A (Má-)Emoção Controlada Pela Razão
Há a ideia de que quando se concede à razão inteira liberdade ela destrói todas as emoções profundas. Esta opinião parece-me devida a uma concepção inteiramente errada da função da razão na vida humana. Não é objectivo da razão gerar emoções, embora possa ser parte da sua função descobrir os meios de impedir que tais emoções sejam um obstáculo ao bem-estar. Descobrir os meios de dminuir o ódio e a inveja é sem dúvida parte da função da psicologia racional. Mas é um erro supor que diminuindo essas paixões, diminuiremos ao mesmo tempo a intensidade das paixões que a razão não condena.
No amor apaixonado, na afeição dos pais, na amizade, na benevolência, na devoção às ciências ou às artes, nada há que a razão deseje diminuir. O homem racional, quando sente essas emoções, ficará contente por as sentir e nada deve fazer para diminuir a sua intensidade, pois todas elas fazem parte da verdadeira vida, isto é, da vida cujo objectivo é a felicidade, a própria e a dos outros. Nada há de irracional nas paixões como paixões e muitas pessoas irracionais sentem sómente as paixões mais triviais. Ninguém deve recear que ao optar pela razão torne triste a vida.
Textos sobre Amizade
104 resultadosCasamento e Fusão Moral
Na vida conjugal, o casal só deve formar de certo modo uma única pessoa moral, animada e governada pelo gosto da mulher e pela inteligência do homem. Se as mulheres mostram mais liberdade e fineza no sentimento, em compensação os homens parecem mais ricos no discernimento que a experiência dá. Acrescentemos que quanto mais um carácter é sublime, mais ele tende a fazer todos os seus esforços para o contentamento do ser amado, e é característico de uma bela alma responder a isso com complacência. Sob essa relação, toda a pretensão à superioridade seria, portanto, inepta e reveladora de um gosto grosseiro ou de uma união mal sucedida. Tudo se perde quando se disputa o comando. Pois uma vez que a união repousa na inclinação, ela é meio rompida assim que o dever começa a se fazer entender.
Um tom duro e impiedoso é um dos mais detestáveis nas mulheres, um dos mais vis e desprezíveis nos homens. O sábio comando da natureza quer, além disso, que toda essa delicadeza, toda essa ternura de sentimento só tenha plena força no começo, em seguida a vida em comum e os afazeres domésticos vêm enfraquecê-la, pouco a pouco, e transformá-la em amizade familiar.
Sobre a Reforma
Lançar-me-ia num discurso demasiado longo se referisse aqui em particular todas as razões naturais que levam os velhos a retirarem-se dos negócios do mundo: as mudanças de humor, de condições físicas e o enfraquecimento orgânico levam as pessoas e a maior parte dos animais, a afastarem-se pouco a pouco dos seus semelhantes. O orgulho, que é inseparável do amor-ptóprio, substitui-se-lhes à razão: já não pode ser lisonjeado pela maior parle das coisas que lisonjeiam os outros, porque a experiência lhe fez conhecer o valor do que todos os homens desejam na juventude e a impossibilidade de o continuar a disfrutar; as diversas vias que parecem abertas aos jovens para alcançar grandeza, prazeres, reputação e tudo o mais que eleva os homens, estão-lhes vedadas, quer pela fortuna ou pela sua conduta, quer pela inveja ou pela injustiça dos outros; o caminho de reingresso nessas vias é demasiado longo e demasiado árduo para quem já se perdeu nelas; as dificuldades parecem-lhes impossíveis de ultrapassar e a idade já lhes não permite tais pretensões. Tornam-se insensíveis à amizade, não só porque talvez nunca tenham encontrado nenhuma verdadeira, mas também porque viram morrer grande número de amigos que ainda não tinham tido tempo nem ocasião de desiludir a sua amizade e,
A Amizade como Auxiliar da Virtude
A maioria dos homens, na sua injustiça, para não dizer na sua imprudência, quer possuir amigos tais como eles próprios não seriam. Exigem o que não têm. O que é justo é que, primeiro, sejamos homens de bem e em seguida procuremos o que nos pareça sê-lo. Só entre homens virtuosos se pode estabelecer esta conveniência em amizade, sobre a qual insisto há muito tempo. Unidos pela benevolência, guiar-se-ão nas paixões a que se escravizam os outros homens. Amarão a justiça e a equidade. Estarão sempre prontos a tudo empreender uns pelos outros, e não se exigirão reciprocamente nada que não seja honesto e legítimo. Enfim, terão uns para os outros, não somente deferências e ternuras, mas, também, respeito. Eliminar o respeito da amizade é podar-lhe o seu mais belo ornamento.
