No Mundo Quis Um Tempo Que Se Achasse
No mundo quis um tempo que se achasse
o bem que por acerto ou sorte vinha;
e, por exprimentar que dita tinha,
quis que a Fortuna em mim se exprimentasse.Mas, por que meu destino me mostrasse
que nem ter esperanças me convinha,
nunca nesta tĂŁo longa vida minha
cousa me deixou ver que desejasse.Mudando andei costume, terra e estado,
por ver se se mudava a sorte dura;
a vida pus nas mĂŁos de um leve lenho.Mas (segundo o que o CĂ©u me tem mostrado)
jĂĄ sei que deste meu buscar ventura,
achado tenho jĂĄ, que nĂŁo a tenho.
Sonetos sobre Vida de LuĂs de CamĂ”es
69 resultadosO Raio Cristalino S’estendia
O raio cristalino s’estendia
pelo mundo, da Aurora marchetada,
quando Nise, pastora delicada,
donde a vida deixava, se partia.Dos olhos, com que o Sol escurecia,
levando a vista em lĂĄgrimas banhada,
de si, do Fado e Tempo magoada,
pondo os olhos no CĂ©u, assi dezia:-Nasce, sereno Sol, puro e luzente;
resplandece, fermosa e roxa Aurora,
qualquer alma alegrando descontente;que a minha, sabe tu que, desd’agora,
jamais na vida a podes ver contente,
nem tĂŁo triste nenhĂŒa outra pastora.
VĂłs SĂł Convosco mesma Andai de Amores
Porque quereis, Senhora, que ofereça
A vida a tanto mal como padeço?
Se vos nasce do pouco que eu mereço,
Bem por nascer estå quem vos mereça.Entendei que por muito que vos peça,
Poderei merecer quanto vos peço;
Pois não consente Amor que em baixo preço
Tão alto pensamento se conheça.Assim que a paga igual de minhas dores
Com nada se restaura, mas deveis-ma
Por ser capaz de tantos desfavores.E se o valor de vossos amadores
Houver de ser igual convosco mesma,
VĂłs sĂł convosco mesma andai de amores.
Quando, Senhora, Quis Amor Que Amasse
Quando, Senhora, quis Amor que amasse
essa grã perfeição e gentileza,
logo deu por sentença que a crueza
em vosso peito amor acrescentasse.Determinou que nada me apartasse,
nem desfavor cruel, nem aspereza;
mas que em minha rarĂssima firmeza
vossa isenção cruel se executasse.E, pois tendes aqui oferecida e
sta alma vossa a vosso sacrifĂcio,
acabai de fartar vossa vontade.NĂŁo lhe alargueis, Senhora, mais a vida;
acabarĂĄ morrendo em seu oficio,
sua fé defendendo e lealdade.
VĂłs Que, D’olhos Suaves E Serenos
VĂłs que, d’olhos suaves e serenos,
com justa causa a vida cativais,
e que os outros cuidados condenais
por indevidos, baixos e pequenos;se ainda do Amor domésticos venenos
nunca provastes, quero que saibais
que Ă© tanto mais o amor despois que amais,
quanto são mais as causas de ser menos.E não cuide ninguém que algum defeito,
quando na cousa amada s’apresenta,
possa deminuir o amor perfeito;antes o dobra mais; e se atormenta,
pouco e pouco o desculpa o brando peito;
que Amor com seus contrairos s’acrescenta.
Seguia Aquele Fogo, Que O Guiava
Seguia aquele fogo, que o guiava,
Leandro, contra o mar e contra o vento;
as forças lhe faltavam jå e o alento,
Amor lhas refazia e renovava.Despois que viu que a alma lhe faltava,
nĂŁo esmorece; mas, no pensamento,
(que a lĂngua jĂĄ nĂŁo pode) seu intento
ao mar que lho cumprisse, encomendava.à mar (dezia o moço só consigo),
jå te não peço a vida; só queria
que a de Hero me salves; nĂŁo me veja…Este meu corpo morto, lĂĄ o desvia
daquela torre. SĂȘ me nisto amigo,
pois no meu maior bem me houveste enveja!
Quando Eu Via o Triste Fim que Davam os Meus Amores
O cisne, quando sente ser chegada
A hora que pÔe termo à sua vida,
Harmonia maior, com voz sentida,
Levanta pela praia inabitada.Deseja lograr vida prolongada,
E dela estĂĄ chorando a despedida;
Com grande saudade da partida,
Celebra o triste fim desta jornada.Assim, Senhora minha, quando eu via
O triste fim que davam meus amores,
Estando posto jĂĄ no extremo fio,Com mais suave acento de harmonia
Descantei pelos vossos desfavores
La vuestra falsa fe y el amor mio.
