Horizontes de Eternidade
A morte não é um acontecimento da vida. A morte não pode ser vivida. Caso se compreenda por eternidade não uma duração temporal infinita, mas a intemporalidade, quem vive no presente é quem vive eternamente. A nossa vida é tanto mais sem fim quanto mais o nosso campo de visão não tem limites.
Textos sobre Acontecimento
138 resultadosA Vida e o Jogo
Quando a criança cresceu e abandonou os seus jogos, quando durante anos se esforçou psiquicamente por agarrar as realidades da vida com a seriedade desejada, pode acontecer que um dia se encontre de novo numa disposição psíquica que volta a apagar esta oposição entre o jogo e a realidade. O homem adulto lembra-se da grande seriedade com que se entregava aos jogos infantis e acaba por comparar as suas ocupações por assim dizer graves com esses jogos dos tempos da infância: liberta-se então da opressão demasiado pesada da vida e conquista a fruição superior do humor.
Sem Poesia Não Há Humanidade
Sem Poesia não há Humanidade. É ela a mais profunda e a mais etérea manifestação da nossa alma. A intuição poética ou orfaica antecede, como fonte original, o conhecimento euclidiano ou científico. E nos dá o sentido mais perfeito e harmónico da vida. Aperfeiçoando o ser humano, afasta-o do antropóide e aproxima-o dos antropos. Que a mocidade actual, obcecada pela bola e pelo cinema, reduzida quase a uma fotografia peculiar e uma espécie de máquina de fazer pontapés, despreza o seu aperfeiçoamento moral; e, com o seu fato de macaco, prefere regressar à Selva a regressar ao Paraíso. E assim, igualando-se aos bichos, mente ao seu destino, que é ser o coração e a consciência do Universo: o sagrado coração e o santo espírito. Eis o destino do homem, desde que se tornou consciente. E tornou-se consciente, porque tal acontecimento estava contido nas possibilidades da Natureza. Sim, a nossa consciência é a própria Natureza numa autocontemplação maravilhosa. Ou é o próprio Criador numa visão da sua obra, através do homem. E, vendo-a, desejou corrigi-la, transfigurando-se em Redentor.
A Democracia Política Conduz à Ineficiência e Fraqueza de Direcção
Os defeitos da democracia política como sistema de governo são tão óbvios, e têm sido tantas vezes catalogados, que não preciso mais do que resumi-los aqui. A democracia política foi criticada porque conduz à ineficiência e fraqueza de direcção, porque permite aos homens menos desejáveis obter o poder, porque fomenta a corrupção. A ineficiência e fraqueza da democracia política tornam-se mais aparentes nos momentos de crise, quando é preciso tomar e cumprir decisões rapidamente. Averiguar e registar os desejos de muitos milhões de eleitores em poucas horas é uma impossibilidade física. Segue-se, portanto, que, numa crise, uma de duas coisas tem de acontecer: ou os governantes decidem apresentar o facto consumado da sua decisão aos eleitores – em cujo caso todo o princípio da democracia política terá sido tratado com o desprezo que em circunstâncias críticas ela merece; ou então o povo é consultado e perde-se tempo, frequentemente, com consequências fatais. Durante a guerra todos os beligerantes adoptaram o primeiro caminho. A democracia política foi em toda a parte temporariamente abolida. Um sistema de governo que necessita de ser abolido todas as vezes que surge um perigo, dificilmente se pode descrever como um sistema perfeito.
Têm-se Deveres Conforme o Alcance do Espírito
Em quase todos os acontecimentos da vida, uma alma generosa vê a possibilidade duma acção de que uma alma comum não tem a mesma ideia. No próprio instante em que a possibilidade dessa acção se torna visível para a alma generosa, é de seu interesse levá-la a cabo. Se não executasse essa acção que acaba de lhe surgir no espírito, desprezar-se-ia a si própria; seria infeliz. Têm-se deveres conforme o alcance do espírito. (…) É contra a natureza do homem, é impossível para o homem não fazer sempre, e em qualquer momento que se queira examiná-lo, o que nesse momento é possível e lhe dá prazer.
Amo-te, Portugal
Portugal,
Estou há que séculos para te escrever. A primeira vez que dei por ti foi quando dei pela tua falta. Tinha 19 anos e estava na Inglaterra. De repente, deixei de me sentir um homem do mundo e percebi, com tristeza, que era apenas mais um dos teus desesperados pretendentes.
Apaixonaste-me sem que eu desse por isso. Deve ter sido durante os meus primeiros 18 anos de vida, quando estava em Portugal e só queria sair de ti. Insinuaste-te. Não fui eu que te escolhi. Quando descobri que te amava, já era tarde de mais.
Eu não queria ficar preso a ti; queria correr mundo. Passei a querer correr para ti – e foi para ti que corri, mal pude.