É pois erro funesto crer que a amizade abre via livre às paixões e a todos os géneros de desordens. A natureza deu-nos a amizade, não como cumplice do vício, mas como auxiliar da virtude.
A fim de que a virtude, que, sozinha, não poderia chegar ao ápice, pudesse atingi-lo com o auxílio e o apoio de tal companhia. Aqueles para quem esta aliança existe, existiu ou existirá,
Regras de Conduta para Viver sem Sobressaltos
Vou indicar-te quais as regras de conduta a seguir para viveres sem sobressaltos. (…) Passa em revista quais as maneiras que podem incitar um homem a fazer o mal a outro homem: encontrarás a esperança, a inveja, o ódio, o medo, o desprezo. De todas elas a mais inofensiva é o desprezo, tanto que muitas pessoas se têm sujeitado a ele como forma de passarem despercebidas. Quem despreza o outro calca-o aos pés, é evidente, mas passa adiante; ninguém se afadiga teimosamente a fazer mal a alguém que despreza. É como na guerra: ninguém liga ao soldado caído, combate-se, sim, quem se ergue a fazer frente.
Quanto às esperanças dos desonestos, bastar-te-á, para evitá-las, nada possuíres que possa suscitar a pérfida cobiça dos outros, nada teres, em suma, que atraia as atenções, porquanto qualquer objecto, ainda que pouco valioso, suscita desejos se for pouco usual, se for uma raridade. Para escapares à inveja deverás não dar nas vistas, não gabares as tuas propriedades, saberes gozar discretamente aquilo que tens. Quanto ao ódio, ou derivará de alguma ofensa que tenhas feito (e, neste caso, bastar-te-á não lesares ninguém para o evitares), ou será puramente gratuito, e então será o senso comum quem te poderá proteger.
Conta só Contigo
Encontrarmo-nos diante das coisas liberta o espírito. Encontrarmo-nos diante dos homens, de dependermos deles, avilta, e tal acontece, quer esta dependência tenha a forma da submissão, quer a da autoridade.
Porquê estes homens entre mim e a natureza?
Nunca ter de contar com um pensamento desconhecido… (porque, nesse caso, somos abandonados ao acaso).
Remédio: fora dos laços fraternos, tratar os homens como um espectáculo e nunca procurar a amizade. Viver no meio dos homens como no vagão de Saint-Etienne a Puy… Sobretudo nunca permitir-se desejar a amizade. Tudo se paga. Conta só contigo.
Amizade sem Tabus
Se a todos nós fosse concedido o poder, como num passe de mágica, de ler a mente uns dos outros, suponho que o primeiro efeito seria que quase todas as amizades se desfariam. O segundo efeito, entretanto, poderia ser excelente, pois um mundo sem amigos seria sentido como intolerável, e nós teríamos de aprender a gostar uns dos outros sem a necessidade de um véu de ilusão para esconder de nós mesmos que não nos consideramos uns aos outros pessoas absolutamente perfeitas. Sabemos que os nossos amigos têm as suas falhas, e que apesar disso são pessoas de um modo geral aprazíveis das quais gostamos. Consideramos intolerável, no entanto, que tenham a mesma atitude conosco. Esperamos que pensem que, ao contrário do resto da humanidade, nós não temos falhas. Quando somos compelidos a reconhecer que temos falhas, tomamos esse facto óbvio com demasiada seriedade.
A Justa Medida no Convívio
Não é necessário esforçar-se demasiado pela abundância quando se tem apenas a intenção de agradar, o valor e a raridade são bem mais consideráveis, a abundância cansa, a menos que seja extremamente diversificada. Pode até mesmo ocorrer, pelo demasiado número de belas coisas, que não se goste tanto, e mesmo que se estime menos aqueles que as fazem ou que as dizem; pois a abundância atrai a inveja que arruína sempre a amizade. Essa abundância faz também com que não se admire mais aquilo que se achava, de início, tão surpreendente, pois fica-se acostumado, e aquilo não parece mais tão difícil.
