A Verdadeira Religião é Individual e não Social
É possível que a religião da solidão seja de certa maneira superior à religião social e formalizada. O que é certo é que ela apareceu mais tarde no decurso da evolução. Além disso, os fundadores das religiões e seitas históricamente mais importantes têm sido todos, com excepção de Confúcio, solitários. Talvez seja verdade dizer-se que, quanto mais poderosa e original for uma mente, mais ela se inclinará para a religião da solidão, e menos ela será atraída no sentido da religião social ou impressionada pelas suas práticas. Pela sua própria superioridade a religião da solidão está condenada a ser a religião das minorias. Para a grande maioria dos homens e das mulheres a religião ainda significa, o que sempre significou, religião social formalizada, um assunto de rituais, observâncias mecânicas, emoção das massas. Perguntem a qualquer dessas pessoas o que é a verdadeira essência da religião, e eles responderão que ela consiste na devida observância de certas formalidades, na repetição de certas frases, na reunião em certos tempos e em certos lugares, da realização por meios apropriados de emoções comunais.
Passagens sobre Tarde
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Convoco os duendes da inquietação
e da alegria, urdindo um laborioso
rito circular, delicada teia iridiscente
de que, relutante, a luz se vá
pouco a pouco enamorando.Palavras não as profiro
sem que antes as tenha encantado
de vagarosa ternura; mal esboçados,
gestos ou afagos, apenas me afloram
a hesitante extremidade dos dedosque, aquáticos e transidos, estacam
no limiar surpreso do seu rosto.
Movimentos longos da tarde
e sussurros graves da noite
que tendessem para a imobilidadee o silêncio, não seriam mais cautos
e aéreos. Quietas estátuas de cristal,
intensamente nos fitamos, enquanto
trémula, lenta e comburente,
a luz mais pura nos atravessa.
Um Segredo
Meu pai tinha sandálias de vento
só agora o sei.
Tinha sandálias de vento
e isto nem sequer é uma maneira de dizer
andava por longe os olhos fugidos a expressão em
[nenhures
com as miraculosas instantaneidades que nos fazem
[estar em todos os sítios.Andava por longe meu pai sonhando errando vadiando
mas toda a sua ausência era
o malogro de o ser
só agora o sei.
Andava por longe ou sentíamo-lo longe
vem dar no mesmo
e no entanto víamo-lo sempre
ali plantado de imobilidade absorta
no cepo de carvalho raiado de negro
a que o caruncho comera o miolo
como as lagartas esvaziam as maçãs
estranhamente quieto murcho resignado
no seu estranho vadiar
os olhos aguados numa tristeza que hoje me dói
como um apelo perdido uma coragem abortada.
Ausência era tão de mágoa urdida tão de fracasso
[tingida
ausência era
altiva e desolada altiva e triste sobretudo triste
tristeza sim tristeza solene e irremediada
só agora o sei.Às vezes parecia-me uma águia que atravessa os ares
sulco azul
que nada distingue do azul onde foi sulcado
e por isso nem é águia nem ao menos
o que do seu voo resta para que
o sonho se faça real.
Contrariedades
Eu hoje estou cruel, frenético, exigente;
Nem posso tolerar os livros mais bizarros.
Incrível! Já fumei três maços de cigarros
Consecutivamente.Dói-me a cabeça. Abafo uns desesperos mudos:
Tanta depravação nos usos, nos costumes!
Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes
E os ângulos agudos.Sentei-me à secretária. Ali defronte mora
Uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes;
Sofre de faltas de ar, morreram-lhe os parentes
E engoma para fora.Pobre esqueleto branco entre as nevadas roupas!
Tão lívida! O doutor deixou-a. Mortifica.
Lidando sempre! E deve a conta na botica!
Mal ganha para sopas…O obstáculo estimula, torna-nos perversos;
Agora sinto-me eu cheio de raivas frias,
Por causa dum jornal me rejeitar, há dias,
Um folhetim de versos.Que mau humor! Rasguei uma epopéia morta
No fundo da gaveta. O que produz o estudo?
