A Companhia da Literatura Ă© Perigosa
A companhia da literatura é perigosa, tanto que eu, por vezes, a pessoas que aprecio não vejo motivos nenhuns para lhes aplaudir que leiam muito e penetrem tanto nos livros, e o que lhes desejo é o Bem, e qualquer um que tenha lido por exemplo Kafka conhece perfeitamente «quanta angústia excessiva para nada» (como dizia Pessoa) há na literatura.
Como diz Magris: «Kafka sabia perfeitamente que a literatura o afastava do território da morte e permitia-lhe compreender a vida, mas deixando-o de fora. Assim como lhe permitia compreender a grandeza do padre judeu, modelo de homem, mas não lhe permitia precisamente sê-lo.»
Precisamente porque a literatura nos permite compreender a vida, deixa-nos fora dela. É duro, mas às vezes é o melhor que nos pode acontecer. A leitura, a escrita, buscam a vida, mas podem perdê-la precisamente porque estão inteiramente concentradas na vida e na sua própria busca.
Talvez seja a melancolia da tarde em que estou a escrever isto, mas a verdade é que estou a falar de um nó inextricável de bem e de mal, de luzes e sombras inerentes à leitura e à literatura. Tudo isto é duro, para quê nos enganarmos. Trata-se de uma dureza que,
Passagens sobre Tarde
624 resultadosFelicidade Eterna
Antigamente todos os contos para crianças terminavam com a mesma frase, e foram felizes para sempre, isto depois de o PrĂncipe casar com a Princesa e de terem muitos filhos. Na vida, Ă© claro, nenhum enredo remata assim. As Princesas casam com os guarda-costas, casam com os trapezistas, a vida continua, e os dois sĂŁo infelizes atĂ© que se separam. Anos mais tarde, como todos nĂłs, morrem. SĂł somos felizes, verdadeiramente felizes, quando Ă© para sempre, mas sĂł as crianças habitam esse tempo no qual todas as coisas duram para sempre.
Prece do Natal
Menino Jesus
De novo nascido,
Baixai o sentido
Para a nossa cruz!Vede que os humanos
Erros e cuidados
Nos sĂŁo tĂŁo pesados
Como há dois mil anos.A nossa ignorância
É um fardo que arde.
Como se faz tarde
Para a nossa ânsia!Nós somos da Terra,
Coisa fria e dura.
Olhai a amargura
Que esse olhar encerra.Colai o ouvido
Ă€ alma que sofre;
Abri esse cofre
Do sonho escondido.Pegai nessa mĂŁo
Que treme de medo;
Sondai o segredo
Da minha oração.Esta pobre gente
Que mal Ă© que fez?
NĂłs somos, talvez,
Um povo «inocente»…Menino Jesus
Que andais distraĂdo
Baixai o sentido
Para a nossa cruz!A mais insofrida
De tantas misérias
– Não termos mais férias
Ao longo da vida –Trocai por amenas
ManhĂŁs sem cuidados,
SilĂŞncios banhados
De ideias serenas;Por cantos e flores
Risonhas imagens
Macias paisagens
Felizes amores!
Elegia do Amor
Lembras-te, meu amor,
Das tardes outonais,
Em que Ăamos os dois,
Sozinhos, passear,
Para fora do povo
Alegre e dos casais,
Onde sĂł Deus pudesse
Ouvir-nos conversar?
Tu levavas, na mĂŁo,
Um lĂrio enamorado,
E davas-me o teu braço;
E eu, triste, meditava
Na vida, em Deus, em ti…
E, além, o sol doirado
Morria, conhecendo
A noite que deixava.
Harmonias astrais
Beijavam teus ouvidos;
Um crepĂşsculo terno
E doce diluĂa,
Na sombra, o teu perfil
E os montes doloridos…
Erravam, pelo Azul,
Canções do fim do dia.
Canções que, de tão longe,
O vento vagabundo
Trazia, na memória…
Assim o que partiu
Em frágil caravela,
E andou por todo o mundo,
Traz, no seu coração,
A imagem do que viu.Olhavas para mim,
Ă€s vezes, distraĂda,
Como quem olha o mar,
À tarde, dos rochedos…
E eu ficava a sonhar,
Qual névoa adormecida,
Quando o vento também
Dorme nos arvoredos.
Olhavas para mim…
Meu corpo rude e bruto
Vibrava,
O Carácter não se Revela no muito Consumir, mas no muito Criar
A primeira regra do carácter Ă© a unidade – ou, nas palavras de Goethe, «ser um todo ou juntar-se a um todo». E a segunda, avançar, nunca recuar. Essas duas regras traçam uma linha de desenvolvimento em ascensĂŁo, da qual o homem de valor pode desviar-se numa certa medida, nĂŁo tanto, porĂ©m, que os desvios enublem a regra. No primeiro grupo de instintos, por exemplo, poderá ser admitido o da limpeza, embora seja instinto com raĂzes no impulso negativo da repugnância. «Na criança – diz Nietzsche – o senso da limpeza deve ser estimulado vivamente, porque mais tarde florirá sobre aspectos novos atĂ© Ă s alturas da virtude.» O asseio está prĂłximo da devoção; e como Ă©, se nĂŁo há deuses? Mas nĂŁo queremos chegar ao ascetismo de um banho frio perpĂ©tuo, nem que nos tornemos Apolos do cabelo bem penteado, nem vĂtima das manicuras; e sentiremos sempre uma secreta inveja daquele estadista teĂłlogo que nĂŁo deixava a sua ortodoxia interferir no seu apetite.