Em todos os exercícios como a dança, o manejo das armas, voltear ou montar a cavalo, conhecem-se os excelentes mestres do ofício por um não sei quê de livre e desenvolto que agrada sempre, mas que não pode ser muito adquirido sem uma grande prática; não basta ainda ter-se exercitado assim por longo tempo, a menos que tenham sido tomados os melhores caminhos. As graças amam a justeza em tudo o que acabo de dizer; mas de um modo tão ingénuo, que dá a pensar que é um presente da natureza. Isto mostra-se também verdadeiro nos exercícios do espírito e na conversação,
Contento-me com a Simpatia
Eu aprendi a contentar-me com a simpatia. Encontra-se mais facilmente e, depois, não nos impõe nenhum compromisso. «Creia na minha simpatia», no discurso interior precede imediatamente «e agora ocupemo-nos de outra coisa». É um sentimento de presidente de Conselho: obtém-se muito barato, depois das catástrofes. A amizade é menos simples. A sua aquisição é longa e difícil, mas, quando se obtém, já não há meio de nos desembaraçarmos dela, temos de fazer frente.
Três Coisas não se Sofrem sem Discórdia
Príncipes de condição, ainda que o sejam de sangue, são mais enfadonhos que a pobreza; fazem, com sua fidalguia, com que lhe cavemos fidalguias de seus avós, onde não há trigo tão joeirado que não tenha alguma ervilhaca. Já sabeis que «basta um frade ruim para dar que falar a um convento». Três cousas não se sofrem sem discórdia: companhia, namorar, mandar vilão ruim sobre cousa de seu interesse. Não se pode ter paciência com quem quer que lhe façam o que não faz. Desagradecimentos de boas obras, destruem a vontade para não fazê-las a amigo, que tem mais conta com o interesse que com a amizade; rezai dele, que é dos cá nomeados.
Personalidade e Individualidade
Todas as sociedades se têm esforçado por nos iludir e persuadir-nos a concentrar a nossa atenção na personalidade como se ela fosse a nossa individualidade. A personalidade é aquilo que nos é dado pelos outros. A individualidade é aquilo com que nascemos e é a natureza do nosso eu: não pode ser-nos dada por ninguém, nem pode ser-nos tirada por ninguém. A personalidade pode ser dada e tirada. Consequentemente, quando nos identificamos com a nossa personalidade, começamos a ter medo de perdê-la, e sempre que surge uma fronteira além da qual temos de nos fundir, a nossa personalidade recolhe-se. É incapaz de ir além dos limites do que conhece. Trata-se de uma camada muito fina, que nos é imposta. No amor profundo, evapora-se. Numa grande amizade, é impossível discerni-la.
A morte da personalidade nunca é absoluta em nenhum tipo de comunhão.
E nós identificamo-nos com a personalidade: os nossos pais, professores, vizinhos e amigos disseram-nos que somos assim, todos moldaram a nossa personalidade e lhe deram uma forma, fazendo de nós algo que não somos e que nunca poderemos ser. Por isso, somos infelizes, vivendo enclausurados nesta personalidade. É a nossa prisão. No entanto, também temos medo de sair dela,
Da Natureza do Mistério
As coisas misteriosas são o que há de mais belo, grandioso, e doce na existência. Os mais maravilhosos sentimentos são os que nos agitam com certa confusão: pudor, amor casto, amizade virtuosa, rescendem misterioso perfume. Dirieis que os corações amantes com meias palavras se compreendem e se franqueiam. A inocência, santa ignorância, não é per si o mais inefável dos mistérios? Exulta a infância porque tudo ignora; amisera-se a velhice porque tudo sabe: felizmente para ela, principiam os mistérios da morte onde fenecem os da vida. Dá-se nos afectos o que se dá nas virtudes: as mais angélicas são as que, derivadas imediatamente de Deus, à maneira da caridade, folgam de esconder-se à vista, como a origem delas.