De quem o mesmo Amor nĂŁo se Apartava
JĂĄ a roxa e clara Aurora destoucava
Os seus cabelos de ouro delicados,
E das flores os campos esmaltados
Com cristalino orvalho borrifava;Quando o formoso gado se espalhava
De SĂlvio e de Laurente pelos prados;
Pastores ambos, e ambos apartados
De quem o mesmo Amor nĂŁo se apartava.Com verdadeiras lĂĄgrimas, Laurente,
â NĂŁo sei â dizia â Ăł Ninfa delicada,
Porque nĂŁo morre jĂĄ quem vive ausente,Pois a vida sem ti nĂŁo presta nada.
Responde SĂlvio: â Amor nĂŁo o consente,
Que ofende as esperanças da tornada.
Ah! minha Dinamene! Assim deixaste
Ah! minha Dinamene! Assim deixaste
Quem nĂŁo deixara nunca de querer-te!
Ah! Ninfa minha, jĂĄ nĂŁo posso ver-te,
TĂŁo asinha esta vida desprezaste!Como jĂĄ pera sempre te apartaste
De quem tĂŁo longe estava de perder-te?
Puderam estas ondas defender-te
Que nĂŁo visses quem tanto magoaste?Nem falar-te somente a dura Morte
Me deixou, que tĂŁo cedo o negro manto
Em teus olhos deitado consentiste!Oh mar! oh céu! oh minha escura sorte!
Que pena sentirei que valha tanto,
Que inda tenha por pouco viver triste?
O cisne, quando sente ser chegada
O cisne, quando sente ser chegada
A hora que pÔe termo a sua vida,
MĂșsica com voz alta e mui subida
Levanta pela praia inabitada.Deseja ter a vida prolongada
Chorando do viver a despedida;
Com grande saudade da partida,
Celebra o triste fim desta jornada.Assim, Senhora minha, quando via
O triste fim que davam meus amores,
Estando posto jĂĄ no extremo fio,Com mais suave canto e harmonia
Descantei pelos vossos desfavores
La vuestra falsa fé y el amor mio.
Se A Fortuna Inquieta E Mal Olhada
Se a Fortuna inquieta e mal olhada,
que a justa lei do CĂ©u consigo infama,
a vida quieta, que ela mais desama,
me concedera, honesta e repousada;pudera ser que a Musa, alevantada
com luz de mais ardente e viva flama.
fizera ao Tejo lĂĄ na pĂĄtria cama
adormecer co som da lira amada.Porém, pois o destino trabalhoso,
que me escurece a Musa fraca e lassa,
louvor de tanto preço não sustenta;a vossa de louvar-me pouco escassa,
outro sujeito busque valeroso,
tal qual em vĂłs ao mundo se apresenta.
O Dia Em Que Eu Nasci, Moura E Pereça
O dia em que eu nasci, moura e pereça,
nĂŁo o queira jamais o tempo dar,
nĂŁo torne mais ao mundo, e, se tornar,
eclipse nesse passo o sol padeça.luz lhe falte, o sol se [lhe] escureça,
mostre o mundo sinais de se acabar,
nasçam-lhe monstros, sangue chova
o ar, a mãe ao próprio filho não conheça.s pessoas pasmadas de ignorantes,
as lĂĄgrimas no rosto, a cor perdida,
cuidem que o mundo jĂĄ se destruiu.Ă gente temerosa, nĂŁo te espantes,
que este dia deitou ao mundo a vida
mais desgraçada que jamais se viu!
Trocou Finita Vida por Divina, Infinita e Clara Fama
â NĂŁo passes, caminhante! â Quem me chama?
â Uma memĂłria nova e nunca ouvida,
De um que trocou finita e humana vida
Por divina, infinita e clara fama.â Quem Ă© que tĂŁo gentil louvor derrama?
â Quem derramar seu sangue nĂŁo duvida
Por seguir a bandeira esclarecida
De um capitĂŁo de Cristo, que mais ama.â Ditoso fim, ditoso sacrifĂcio,
Que a Deus se fez e ao mundo juntamente!
Apregoando direi tĂŁo alta sorte.â Mais poderĂĄs contar a toda a gente
Que sempre deu na vida claro indĂcio
De vir a merecer tĂŁo santa morte.
Vossos Olhos, Senhora, que Competem
Vossos olhos, Senhora, que competem
Com o Sol em beleza e claridade,
Enchem os meus de tal suavidade,
Que em lĂĄgrimas de vĂȘ-los se derretem.Meus sentidos prostrados se submetem
Assim cegos a tanta majestade;
E da triste prisĂŁo, da escuridade,
Cheios de medo, por fugir remetem.Porém se então me vedes por acerto,
Esse ĂĄspero desprezo com que olhais
Me torna a animar a alma enfraquecida.Oh gentil cura! Oh estranho desconcerto!