Mais duma redação, das que elogiam tudo,
Me tem fechado a porta.A crítica segundo o método de Taine
Ignoram-na. Juntei numa fogueira imensa
Muitíssimos papéis inéditos. A imprensa
Vale um desdém solene.
Ah, a Esta Alma Que Não Arde AH, a esta alma que não arde. Não envolve, porque ama, A esperança, ainda que vã, O esquecimento que vive Entre o orvalho da tarde. E o orvalho da manhã
Os Laços Afetivos
Criar intimidade entre si e outra pessoa não implica perder a sua noção de Eu nem diluir-se no outro. Para criar efetivamente laços com outra pessoa, ambos têm de manter a sua integridade e individualidade. Caso contrário, o resultado será uma amálgama disfuncional. Para estabelecer uma analogia com o corpo humano, as células dos olhos criam uma ligação entre si para permitir a visão. Cada célula tem de se articular com todas as outras e isso implica que cada uma delas mantenha a sua estrutura e função individuais ao serviço da operação mais complexa da visão. Quando estabelecemos laços com outros, estamos simplesmente a ser aquilo que somos enquanto partilhamos um objetivo ou atividade comuns.
É tão simples quanto isso. Talvez saia com um grupo de pessoas para garantir um parecer favorável na reunião da tarde e entretanto desenvolva um sentimento de camaradagem e acabem por ir jantar fora e partilhar as vossas histórias. Esta é uma experiência de criação de laços afetivos. Ao contrário de certos medos que possamos ter do que possa levar-nos a perder a identidade, a criação de laços afetivos saudáveis fortalece a nossa confiança e autoestima.
Não é uma questão de morrer cedo ou tarde, mas de morrer bem ou mal. Morrer bem significa escapar vivo do risco de morrer doente.
Um Sorriso
Vinha caindo a tarde. Era um poente de agosto.
A sombra já enoitava as moutas. A umidade
Aveludava o musgo. E tanta suavidade
Havia, de fazer chorar nesse sol-posto.A viração do oceano acariciava o rosto
Como incorpóreas mãos. Fosse ágoa ou saudade,
Tu olhavas, sem ver, os vales e a cidade.
– Foi então que senti sorrir o meu desgosto…Ao fundo o mar batia a crista dos escolhos…
Depois o céu… e mar e céus azuis: dir-se-ia
Prolongarem a cor ingênua de teus olhos…A paisagem ficou espiritualizada.
Tinha adquirido uma alma. E uma nova poesia
Desceu do céu, subiu do mar, cantou na estrada…
Água-Forte
Do firmamento azul e curvilíneo
Cai, fecundando as trêmulas raízes
Dos laranjais, dos pâmpanos, das lizes,
A luz do sol procriador, sanguíneo.Pelo caminho agreste e retilíneo,
Da tarde aos brandos, triunfais matizes,
A criançada, a chusma dos felizes,
Esse de auroras perfumado escrínio,Volta da escola, rindo muito, aos saltos,
Trepando, em bulha, aos árvoredos altos
Enquanto o sol desce os outeiros longos…Vai dentre alados madrigais risonhos,
Do abecedário juvenil dos sonhos,
A soletrar os principais ditongos.
Quem Confia Supera-se
Quanto mais confiante fores, maior ameaça és.
Quem confia supera-se, é maior e mais alto. Conquista mais, é mais forte e vê mais longe. Sabe por onde caminhar, sabe melhor o que não quer e sabe antecipar-se. Vive, portanto, melhor preparado para resistir a tudo e persistir perante qualquer adversidade.
Quem confia sempre alcança.
Somos uma sombra na vida dos encolhidos. Um despertador que não para de lhes gritar aos ouvidos expressões como: «mexe-te», «vês como eles conseguem», «não vales nada» ou «quem te dera ser como eles». E isto, naturalmente, incomoda-os. Dá-lhes a volta ao estômago. Mas em vez de tal chamariz de verdade os acicatar e os empurrar para a ação, acabam por escolher transformar isso em inveja, raiva e ódios de estimação ao ponto de olharem para ti, não como uma força inspiradora capaz de lutar por tudo o que quer, mas como um alvo a abater. É como se o objetivo das suas vidas passasse a ser a destruição do chato despertador que não para de lhes zumbir a realidade, em lugar de ser a realização das suas próprias e eventuais vontades.
