Tese e AntĂtese
I
Já não sei o que vale a nova idéia,
Quando a vejo nas ruas desgrenhada,
Torva no aspecto, Ă luz da barricada,
Como bacchante apĂłs lĂşbrica ceia…Sanguinolento o olhar se lhe incendeia;
Respira fumo e fogo embriagada:
A deusa de alma vasta e sossegada
Ei-la presa das fúrias de Medeia!Um século irritado e truculento
Chama Ă epilepsia pensamento,
Verbo ao estampido de pelouro e obuz…Mas a idea Ă© n’um mundo inalterável,
N’um cristalino cĂ©u, que vive estável…
Tu, pensamento, nĂŁo Ă©s fogo, Ă©s luz!II
N’um cĂ©u intemerato e cristalino
Pode habitar talvez um Deus distante,
Vendo passar em sonho cambiante
O Ser, como espectáculo divino.Mas o homem, na terra onde o destino
O lançou, vive e agita-se incessante:
Enche o ar da terra o seu pulmĂŁo possante…
Cá da terra blasfema ou ergue um hino…A idĂ©ia encarna em peitos que palpitam:
O seu pulsar sĂŁo chamas que crepitam,
Paixões ardentes como vivos sóis!Combatei pois na terra árida e bruta,
Sonetos sobre Vales de Antero de Quental
6 resultadosEspectros
Espectros que velais, enquanto a custo
Adormeço um momento, e que inclinados
Sobre os meus sonos curtos e cansados
Me encheis as noites de agonia e susto!…De que me vale a mim ser puro e justo,
E entre combates sempre renovados
Disputar dia a dia Ă mĂŁo dos Fados
Uma parcela do saber augusto,Se a minh’alma há-de ver, sobre si fitos,
Sempre esses olhos trágicos, malditos!
Se até dormindo, com angústia imensa,Bem os sinto verter sobre o meu leito,
Uma a uma verter sobre o meu peito
As lágrimas geladas da descrença!
Luta
Fluxo e refluxo eterno…
JoĂŁo de Deus.Dorme a noite encostada nas colinas.
Como um sonho de paz e esquecimento
Desponta a lua. Adormeceu o vento,
Adormeceram vales e campinas…Mas a mim, cheia de atracções divinas,
Dá-me a noite rebate ao pensamento.
Sinto em volta de mim, tropel nevoento,
Os Destinos e as Almas peregrinas!Insondável problema!… Apavorado
RecĂşa o pensamento!… E já prostrado
E estúpido á força de fadiga,Fito inconsciente as sombras visionárias,
Enquanto pelas praias solitárias
Ecoa, Ăł mar, a tua voz antiga.
Diálogo
A cruz dizia Ă terra onde assentava,
Ao vale obscuro, ao monte áspero e mudo:
— Que és tu, abismo e jaula, aonde tudo
Vive na dor e em luta cega e brava?Sempre em trabalho, condenada escrava.
Que fazes tu de grande e bom, contudo?
Resignada, Ă©s sĂł lodo informe e rudo;
Revoltosa, Ă©s sĂł fogo e horrida lava…Mas a mim nĂŁo há alta e livre serra
Que me possa igualar!.. amor, firmeza,
Sou eu sĂł: sou a paz, tu Ă©s a guerra!Sou o espĂrito, a luz!.. tu Ă©s tristeza,
Oh lodo escuro e vil! — Porém a terra
Respondeu: Cruz, eu sou a Natureza!
IdĂlio
Quando nĂłs vamos ambos, de mĂŁos dadas,
Colher nos vales lĂrios e boninas,
E galgamos dum fĂ´lego as colinas
Dos rocios da noite inda orvalhadas;Ou, vendo o mar das ermas cumeadas
Contemplamos as nuvens vespertinas,
Que parecem fantásticas ruĂnas
Ao longo, no horizonte, amontoadas:Quantas vezes, de sĂşbito, emudeces!
NĂŁo sei que luz no teu olhar flutua;
Sinto tremer-te a mão e empalidecesO vento e o mar murmuram orações,
E a poesia das coisas se insinua
Lenta e amorosa em nossos corações.
No CĂ©o, se Existe um CĂ©o para quem Chora
No céo, se existe um céo para quem chora.
CĂ©o, para as magoas de quem soffre tanto…
Se é lá do amor o foco, puro e santo,
Chama que brilha, mas que nĂŁo devora…No cĂ©o, se uma alma n’esse espaço mora.
Que a prece escuta e encharga o nosso pranto…
Se ha Pae, que estenda sobre nĂłs o manto
Do amor piedoso… que eu nĂŁo sinto agora…No cĂ©o, Ăł virgem! findarĂŁo meus males:
Hei-de lá renascer, eu que pareço
Aqui ter sĂł nascido para dĂ´res.Ali, Ăł lyrio dos celestes vales!
Tendo seu fim, terão o seu começo.
Para nĂŁo mais findar, nossos amores.