Dificuldade de Prever o Comportamento de qualquer Pessoa, o Nosso Inclusivamente
Sendo variável o nosso “eu”, que é dependente das circunstâncias, um homem jamais deve supor que conhece outro. Pode somente afirmar que, não variando as circunstâncias, o procedimento do indivíduo observado não mudará. O chefe de escritório que já redige há vinte anos relatórios honestos, continuará sem dúvida a redigi-los com a mesma honestidade, mas cumpre não o afirmar em demasia. Se surgirem novas circunstâncias, se uma paixão forte lhe invadir a mente, se um perigo lhe ameaçar o lar, o insignificante burocrata poderá tornar-se um celerado ou um herói.
As grandes oscilações da personalidade observam-se quase exclusivamente na esfera dos sentimentos. Na da inteligência, elas são muito fracas. Um imbecil permanecerá sempre imbecil.
As possíveis variações da personalidade, que impedem de conhecermos a fundo os nossos semelhantes, também obstam a que cada qual se conheça a si próprio. O adágio “Nosce te ipsum” dos antigos filósofos constitui um conselho irrealizável. O “eu” exteriorizado representa habitualmente uma personalidade de empréstimo, mentirosa. Assim é, não só porque atribuímos a nós mesmos muitas qualidades e não reconhecemos absolutamente os nossos defeitos, como também porque o nosso “eu” contém uma pequena porção de elementos conscientes, conhecíveis em rigor, e, em grande parte,
Textos sobre Adivinhos
15 resultadosAborrecido de Estudar
Enfastiavam-me as aulas, salvo as de literatura — que aprendia de cor — e tinha nelas um protagonismo único. Aborrecido de estudar, deixava tudo à mercê da boa sorte. Tinha um instinto próprio para pressentir os pontos álgidos de cada matéria e quase adivinhar os que mais interessavam aos professores para não estudar o resto. A realidade é que não entendia por que devia sacrificar engenho e tempo em matérias que não me interessavam e, pela mesma razão, não me iam servir para nada numa vida que não era minha.
Atrevi-me a pensar que a maioria dos meus professores me classificava mais pela minha maneira de ser do que pelos meus exames. Salvavam-me as minhas respostas imprevistas, as minhãs ideias dementes, as minhas invenções irracionais. No entanto, quando acabei o quinto ano, com sobressaltos académicos que não me sentia capaz de superar, tomei consciência dos meus limites. O bacharelato tinha sido até então um caminho empedrado de milagres, mas avisava-me o coração que no final do quinto me esperava uma muralha intransponível. A verdade sem adornos era que me faltava já a vontade, a vocação, a ordem, o dinheiro e a ortografia para embarcar numa carreira académica. Melhor dizendo: os anos voavam e não fazia a mínima ideia do que ia fazer da minha vida,
Tremo por Ti que És o Meu Único Amigo
António,
Tenho imensas coisas que te dizer e não sei o que hei-de dizer, tão arreliada estou e tão sem cabeça para pensar a coisa mais insignificante deste mundo. Que linda noite, tu vais passar, Amigo querido! E eu? A pensar que a maldade e a estupidez desta vida que no nosso desgraçado país é um horror, me pode fazer o mal maior que a alguém se pode fazer. Tenho medo, tenho medo, meu amor. Este desassossego contínuo põe-me doente e faz-me doida.
Então eu hei-de passar a minha triste vida a tremer por ti? Eu tenho pouca sorte, e quando enfim encontro no meu caminho alguém que gosta de mim, por mim, como se deve gostar, que pensa na minha felicidade, no meu sossego, alguém que se digna ver que eu tenho alma a sentir, quando encontro enfim no mundo o que julgara não encontrar nunca, hei-de andar como o avarento a tremer pelo tesoiro que levou anos, uma vida inteira a conquistar e que lhe podem roubar num momento. Eu tenho pouca sorte! Que Deus tenha piedade de mim.
Quereria dizer-te muitas coisas mas nem sei o que; só tenho vontade de chorar e de gritar desesperadamente,
Amo-te Por Todas as Razões e Mais Uma
Por todas as razões e mais uma. Esta é a resposta que costumo dar-te quando me perguntas por que razão te amo. Porque nunca existe apenas uma razão para amar alguém. Porque não pode haver nem há só uma razão para te amar.