A mesma atitude tomaremos em relação Ă pugnacidade e Ă sua espora, o orgulho; temos aqui virtudes, nĂŁo vĂcios – que podamos para que se desenvolvam melhor. Nada de impetuosidade briguenta e de presunção; a presunção Ă© o orgulho da vitĂłria apenas imaginária,
O Echo
TĂŁo tarde. AdĂŁo nĂŁo vem? Aonde iria AdĂŁo?!
Talvez que fosse á caça; quer fazer surprezas com alguma côrça branca lá da floresta.
Era p’lo entardecer, e Eva já sentia cuidados por tantas demoras.
Foi chamar ao cimo dos rochedos, e uma voz de mulher tambem, tambem chamou AdĂŁo.
Teve mĂŞdo: Mas julgando fantazia chamou de nĂ´vo: AdĂŁo? E uma voz de mulher tambem, tambem chamou AdĂŁo.
Foi-se triste para a tenda.
Adão já tinha vindo e trouxera as settas todas, e a cáça era nenhuma!
E elle a saudá-la ameaçou-lhe um beijo e ella fugiu-lhe.
– Outra que não Ella chamára tambem por Elle.
Se consegues viver uma tarde absolutamente inĂştil, de maneira absolutamente inĂştil, entĂŁo sabes viver.
Tarde Demais…
Quando chegaste enfim, para te ver
Abriu-se a noite em mágico luar;
E pra o som de teus passos conhecer
Pôs-se o silêncio, em volta, a escutar…Chegaste enfim! Milagre de endoidar!
Viu-se nessa hora o que nĂŁo pode ser:
Em plena noite, a noite iluminar;
E as pedras do caminho florescer!Beijando a areia d’oiro dos desertos
Procura-te em vão! Braços abertos,
Pés nus, olhos a rir, a boca em flor!E há cem anos que eu fui nova e linda!…
E a minha boca morta grita ainda:
“Por que chegaste tarde, Ó meu Amor?!…”
Quantos SĂ©culos Precisa um EspĂrito para Ser Compreendido?
Os maiores acontecimentos e os maiores pensamentos – mas os maiores pensamentos sĂŁo os maiores acontecimentos – sĂŁo os que mais tarde se compreendem: as gerações que lhes sĂŁo contemporâneas nĂŁo vivem esses acontecimentos, – passam por eles. Acontece aqui algo de análogo ao que se observa no domĂnio dos astros. A luz das estrelas mais distantes chega mais tarde aos homens; e antes da sua chegada, os homens negam que ali – existam estrelas. “Quantos sĂ©culos precisa um espĂrito para ser compreendido?” – aĂ está tambĂ©m uma medida, um meio de criar uma hierarquia e uma etiqueta necessárias: para o espĂrito e para a estrela.
Poder Crer em Santa Bárbara
Esta tarde a trovoada caiu
Pelas encostas do céu abaixo
Como um pedregulho enorme…
Como alguém que duma janela alta
Sacode uma toalha de mesa,
E as migalhas, por caĂrem todas juntas,
Fazem algum barulho ao cair,
A chuva chovia do céu
E enegreceu os caminhos …Quando os relâmpagos sacudiam o ar
E abanavam o espaço
Como uma grande cabeça que diz que não,
Não sei porquê — eu não tinha medo —
pus-me a rezar a Santa Bárbara
Como se eu fosse a velha tia de alguém…Ah! é que rezando a Santa Bárbara
Eu sentia-me ainda mais simples
Do que julgo que sou…
Sentia-me familiar e caseiro
E tendo passado a vida
TranqĂĽilamente, como o muro do quintal;
Tendo idéias e sentimentos por os ter
Como uma flor tem perfume e cor…Sentia-me alguém que nossa acreditar em Santa
Bárbara…
Ah, poder crer em Santa Bárbara!(Quem crê que há Santa Bárbara,
Julgará que ela Ă© gente e visĂvel
Ou que julgará dela?)(Que artifĂcio!
Quando Eu For Pequeno
Quando eu for pequeno, mĂŁe,
quero ouvir de novo a tua voz
na campânula de som dos meus dias
inquietos, apressados, fustigados pelo medo.