Dito isto, prepara-te para teres de lidar com eles todos os dias.
Crepúsculo
A Julia Lyra
O Angelus soa. Vagarosamente
A noite desce, plácida e divina.
Ouço gemer meu coração doente
Chorando a tarde, a noiva peregrina.Há pelo Espaço um ciciar dolente
De prece em torno da Igrejinha em ruína…
Pássaros voam compassadamente;
Treme no galho a rosa purpurina…E eu sinto que a tristeza vem suspensa
Sobre as asas da noite erma e sombria…
E que, n’essa hora de saudade imensa,Rindo e chorando desce ao coração:
Toda a doçura da melancolia,
Todo o conforto da recordação.
Do Meu Tempo
Quando eu era menino e tinha cheia
A alma de sonhos bons e, fugidio,
Como a abelha que voa da colmeia,
Andava a errar do canavial bravio;Quando em noites de junho o luar macio
Punha um lençol de rendas sobre a areia,
Tiritava de medo ouvindo o pio
Da coruja mais lúgubre da aldeia.Feliz! Bendita essa primeira idade!
Andava como quem anda sonhando
De olhos abertos, com a felicidade.Dormia tarde e enquanto eu não dormia,
Mamãe rezava o padre-nosso e quando
Me mandava rezar, eu não sabia.
O Saber Altera a Economia de um Ser
O que aprendemos por nós próprios, seja que conhecimento for extraído do nosso próprio fundo, é algo que teremos que expiar por um suplemento de desequilíbrio. Fruto de uma desordem íntima, de uma doença definida ou difusa, de uma perturbação na raiz da nossa existência, o saber altera a economia de um ser. Cada um de nós terá que pagar pelo mais pequeno golpe que vibra num universo criado para a indiferença e para a estagnação; cedo ou tarde, arrepender-se-á, arrepender-nos-emos, de o não ter, ou de o não termos, deixado intacto.
O que sendo verdade para o conhecimento é mais verdade ainda para a ambição, porque invadir o terreno de outrem acarreta consequências mais graves e mais imediatas do que invadir o terreno do mistério ou simplesmente da matéria.
Começamos por fazer tremer os outros, mas os outros acabam por nos comunicar os seus terrores. É por isso que os tiranos, também eles, vivem no pavor. O que o nosso futuro senhor há-de conhecer será sem dúvida exacerbado por uma felicidade sinistra, como ninguém experimentou comparável, à medida do solitário por excelência, erguido diante da humanidade toda, semelhante a um deus entronizado no medo, num pânico omnipotente,
Tudo isto se acumula de uma forma, que, mais cedo ou mais tarde, não dá para suportar mais. E, nessa situação, comecei a escrever, porque não havia outra forma de me exprimir, excepto através do ciclo vicioso das palavras.
Sem este objetivo firme e permanente [de conhecer o interior inóspito], a Amazônia, mais cedo ou mais tarde, se destacará do Brasil, naturalmente e irresistivelmente, como se despega um mundo de uma nebulosa — pela expansão centrífuga do seu próprio movimento.
Carta a Manoel
Manoel, tens razão. Venho tarde. Desculpa.
Mas não foi Anto, não fui eu quem teve a culpa,
Foi Coimbra. Foi esta paysagem triste, triste,
A cuja influencia a minha alma não reziste,
Queres noticias? Queres que os meus nervos fallem?
Vá! dize aos choupos do Mondego que se callem…
E pede ao vento que não uive e gema tanto:
Que, emfim, se soffre abafe as torturas em pranto,
Mas que me deixe em paz! Ah tu não imaginas
Quanto isto me faz mal! Peor que as sabbatinas
Dos ursos na aula, peor que beatas correrias
De velhas magras, galopando Ave-Marias,
Peor que um diamante a riscar na vidraça!