Amo-te porque me fascinas e porque me libertas e porque fazes sentir-me bem. E porque me surpreendes e porque me sufocas e porque enches a minha alma de mar e o meu espírito de sol e o meu corpo de fadiga. E porque me confundes e porque me enfureces e porque me iluminas e porque me deslumbras.
Amo-te porque quero amar-te e porque tenho necessidade de te amar e porque amar-te é uma aventura. Amo-te porque sim mas também porque não e, quem sabe, porque talvez. E por todas as razões que sei e pelas que não sei e por aquelas que nunca virei a conhecer. E porque te conheço e porque me conheço. E porque te adivinho. Estas são todas as razões.
Mas há mais uma: porque não pode existir outra como tu.
A Alma do Amor
Quando um homem, quer tenda para os rapazes ou para as mulheres, encontra aquele mesmo que é a sua metade, é um prodígio como os transportes de ternura, confiança e amor os tomam. Eles não desejariam mais separar-se, nem por um só instante. E pensar que há pessoas que passam a vida toda juntas, sem poder dizer, diga-se de passagem, o que uma espera da outra; pois não parece que seja o prazer dos sentidos que lhes faça encontrar tanto encanto na companhia uma da outra. É evidente que a alma de ambas deseja outra coisa, que não pode dizer, mas que adivinha e deixa adivinhar.
Os Amigos dos Outros
Faz grandes elogios de alguém na presença de um terceiro. Se este se mantém calado, é porque não é amigo do primeiro. O mesmo poderás adivinhar se ele desviar a conversa para outro assunto, se mal responde, se se esforça por moderar os teus elogios, se se diz mal informado acerca da pessoa em causa ou ainda se se lança no elogio de pessoas que nada têm que ver.
Podes igualmente mencionar um acto admirável praticado por essa pessoa – um acto acerca do qual sabes que o teu interlocutor está perfeitamente ao corrente – para veres se aproveita ou não para o valorizar. Reagirá, talvez, dizendo que, nesse caso, foi uma questão de sorte ou que a Divina Providência é, por vezes, muito pródiga. Ou então aproveitará para gabar proezas ainda mais notáveis de outros. Pode ainda afirmar que essa tua pessoa se limitou a seguir um bom conselho.
Antecipar a Recusa
Não cometas a asneira de pedir a alguém um objecto raro que lhe é querido, sobretudo se não tens necessidade expressa dele. Porque, se to recusar, sentirá que te ofendeu e guardar-te-á rancor; se consentir, também te quererá mal, porque passará a considerar-te como um pedinchão incómodo e indelicado.
Como é sempre desagradável ouvir uma recusa, nada peças que não estejas certo de obter. Por isso é que mais vale nada pedir directamente, mas dar a entender por meias palavras o que nos faz falta.
Quando tencionas solicitar um favor, não o deixes adivinhar antes de o teres obtido. Declara mesmo abertamente que nada esperas nesse sentido. Anuncia por toda a parte que foi concedido a outra pessoa aquilo que por um momento cobiçaras e vai felicitar o feliz eleito.
Se te recusarem alguma coisa, compra uma pessoa que tenha mais possibilidades que tu, de modo a que te entregue discretamente o objecto desejado, uma vez obtido.
Se alguém disputa uma honra que também cobiças, envia-lhe secretamente um emissário que, em nome da amizade, o dissuada falando-lhe dos múltiplos obstáculos que em todo o caso teria de enfrentar.
És como o Ar que Respiro
Qual é a força extraordinária que possuis? — pergunto muitas vezes a mim mesmo. Dois ou três princípios cristãos inabaláveis — e por trás milhares de seres que desapareceram ignorados, cumprindo a vida ignorada. Nem sequer se debateram. Entregaram-se. Confiaram. A mulher portuguesa comunica ao lar a ternura com que os pássaros aquecem o ninho. Sua vida dá luz, para alumiar os outros. Foi assim com tão pequenos meios, que me ensinaste. Com uma palavra e mais nada, com um simples olhar, com silêncio e mais nada. Uma atitude fazia-me pensar. E mal sabes tu quando Os teus dedos ágeis trabalhavam a meu lado, teciam ao mesmo tempo o pano grosso de casa e a nossa vida espiritual.