Subirás comigo as ruas Ăngremes
com a certeza dĂłcil de que sĂł o empedrado
e o cansaço da subida
me entregarĂŁo ao sossego do sono.Quando eu for pequeno, mĂŁe,
os teus olhos voltarĂŁo a ver
nem que seja o fio do destino
desenhado por uma estrela cadente
no cetim azul das tardes
sobre a baĂa dos veleiros imaginados.Quando eu for pequeno, mĂŁe,
nenhum de nós falará da morte,
a nĂŁo ser para confirmarmos
que ela sĂł vem quando a chamamos
e que os animais fazem um cĂrculo
para sabermos de antemĂŁo que vai chegar.Quando eu for pequeno, mĂŁe,
trarei as papoilas e os bĂşzios
para a tua mesa de tricotar encontros,
e entĂŁo ficaremos debaixo de um alpendre
a ouvir uma banda a tocar
enquanto o pai ao longe nos acena,
lenço branco na mão com as iniciais bordadas,
anunciando que vai voltar porque eu sou
[pequeno
e a orfandade até nos olhos deixa marcas.
A Maravilha da Vida é Tudo Nela Ter Justificação
Desabafo dum amigo, que nĂŁo encontra justificação para o seu pecado mortal, que Ă© viver. Viver ao sol, gratuitamente, como um lagarto. Respondi-lhe que a maravilha da vida Ă© tudo nela ter justificação. É, da mais rasteira erva ao mais nojento bicho, nĂŁo haver presença no mundo que nĂŁo seja necessária e insubstituĂvel. Que, do contrário, era faltar na terra esta admirável plurivalĂŞncia, que faz de uma tarde de sol, de trigo e de cigarras o mais assombroso espectáculo que se pode ver. O medir depois a distância que vai da formiga ao leĂŁo, da urtiga ao castanheiro, de Nero a S. Francisco de Assis, Ă© uma casuĂstica que nĂŁo tem nada que ver com a torrente de seiva que inunda o mundo de pĂłlo a pĂłlo.
Foi-se, e Ă tarde apareceu-me com um belo poema.
Neste mundo ha sĂł duas cousas que me afligem: sĂŁo os maus charutos, e madrugadas antes da uma hora da tarde. No mais entendo que este globo Ă© o melhor de todos para quem nĂŁo tiver calos e reumatismo.
Tardes de Agosto, passam de encosto.
Ă€ Vaidade do Mundo
É a vaidade, Fábio, desta vida
Rosa que na manhĂŁ lisonjeada
Púrpuras mil com ambição coroada
Airosa rompe, arrasta presumida;É planta que de Abril favorecida
Por mares de soberba desatada,
Florida galera empavezada,
Surca ufana, navega destemida;É nau, enfim, que em breve ligeireza,
Com presunção de fénix generosa,
Galhardias apresta, alentos preza.Mas ser planta, rosa e nau vistosa
De que importa, se aguarda sem defesa
Penha a nau, ferro a planta, tarde a rosa?
Geralmente erra mais quem decide cedo do que quem decide tarde; mas, depois de tomada a decisão, é necessário recuperar o atraso da sua execução.
Elogio da Desconhecida
Ela. Seus braços vencidos,
Naus em procura do mar,
Caminhos brancos, compridos,
Que conduzem ao luar.Se ao meu pescoço os enrola
Eu julgo, com alegria,
Que trago ao pescoço o dia
Como se fosse uma gola.O Luar, lâmpada acesa
Pra alumiar Ă princesa
Que em meus olhos causa alarde.E o dia, longe, esquecido,
É um lençol estendido
Numa janela da Tarde.
Sem Causa a Infância Ri
Sem causa a Infância ri, sem causa chora:
Incauta se despenha a mocidade;
Sacode o jugo, e nela a liberdade,
A caça, o jogo, o amor, tudo a namora.Das honras o varão se condecora;
Tudo Ă© nele ilusĂŁo, tudo vaidade:
Junta Tesouros a avarenta idade;
Diz mal do nosso, e ao tempo andado adora.Tormento Ă© toda a vida, Ă© toda enganos:
Quando uns afectos vence a novos corre,
E tarde reconhece os prĂłprios danos:Porque enfim se a prudĂŞncia nos socorre,
Ditada na lição dos longos anos,
Quando se sabe, entĂŁo Ă© que se morre.
Os pais que não arranjam tempo para os seus filhos, que se envolvem excessivamente com o trabalho vão desejar mais tarde poder comprar o tempo e voltar atrás. Mas o tempo passado não está mais à venda no grande mercado da vida, apenas o tempo presente.
Ăšltimo Soneto
Que rosas fugitivas foste ali!
Requeriam-te os tapetes, e vieste…
– Se me dói hoje o bem que me fizeste,
É justo, porque muito te devi.Em que seda de afagos me envolvi
Quando entraste, nas tardes que apareceste!
Como fui de percal quando me deste
Tua boca a beijar, que remordi…Pensei que fosse o meu o teu cansaço –
Que seria entre nós um longo abraço
O tédio que, tão esbelta, te curvava…E fugiste… Que importa? Se deixaste
A lembrança violeta que animaste,
Onde a minha saudade a Cor se trava?…