Peor eu sei lá, Manoel, peor que uma desgraça!
Hysterisa-me o vento, absorve-me a alma toda,
Tal a menina pelas vesperas da boda,
Atarefada mail-a ama, a arrumar…
O vento afoga o meu espirito n’um mar
Verde, azul, branco, negro, cujos vagalhões
São todos feitos de luar, recordações.
Á noite, quando estou, aqui, na minha toca,
O grande evocador do vento evoca, evoca
Nosso verão magnifico, este anno passado,
(E a um canto bate,
Morre-se Agora Muito Tarde
Pensando bem, vale mais morrer já, morre-se agora muito tarde. Quero dizer, muito depois de ter morrido muita coisa à nossa volta e dentro de nós. A vida humana estendeu-se e o que havia nela encolheu. A vida humana é assim vagarosa, «objectivamente» vagarosa, mas o que acontece dentro dela é rapidíssimo (…) Porque aos vinte e cinco anos, digamos aos trinta, temos o farnel pronto para a viagem. Antigamente dava para a viagem toda, agora temos de nos abastecer outra vez – com quê?
Temos a bagagem pronta, o amor, as ideias, o corte das camisas e do cabelo, tudo na mala – como aguentar até aos setenta sem mudar de mala nem de camisas? Mesmo que as camisas sejam novas. Imagina agora tu a usares o coco do teu avô.
Mais tarde ou mais cedo todos temos que esquecer o nosso passado.
Falar com Estranhos
Já reparou? E mais fácil ser-se verdadeiro com os estranhos. As pessoas que viajam de comboio começam a falar com estranhos e contam coisas que nunca contaram aos amigos, porque, com um estranho, não se sentem envolvidas. Meia hora mais tarde, chegam ao seu destino e saem; esquecem e o estranho esquecerá tudo aquilo que lhe contaram. Por isso nada do que lhe disseram tem qualquer importância. Não se correm riscos com um estranho.
Ao falar com estranhos, as pessoas são mais verdadeiras e revelam o seu coração. Mas ao falar com os amigos, com os familiares — pai, mãe, mulher, marido, irmão, irmã — há uma profunda inibição inconsciente. «Não digas isso, ele pode ficar magoado. Não faças isso, ela pode não gostar. Não te comportes dessa maneira, o pai é velho, pode ficar chocado.» Então a pessoa continua a controlar-se. A pouco e pouco, a verdade cai na cave do seu ser e ela torna-se muito esperta e astuciosa com o não verdadeiro. Continua a fazer falsos sorrisos, que não passam de pinturas nos lábios. Continua a dizer coisas simpáticas, sem qualquer significado. Começa a sentir-se aborrecida com o namorado ou com os pais, mas continua a dizer: «Estou muito contente por te ver!» Enquanto isso,
A Vida é uma Montanha Russa
A vida não é uma linha reta em que alguém conquistado ou algo adquirido é uma segurança para todo o sempre; a vida é uma montanha russa e, de vez em quando, sim, é preciso ficares de pernas para o ar. Tudo passa, tu ficas. Sou tão assertivo relativamente a este tema porque sei que é a dependência que gera o apego, ou seja, se as pessoas forem independentes é impossível serem apegadas. É o ego que as vincula à ideia de que não são suficientemente boas para dependerem de si mesmas e é contra esta terrível armadilha que é preciso lutar.
Uma mãe que dependa do bem–estar do filho e que viva para ele é uma mulher que não encontrará forças para lhe esticar o braço quando ele cair e precisar de uma verdadeira mãe, pois serão sempre dois a sofrer da mesma epidemia, da mesma dor, da mesma frustração ou desilusão; um homem que use e abuse da estabilidade profissional e financeira que conquistou e que dependa disso para, pensa ele, ser o que é, é alguém que mais tarde ou mais cedo, e num daqueles loopings da vida em que o que era já não é,