E como tu milhares de seres têem cumprido a vida em silêncio, aceitando-a sem exageros. Nas mãos das mulheres até as coisas vulgares que se fazem na aldeia, cozer o pão, lançar a teia — assumem um carácter sagrado. Elas passam desconhecidas e dispõem dum poder extraordinário. Mantêem a vida ordenada com um sorriso tímido. A mulher está mais perto que nós da natureza e de Deus.
Cada vez me aproximo mais de ti. O que há de puro em mim a ti o devo.
Valem Mais as Vidas do que os Livros
Defende Cleantes a opinião de que em nada nos interessam as ideias dos homens e que acima de tudo devemos pôr o seu carácter, a honestidade e a firmeza, a independência e a lisura do seu procedimento. Se de política tratamos, Cleantes, que, por definição, é honesto, sentir-se-á muito bem representado ou muito bem governado não por aquele que, incluindo nos seus programas de eleição ou nas suas declarações ideias que perfeitamente se harmonizam com as dele, depois aparece apenas como um membro de toda a raça infinita dos que sobem por fora, mas por aquele que, tendo-o porventua irritado com a sua maneira de pensar, em seguida vem habitar a ilha minúscula dos que sobem por dentro. Se de dois candidatos que se apresentam, um está no partido contrário ao nosso mas é um honesto, seguro cidadão, e o outro se proclama correligionário, mas nos deixa dúvidas sobre a integridade moral, diz Cleantes que ninguém deve hesitar: o nosso voto deve ir para o que dá garantias de uma fiscalização séria dos negócios e não deixará que se maltrate a Justiça. Sobretudo se formos moralistas, isto é, se acreditarmos que o mundo se salvará pela moral; e, como cumpre a moralistas,
A Delicadeza de Expressão
As regras e os preceitos não são de grande ajuda para se aprender a falar delicadamente, se a natureza não concorrer para isso. A delicadeza de que falo é menos o efeito da arte do que de uma imaginação viva e venturosa, que sem se esforçar encontra termos apropriados para exprimir aquilo que se pensou; mas, para falar delicadamente, é necessário pensar delicadamente. A maioria das mulheres de qualidade que têm muito espírito e frequentam a sociedade falam com delicadeza, e embora não inventem palavras novas, colocam tão bem os termos de que se servem, que eles parecem inteiramente novos e feitos especialmente para significar o que elas querem dizer. Elas exprimem todo um sentimento numa única palavra, e deixam ainda mil coisas agradáveis a adivinhar; é nisso que consiste a tal delicadeza da expressão. Ela não consiste de modo algum em palavras grandiosas, num longo agrupamento de palavras harmoniosas, em frases muito rebuscadas; é necessário não sei quê de natural, de desenvolto, de simples, de ingénuo, de fácil, mas vivo e engenhoso.
O Que me Mata é o Quotidiano
Dor? Alegria? Só é simplesmente questão de opinião. Eu adivinho coisas que não têm nome e que talvez nunca terão. É. Eu sinto o que me será sempre inacessível. É. Mas eu sei tudo. Tudo o que sei sem propriamente saber não tem sinónimo no mundo da fala mas enriquece e me justifica. Embora a palavra eu a perdi porque tentei falá-la. E saber-tudo-sem saber é um perpétuo esquecimento que vem e vai como as ondas do mar que avançam e recuam na areia da praia. Civilizar minha vida é expulsar-me de mim. Civilizar minha existência a mais profunda seria tentar expulsar a minha natureza e a supernatureza. Tudo isso no entanto não fala de meu possível significado.
O que me mata é o quotidiano. Eu queria só excepções. Estou perdida: eu não tenho hábitos.
A Vida Oblíqua
Só agora pressenti o oblíquo da vida. Antes só via através de cortes retos e paralelos. Não percebia o sonso traço enviesado. Agora adivinho que a vida é outra. Que viver não é só desenrolar sentimentos grossos — é algo mais sortilégico e mais grácil, sem por isso perder o seu fino vigor animal. Sobre essa vida insolitamente enviesada tenho posto minha pata que pesa, fazendo assim com que a existência feneça no que tem de oblíquo e fortuito e no entanto ao mesmo tempo sutilmente fatal. Compreendi a fatalidade do acaso e não existe nisso contradição.