Teria preferido chegar à conclusão que te amava por uma lenta acumulação de razões, emoções e vantagens. Mas foi ao contrário. Apaixonei-me de um dia para o outro, sem qualquer espécie de aviso, e desde esse dia, que remédio, lá fui acumulando, lentamente, as razões por que te amo, retirando-as uma a uma dentre todas as outras razões, para não te amar, ou não querer saber de ti.
Custou-me justificar o meu amor por ti.
O Terror como Base da Religião
É verdade que tanto o medo como a esperança entram na religião, porque estas duas paixões, em alturas diferentes, agitam a mente humana e cada uma delas forma uma espécie de divindade que lhe é adequada. Mas, quando um homem se sente bem, ele está inclinado para os negócios, para o convívio ou para qualquer espécie de divertimento, e dedica-se naturalmente a essas actividades e não pensa em religião. Quando está melancólico e abatido, tudo o que para fazer é meditar sobre os terrores do mundo invisível, e mergulhar mais profundamente ainda na aflição. Pode realmente acontecer que, após ter assim gravado profundamente as opiniões religiosas no seu pensamento e imaginação, ocorra uma alteração da saúde ou das circunstâncias que restaure o seu bom humor e, ocasionando boas perspectivas de futuro, o faça cair no extremo oposto da alegria e triunfo. Mas, ainda assim deve reconhecer-se que, como o terror é o princípio primordial da religião, é essa a paixão que predomina nela e que só admite pequenos intervalos de prazer.
O Que é a Inspiração?
Eu não sei o que é a inspiração. Mas também a verdade é que às vezes nós usamos conceitos que nunca paramos a examinar. Vamos lá a ver: imaginemos que eu estou a pensar determinado tema e vou andando, no desenvolvimento do raciocínio sobre esse tema, até chegar a uma certa conclusão. Isto pode ser descrito, posso descrever os diversos passos desse trajecto, mas também pode acontecer que a razão, em certos momentos, avance por saltos; ela pode, sem deixar de ser razão, avançar tão rapidamente que eu não me aperceba disso, ou só me aperceba quando ela tiver chegado ao ponto a que, em circunstâncias diferentes, só chegaria depois de ter passado por todas essas fases.
Talvez, no fundo, isso seja inspiração, porque há algo que aparece subitamente; talvez isso possa chamar-se também intuição, qualquer coisa que não passa pelos pontos de apoio, que saltou de uma margem do rio para a outra, sem passar pelas pedrinhas que estão no meio e que ligam uma à outra. Que uma coisa a que nós chamamos razão funcione desta maneira ou daquela, que funcione com mais velocidade ou que funcione de forma mais lenta e que eu posso acompanhar o próprio processo,
A Prática Fomenta a Vontade
Se desejamos tornar-nos fortes, temos, primeiro, de comprender o que é a vontade. A vontade não é nenhuma entidade mística, que presida aos outros elementos do carácter, qual mestre de banda – sim, a soma, a substância de todos os nossos impulsos e disposições. Essa energia formadora do carácter não tem senhor a quem obedeça além de si própria; e é graças a ela que algum poderoso impulso pode vir a dominar e unificar o complexo. Isto forma a «força de vontade» – um supremo desejo que se ergue acima dos mais para arrastá-los num mesmo sentido ou para uma dada meta. Se não descobrimos essa meta não alcançaremos a unidade – e seremos simples pedra de que outro homem se utiliza nas suas construções.
Vem daí a inutilidade da leitura de livros que apontam as estradas reais do carácter. Tenho diante de mim um volume de um tal Leland (Londres, 1912), intitulado Tendes a Vontade Forte? ou Como Desenvolver Qualquer Faculdade do Espírito pelo Fácil Processo do Auto-Hipnotismo. Existem centenas destas obras-primas ao alcance dos simplórios de todas as cidades. Mas o caminho é mais penoso e longo.
Esse caminho é o caminho da vida. Vontade, isto é,
Humanismo e Liberalismo
O termo humanismo é infelizmente uma palavra que serve para designar as correntes filosóficas, não somente em dois sentidos, mas em três, quatro, cinco ou seis. Toda a gente é humanista na hora que passa, até mesmo certos marxistas que se descobrem racionalistas clássicos, são humanistas num enfadonho sentido, derivado das ideias liberais do último século, o dum liberalismo refractado através de toda a crise actual. Se os marxistas podem pretender ser humanistas, as diferentes religiões, os cristãos, os hindus, e muitos outros afirmam-se também antes de mais humanistas, como por sua vez o existencialista, e de um modo geral, todas as filosofias. Actualmente muitas correntes políticas se reivindicam igualmente um humanismo. Tudo isso converge para uma espécie de tentativa de restabelecimento duma filosofia que, apesar da sua pretensão, recusa no fundo comprometer-se, e recusa comprometer-se, não somente no ponto de vista político e social, mas também num sentido filosófico profundo.
