tu já nem Tempo és. – T. Nem tu és já Vida.
V. Vai para louco. – T. Vai-te para cega.
– Vedes como se vão a Vida e o Tempo?
Respiro e Vejo
Respiro e vejo. A noite e cada sol
vão rompendo de mim a todo o instante,
tarde e manhã que são tecido tempo,
chuva e colheita. O céu, repouso e vento.Vergel de aves. Vou entre viveiros,
a caçar com o olhar, passarinhagem
dos pequeninos sóis e das estrelas
que emigram neste céu de goiabeiras.mas sigo a jardinagem, podo o tempo,
o desgosto do espaço, a sombra e o fogo,
as florações da luz e da cegueira.E, no dia, suspensa cachoeira,
neste jogo sagrado, vivo e vejo
o que veio em meus olhos desenhado.
Bom O tempo Que Ficou
Bom o tempo que ficou, – amei-te na alegria
de uma tarde azulada e linda de Setembro,
– disso tudo hoje triste eu muita vez me lembro
enquanto uma saudade o peito crucia…Amei-te, como nunca outro alguém te amaria,
eras o meu sonhar de Janeiro à Dezembro…
Depois… Tu me deixas-te, e ainda hoje se relembro,
Amargo a mesma dor cruel daquele dia…Agora sem viver, – sou um corpo sem alma,-
conformo-me com tudo, e vou chegando ao fim
– como a tarde que cai bem suavemente em calma.Já não sinto… não sofro… já nem vivo até.
– Se a vida ainda era vida ao ter-te junto à mim
hoje, longe de ti, – nem vida ao menos é!