A vida oblíqua é muito íntima. Não digo mais sobre essa intimidade para não ferir o pensar-sentir com palavras secas. Para deixar esse oblíquo na sua independência desenvolta.
E conheço também um modo de vida que é suave orgulho, graça de movimentos, frustração leve e contínua, de uma habilidade de esquivança que vem de longo caminho antigo. Como sinal de revolta apenas uma ironia sem peso e excêntrica. Tem um lado da vida que é como no inverno tomar café num terraço dentro da friagem e aconchegada na lã.
Conheço um modo de vida que é sombra leve desfraldada ao vento e balançando leve no chão: vida que é sombra flutuante,
Técnicas de Narrador
Os que me conheceram aos quatro anos dizem que era pálido e ensimesmado e que só falava para contar disparates, mas os meus relatos eram em grande parte episódios simples da vida diária, que eu tornava mais atraentes com pormenores fantásticos para que os adultos me prestassem atenção. A minha melhor fonte de inspiração eram as conversas que os mais velhos mantinham diante de mim, porque pensavam que não as entendia, ou as que cifravam de propósito para que não as entendesse. E, de facto, acontecia o contrário: absorvia-as como uma esponja, desmontava-as em peças, alterava-as para escamotear a origem, e quando as contava aos mesmos que as tinham contado ficavam perplexos pelas coincidências entre o que eu dizia e o que eles pensavam.
Às vezes não sabia o que fazer com a minha consciência e procurava dissimular com um rápido pestanejar. Tanto era assim que algum racionalista da família decidiu que eu fosse observado por um médico da vista, que atribuiu o meu pestanejar a uma infecção das amígdalas e me receitou um xarope de rábano iodado que me fez muito bem para aliviar os adultos. A avó, por seu lado, chegou à conclusão providencial de que o neto era adivinho.
Aprender de Cor quem Amamos
Comportamo-nos como se as pessoas de quem gostamos fossem durar para sempre. Em vida não fazemos nunca o esforço consciente de olhar para elas como quem se prepara para lembrá-las. Quando elas desaparecem, não temos delas a memória que nos chegue. Para as lembrar, que é como quem diz, prolongá-las. A memória é o sopro com que os mortos vivem através de nós. Devemos cuidar dela como da vida.
Devemos tentar aprender de cor quem amamos. Tentar fixar. Armazená-las para o dia em que nos fizerem falta. São pobres as maneiras que temos para o fazer, é tão fraca a memória, que todo o esforço é pouco. Guardá-las é tão difícil. Eu tenho um pequeno truque. Quando estou com quem amo, quando tenho a sorte de estar à frente de quem adivinho a saudade de nunca mais a ver, faço de conta que ela morreu, mas voltou mais um único dia, para me dar uma última oportunidade de a rever, olhar de cima a baixo, fazer as perguntas que faltou fazer, reparar em tudo o que não vi; uma última oportunidade de a resguardar e de a reter. Funciona.
Uma Direcção, e Não Soluções
A diferença entre solução e direcção é esta: a solução é sempre um remédio passageiro para disfarçar a desgraça. Ao passo que a direcção é a própria dignidade posta nas mãos do desgraçado para que deixe de o ser, e a direcção única é a garantia perpétua dessa dignidade. E foi o que fez Goethe: Descobriu a direcção única. Artista, na verdadeira acepção da palavra; Artista é aquele que precede a própria ciência. Por isso Goethe afastou-se de quantas realidades irrealizáveis onde costumam habitar instaladas as gentes. E impassível, desde cima, assistiu ao desenrolar da tragédia. E viu o mundo inteiro por cima de todas as cabeças, e viu a Europa toda e com cada um dos seus pedaços, e viu cada indivíduo da Humanidade como um pequenino astro tonto que nem sabe sequer ir na parábola da sua própria trajectória, e viu que de todos os seres deste mundo o único que errava o seu fim era o Homem, o dono da Terra! E viu que era na Humanidade que estavam os únicos seres deste mundo que não cumpriam com o seu próprio destino, e finalmente viu! Viu com os seus próprios olhos o que ninguém tinha visto antes dele.