Se o cristianismo se pretende antes de tudo humanista, é porque ele não pode comprometer-se, quer dizer participar na luta das forças progressivas, porque se mantém em posições reaccionárias frente a esta revolução. Quando os pseudomarxistas ou os liberais se reclamam da pessoa antes do mais, é porque eles recuam diante das exigências da situação presente no mundo.
Onde Começa a Felicidade
«Aurea mediocritas» – dizia Horácio, um dos poetas latinos que faz a base da nossa civilização. As palavras com o tempo corrompem-se, alteram-se, adulteram-se. «Mediocritas» em português deu mediocridade, tal como «parvus» deu parvo, ao contrário do castelhano em que apenas significa pequeno, ou «sinistra» em italiano quer apenas dizer esquerda.
A «Aurea mediocritas» que cantava Horácio era a doce e suave mediania entre as emoções, um equilíbrio quase bucólico na vida a ter e nos negócios a ter na vida. Não, Horácio, romano educado, não era adepto dos desportos radicais.
Equilíbrio entre o quê? Distorcendo Horácio, a dois mil anos de distância, podemos dizer, talvez, equilíbrio entre o sonho e a realidade. A felicidade não pode ser só o que há, senão apodrecemos, mas também não pode ser só o que desejamos, senão ficamos com uma neurose de tanto ansiar pelo que há-de vir.O resto é com cada qual. Alguns gostam da felicidade bovina de não pensar muito, outros gostam de estar sozinhos no deserto, outros ficam felizes com a desgraça alheia. Estes três exemplos são, cá para mim, desgraçados, mas o que sei eu dos outros? É por não saber nada dos outros que escrevo histórias sobre os outros.
A Libertação do Pensamento
Conforme o leitor vai crescendo, forma uma imagem mental sobre quem é, com base no condicionamento pessoal e cultural a que está sujeito. Podemos chamar de ego a este eu ilusório. Ele consiste em atividade mental e só pode ser mantido através do pensamento constante. O termo ego significa coisas diferentes para pessoas diferentes, mas quando eu o utilizo neste livro tem o significado de um falso eu, criado pela identificação inconsciente com a mente.
Para o ego, o momento presente praticamente não existe. Só o passado e o futuro são tidos como importantes. Esta contraposição total da verdade explica o facto de no modo ego a mente ser tão disfuncional. Preocupa-se sempre em manter o passado vivo, porque sem ele… quem é você? Ele projeta-se constantemente no futuro para garantir a sua sobrevivência contínua e para procurar lá algum tipo de libertação ou realização. Diz: «Um dia, quando isto, aquilo ou tal acontecer, vou ficar bem, feliz, em paz.»
Até quando o ego parece estar virado para o presente, não é o presente que ele vê: o ego interpreta o presente de forma totalmente errada porque o observa com os olhos do passado. Ou reduz o presente a um meio para atingir um fim,
Ambição e Poder
Examinemo-nos no momento em que a ambição nos trabalha, em que lhe sofremos a febre; dissequemos em seguida os nossos «acessos». Verificaremos que estes são precedidos de sintomas cuirosos, de um calor especial, que não deixa nem de nos arrastar nem de nos alarmar. Intoxicados de porvir por abuso de esperança, sentimo-nos de súbito responsáveis pelo presente e pelo futuro, no núcleo da duração, carregada esta dos nossos frémitos, com a qual, agentes de uma anarquia universal, sonhamos explodir. Atentos aos acontecimentos que se passam no nosso cérebro e às vicissitudes do nosso sangue, virados para o que nos altera, espiamos-lhe e acarinhamos-lhe os sinais. Fonte de perturbações, de transtornos ímpares, a loucura política, se afoga a inteligência, favorece em contrapartida os instintos e mergulha-os num caos salutar. A ideia do bem e sobretudo do mal que imaginamos ser capazes de cumprir regozijar-nos-á e exaltar-nos-á; e o feito das nossas enfermidades, o seu prodígio, será tal que elas nos instituirão senhores de todos e de tudo.
À nossa volta, observaremos uma alteração análoga naqueles que a mesma paixão corrói. Enquanto sofrerem o seu império, serão irreconhecíves, presas de uma embriaguez diferente de todas as outras. Tudo mudará neles, até o timbre da voz.
A História é uma Fábula Combinada
Essa verdade histórica, tão implorada, à qual todos se apressam a apelar, na maioria das vezes não passa de uma palavra: ela é impossível no próprio momento dos acontecimentos, no calor das paixões cruzadas; e se, mais tarde, nos pomos de acordo, é porque para os interessados, os contraditores não existem mais. Mas o que é então essa verdade histórica a maior parte das vezes? Uma fábula combinada…
Um Segredo de um Casamento Feliz
Desde que a Maria João e eu fizemos dez anos de casados que estou para escrever sobre o casamento. Depois caí na asneira de ler uns livros profissionais sobre o casamento e percebi que eu não percebo nada sobre o casamento.