Que dareis c’ um favor que vĂłs nĂŁo dais,
Quando com um desprezo me dais vida?
Doces Despojos de meu Bem Passado
Amor, co’a esperança jĂĄ perdida
Teu soberano templo visitei;
Por sinal do naufrĂĄgio que passei,
Em lugar dos vestidos, pus a vida.Que mais queres de mim, pois destruĂda
Me tens a glĂłria toda que alcancei?
NĂŁo cuides de render-me, que nĂŁo sei
Tornar a entrar onde nĂŁo hĂĄ saĂda.VĂȘs aqui vida, alma e esperança,
Doces despojos de meu bem passado,
Enquanto o quis aquela que eu adoro.Nelas podes tomar de mim vingança;
E se te queres ainda mais vingado,
Contenta-te co’as lĂĄgrimas que choro.
Como Fizeste, PĂłrcia, Tal Ferida?
Como fizeste, PĂłrcia, tal ferida?
Foi voluntĂĄria, ou foi por inocĂȘncia?
-Mas foi fazer Amor experiĂȘncia
se podia sofrer tirar me a vida.-E com teu prĂłprio sangue te convida
a nĂŁo pores Ă vida resistĂȘncia?
-Ando me acostumando Ă paciĂȘncia,
porque o temor a morte nĂŁo impida.-Pois porque comes, logo, fogo ardente,
se a ferro te costumas?-Porque ordena
Amor que morra e pene juntamente.E tens a dor do ferro por pequena?
-Si: que a dor costumada nĂŁo se sente;
e eu nĂŁo quero a morte sem a pena.
MemĂłria De Meu Bem, Cortado Em Flores
MemĂłria de meu bem, cortado em flores
por ordem de meus tristes e maus Fados,
deixai-me descansar com meus cuidados
nesta inquietação de meus amores.Basta-me o mal presente, e os temores
dos sucessos que espero infortunados,
sem que venham, de novo, bens passados
afrontar meu repouso com suas dores.Perdi nua hora quanto em termos
tĂŁo vagarosos e largos alcancei;
leixai-me, pois, lembranças desta glória.Cumpre acabe a vida nestes ermos,
porque neles com meu mal acabarei
mil vidas, nĂŁo ua sĂł, dura memĂłria!
Se AlgĂŒ’hora Em VĂłs A Piedade
Se algĂŒ’hora em vĂłs a piedade
de tĂŁo longo tormento se sentira,
nĂŁo consentira Amor que me partira
de vossos olhos, minha saĂŒdade.Apartei me de vĂłs, mas a vontade,
que pelo natural n’alma vos tira,
me faz crer que esta ausĂȘncia Ă© de mentira;
mas inda mal, porém, porque é verdade.Ir me hei, Senhora; e, neste apartamento,
tomarão tristes lågrimas vingança
nos olhos de quem fostes mantimento.E assi darei vida a meu tormento;
que, enfim, cå me acharå minha lembrança
sepultado no vosso esquecimento.
Verdade, Amor, RazĂŁo, Merecimento
Verdade, Amor, RazĂŁo, Merecimento,
qualquer alma farĂŁo segura e forte;
porém, Fortuna, Caso, Tempo e Sorte,
tĂȘm do confuso mundo o regimento.Efeitos mil revolve o pensamento
e nĂŁo sabe a que causa se reporte;
mas sabe que o que Ă© mais que vida e morte,
que não o alcança humano entendimento.Doctos varÔes darão razÔes subidas,
mas sĂŁo experiĂȘncias mais provadas,
e por isso Ă© melhor ter muito visto.Cousas hĂĄ i que passam sem ser criadas
e cousas criadas hĂĄ sem ser passadas,
mas o melhor de tudo Ă© crer em Cristo.
Em Flor Vos Arrancou, De EntĂŁo Crecida
Em flor vos arrancou, de entĂŁo crescida
(Ah! senhor dom AntĂłnio!), a dura sorte,
donde fazendo andava o braço forte
a fama dos Antigos esquecida.ĂŒa sĂł razĂŁo tenho conhecida
com que tamanha mĂĄgoa se conforte:
que, pois no mundo havia honrada morte,
que nĂŁo podĂeis ter mais larga a vida.Se meus humildes versos podem tanto
que co desejo meu se iguale a arte,
especial matéria me sereis.E, celebrado em triste e longo canto,
se morrestes nas mĂŁos do fero Marte,
na memĂłria das gentes vivereis.