O Efeito do Tempo e a Mutabilidade das Coisas
Deveríamos ter sempre diante dos olhos o efeito do tempo e a mutabilidade das coisas, por conseguinte, em tudo o que acontece no momento presente, imaginar de imediato o contrário, portanto, evocar vivamente a infelicidade na felicidade, a inimizade na amizade, o clima ruim no bom, o ódio no amor, a traição e o arrependimento na confiança e na franqueza e vice-versa. Isso seria uma fonte inesgotável de verdadeira prudência para o mundo, na medida em que permaneceríamos sempre precavidos e não seríamos enganados tão facilmente. Na maioria das vezes, teríamos apenas antecipado a acção do tempo. Talvez para nenhum tipo de conhecimento a experiência seja tão imprescindível quanto na avaliação justa da inconstância e mudança das coisas. Ora, como cada estado, pelo tempo da sua duração, existe necessariamente e, portanto, com pleno direito, cada ano, cada mês, cada dia parecem querer conservar o direito de existir por toda a eternidade. Mas nada conserva esse direito, e só a mudança é permanente.
Prudente é quem não é enganado pela estabilidade aparente das coisas e, ainda, antevê a direcção que a mudança tomará. Por outro lado, o que via de regra faz os homens tomarem o estado provisório das coisas ou a direcção do seu curso como permamente é o facto de terem os efeitos diante dos olhos,
A Fronteira Entre a Amizade e o Amor
Há na pura amizade um prazer a que não podem atingir os que nasceram medíocres. A amizade pode subsistir entre pessoas do mesmo sexo a diferentes, isenta mesmo de toda a materialidade. Uma mulher, entretanto, olha sempre um homem como um homem; e reciprocamente, um homem olha uma mulher como uma mulher; essa ligação não é paixão nem pura amizade: constitui uma classe aparte.
O amor nasce bruscamente, sem outra reflexão, por temperamento, ou por fraqueza: um detalhe de beleza nos fixa, nos determina. A amizade, pelo contrário, forma-se pouco a pouco, com o tempo, pela prática, por um longo convívio. Quanta inteligência, bondade, dedicação, serviços e obséquios, nos amigos, para fazer, em anos, muito menos do que faz, às vezes, num minuto, um rosto bonito e uma bela mão!
O tempo, que fortalece as amizades, enfraquece o amor. Enquanto o amor dura, subsiste por si, e às vezes pelo que parece dever extingui-lo: caprichos, rigores, ausência, ciúme; a amizade, pelo contrário, precisa de alento: morre por falta de cuidados, de confiança, de atenção. É mais comum ver um amor extremo que uma amizade perfeita.
O amor e a amizade excluem-se um ao outro. Aquele que teve a experiência de um grande amor descuida a amizade;
O Amor em Portugal
Mesmo que Dom Pedro não tenha arrancado e comido o coração do carrasco de Dona Inês, Júlio Dantas continua a ter razão: é realmente diferente o amor em Portugal. Basta pensar no incómodo fonético de dizer «Eu amo-o» ou «Eu amo-a». Em Portugal aqueles que amam preferem dizer que estão apaixonados, o que não é a mesma coisa, ou então embaraçam seriamente os eleitos com as versões estrangeiras: «I love you» ou «Je t’aime». As perguntas «Amas-me?» ou «Será que me amas?» estão vedadas pelo bom gosto, senão pelo bom senso. Por isso diz-se antes «Gostas mesmo de mim?», o que também não é a mesma coisa.
O mesmo pudor aflige a palavra amante, a qual, ao contrário do que acontece nas demais línguas indo-europeias, não tem em Portugal o sentido simples e bonito de «aquele que ama, ou é amado». Diz-se que não sei-quem é amante de outro, e entende-se logo, maliciosamente, o biscate por fora, o concubinato indecente, a pouca vergonha, o treco-lareco machista da cervejaria, ou o opróbio galináceo das reuniões de «tupperwares» e de costura.
Amoroso não significa cheio de amor, mas sim qualquer vago conceito a leste de levemente simpático, porreiro, ou giríssimo.
Ira Induzida
O melhor remédio para a ira é fazer uma pausa. Pede-a não para perdoares, mas para reflectires: os primeiros impulsos da ira são os mais graves; ela desaparece se tiver que esperar. Não tentes afastá-la por inteiro: conseguirás vencê-la por completo se a arrancares por partes.
Entre os actos que nos ofendem, uns são-nos narrados, outros são vistos ou ouvidos por nós mesmos. Não devemos acreditar prontamente naqueles que nos são narrados: muitos homens mentem para enganar, outros tantos mentem porque foram enganados; outros ganham favores com incriminações e inventam uma ofensa para se mostrarem indignados; outro é um homem maldoso e quer destruir amizades sólidas; outro não merece confiança e gosta de observar ao longe e em segurança as desavenças que cria.