Confesso que a minha ambição era a mais louca de todas: revelar os segredos de um casamento feliz. Tendo descoberto que são desaconselháveis os conselhos que ia dar, sou forçado a avisar que, quase de certeza, só funcionam no nosso casamento.
Mas vou dá-los à mesma, porque nunca se sabe e porque todos nós somos muito mais parecidos do que gostamos de pensar.
O casamento feliz não é nem um contrato nem uma relação. Relações temos nós com toda a gente. É uma criação. É criado por duas pessoas que se amam.
O nosso casamento é um filho. É um filho inteiramente dependente de nós. Se nós nos separarmos, ele morre. Mas não deixa de ser uma terceira entidade.
Quando esse filho é amado por ambos os casados – que cuidam dele como se cuida de um filho que vai crescendo -, o casamento é feliz. Não basta que os casados se amem um ao outro.
Do Outro Lado
Também eu já me sentei algumas vezes às portas do crepúsculo, mas quero dizer-te que o meu comércio não é o da alma, há igrejas de sobra e ninguém te impede de entrar. Morre se quiseres por um deus ou pela pátria, isso é contigo; pode até acontecer que morras por qualquer coisa que te pertença, pois sempre pátrias e deuses foram propriedade apenas de alguns, mas não me peças a mim, que só conheço os caminhos da sede, que te mostre a direcção das nascentes.
O Bem e o Mal
Quando os acontecimentos nos colocam em oposição ao meio envolvente, todos desenvolvemos as forças de que dispomos, ao passo que nas situações em que apenas fazemos o nosso dever nos comportamos, compreensivelmente, como quem paga os seus impostos. Daqui se conclui que tudo o que é mau se pratica com mais ou menos imaginação e paixão, enquanto o bem se caracteriza por uma inconfundível pobreza de afecto e mesquinhez.
(…) Se abstrairmos daquela grande fatia central do mundo e da vida ocupada por pessoas em cujo pensamento as palavras bem e mal deixaram de ter lugar desde que largaram as saias da mãe, então as margens, onde ainda há propósitos morais deliberados, ficam hoje reservadas àquelas pessoas boas-más ou más-boas, das quais algumas nunca viram o bem voar nem o ouviram cantar e por isso exigem de todas as outras que se extasiem com elas diante de uma natureza da moral com pássaros empalhados pousados em árvores mortas; o segundo grupo, por seu lado, os mortais maus-bons, espicaçados pelos seus rivais, manifestam, pelo menos em pensamento, uma tendência para o mal, como se estivessem convencidos de que é apenas nas más acções, menos desgastadas do que as boas, que ainda pulsa alguma vida moral.
Os Povos Felizes não têm História
‘Os povos felizes não têm história’. De onde se infere que a supressão da história tornaria os povos mais felizes. O menor olhar sobre os acontecimentos deste mundo reencontra essa mesma conclusão. O esquecimento é o benefício que a história quer corromper. Nada, na história, serve para ensinar aos homens a possibilidade de viverem em paz. É o ensino oposto que dela se destaca – e se faz acreditar.
A Eterna Criação da Literatura
A literatura é um acontecimento completamente à parte. É um acontecimento que, de cada vez, recomeça de alto a baixo. É um acontecimento sem hábitos. No caso de um bom marceneiro, ou mesmo de um bom buscador de ouro, trata-se de refazer o que se fazia antes dele e – se for possível – contribuir com o seu pequeno aperfeiçoamento para a forma da mesa ou para o oco da bateia. Mas um jovem escritor não deve absolutamente ameliorar Proust, ou aperfeiçoar Claudel, completar Gide ou fazer um pequeno retoque a Valéry. Não, de modo algum. Cabe-lhe escrever como se nem Gide, nem Proust tivessem existido nunca.
Medo da Própria Alma
Se Deus não existe… O pior de tudo é que eu digo e afirmo – Deus não existe! – mas na realidade não sei se Deus existe ou não. Não há nada que o prove – ou que prove o contrário. O pior de tudo é que eu sinto uma sombra por trás de mim e não sei por que nome lhe hei-de chamar. O pior que podia acontecer no mundo foi alguém pôr esta ideia a caminho.
Mas mesmo que Deus não exista, tenho medo de mim mesmo, tenho medo da minha alma, tenho medo de me encontrar sós a sós com a minha alma, que é nada, o fim e o princípio da vida e a razão do meu ser. Mesmo que Deus não exista e a consciência seja uma palavra, há ainda outra coisa indefinida e imensa diante de mim, ao pé de mim, perto de mim.