Quando tens que emitir um juízo sobre um qualquer assunto, não poderás admitir os factos sem que deles haja uma testemunha, e a testemunha não tem validade se não houver um juramento; darás a palavra às duas partes, farás um intervalo, não as ouvirás uma vez apenas (a verdade manifesta-se àquele que mais vezes a toma em mãos): e condenas prontamente um amigo? Ficas irado antes de o ouvir, antes de interrogares, antes de permitires-lhe conhecer o acusador ou o crime?
A Verdadeira Amizade
Na verdadeira amizade, em que sou experimentado, dou-me mais ao meu amigo que o puxo para mim. Não só prefiro fazer-lhe bem a que ele mo faça mas ainda que ele o faça a si próprio a que mo faça; faz-me ele, então, o maior bem possível quando a si o faz. E se a sua ausência lhe for quer prazenteira quer útil, torna-se-me ela bem mais agradável que a sua presença; e de resto não é propriamente ausência se há meios de comunicarmos um com o outro. Tirei outrora partido e proveito do nosso afastamento. Em nos separando, melhor e mais amplamente entrávamos em posse da vida: ele vivia, fruía e via para mim, e eu para ele, mais plenamente que se ele estivesse presente. Uma parte de cada um de nós permanecia desocupada quando estávamos juntos: fundíamo-nos num só. A separação espacial tornava mais rica a união das nossas vontades. A insaciável fome da presença física denuncia uma certa fraqueza na fruição mútua das almas.
Sinceridade Proscrita
A verdade permanece sepultada sob as máximas de uma falsa delicadeza. Chama-se saber viver à arte de viver com baixeza. Não se põe diferença entre conhecer o mundo e enganá-lo; e a cerimónia, que deveria ater-se inteiramente ao exterior, introduz-se nos nossos costumes mesmos.
A ingenuidade deixa-se aos espíritos pequenos, como uma marca da sua imbecilidade. A franqueza é olhada como um vício na educação. Nada de pedir que o coração saiba manter o seu lugar; basta que façamos como os outros. É como nos retratos, aos quais não se exige mais do que parecença. Crê-se ter achado o meio de tornar a vida deliciosa, através da doçura da adulação.
Um homem simples que não tem senão a verdade a dizer é olhado como o perturbador do prazer público. Evitam-no, porque não agrada; evita-se a verdade que anuncia, porque é amarga; evita-se a sinceridade que professa porque não dá frutos senão selvagens; temem-na porque humilha, porque revolta o orgulho que é a mais cara das paixões, porque é um pintor fiel, que faz com que nos vejamos tão disformes como somos.
Não há por que nos espantarmos, se ela é rara: é expulsa, proscrita por toda a parte.
Não importunes um homem cuja amizade prezas, pois o mendigares dele te desacreditaria no seu conceito.
Não Amar nem Odiar
Se possível, não devemos alimentar animosidade contra ninguém, mas observar bem e guardar na memória os procedimentos de cada pessoa, para então fixarmos o seu valor, pelo menos naquilo que nos concerne, regulando, assim, a nossa conduta e atitude em relação a ela, sempre convencidos da imutabilidade do carácter. Esquecer qualquer traço ruim de uma pessoa é como jogar fora dinheiro custosamente adquirido. No entanto, se seguirmos o presente conselho, estaremos a proteger-nos da confiabilidade e da amizade tolas.
«Não amar, nem odiar», eis uma sentença que contém a metade da prudência do mundo; «nada dizer e em nada acreditar» contém a outra metade. Decerto, daremos de bom grado as costas a um mundo que torna necessárias regras como estas e como as seguintes.
Mostrar cólera e ódio nas palavras ou no semblante é inútil, perigoso, imprudente, ridículo e comum. Nunca se deve revelar cólera ou ódio a não ser por actos; e estes podem ser praticados tanto mais perfeitamente quanto mais perfeitamente tivermos evitado os primeiros. Apenas animais de sangue frio são venenosos.
Falar sem elevar a voz: essa antiga regra das gentes do mundo tem por alvo deixar ao entendimento dos outros a tarefa de descobrir o que dissemos.