A Subfelicidade
O que mais dói não é – desengana-te – a infelicidade. A infelicidade dói. Magoa. Martiriza. É intensa; faz gritar, sofrer, saltar, chorar. Mas a infelicidade não é o que mais dói. A infelicidade é infeliz – mas não é o que mais dói.
O que mais dĂłi Ă© a subfelicidade. A felicidade mais ou menos, a felicidade que nĂŁo se faz felicidade, que fica sempre a meio de se ser. A quase felicidade. A subfelicidade nĂŁo magoa – vai magoando; a subfelicidade nĂŁo martiriza – vai martirizando. NĂŁo Ă© intensa – mas Ă© imensa; faz gritar, sofrer, saltar, chorar – mas em silĂŞncio, em surdina, em anonimato. Como se nĂŁo fosse. Mas Ă©: a subfelicidade Ă©. A subfelicidade faz-te ficar refĂ©m do que tens – mas nem assim te impede de te sentires apeado do que nĂŁo tens e gostarias de ter. Do que está ali, sempre ali, sempre Ă mĂŁo de semear – e que, mesmo assim, nunca consegues tocar. A subfelicidade Ă© o piso -1 da felicidade. E nĂŁo há elevador algum que te leve a subir de piso. Tens de ser tu a pegar nas tuas perninhas e a subir as escadas. Anda daĂ.
Textos sobre Animais de Pedro Chagas Freitas
3 resultadosA Morte Está atrás do Teu Beijo
A morte está atrás do teu beijo,
e nĂŁo me interessa nada que nĂŁo me possa matar.NĂŁo quero trajectos sem calhaus, pessoas sem problemas, muito menos glĂłrias sem lágrimas. NĂŁo quero o tĂ©dio de sĂł continuar, a obrigação de suportar, andar na rotina sĂł por andar. NĂŁo quero o vai-se andando, o Ă© a vida, o tem de ser, nada que nĂŁo me ponha a gemer. NĂŁo quero o prato sempre saudável, a saladinha impoluta, a cama casta, o sexo virgem. NĂŁo quero o sol o dia todo, a recta sem a mĂnima curva, nĂŁo quero o preto liso nem o branco imaculado, nĂŁo quero o poema perfeito nem a ortografia ilesa. NĂŁo quero aprender apenas com o professor, a palmadinha nas costas, o vá lá que isso passa, a microssatisfação, a minĂşscula euforia. NĂŁo quero os lábios sem lĂngua, a lĂngua sem prazer, fugir do que mete medo, e atĂ© acomodar-me ao que me faz doer. Quero o que nĂŁo cabe no regular, o que nĂŁo se entende nos manuais, o que nĂŁo acontece nos guiões. Quero a ruga esquisita, a mĂŁo descuidada, a estrada arriscada, a chuva, o vento, as unhas cravadas, o animal do instante.
O Teu CĂ©u
É em vida que tens o teu cĂ©u. Mas nĂŁo Ă© um cĂ©u prometido. Um cĂ©u prometido Ă© um cĂ©u precavido, um cĂ©u prevenido – um cĂ©u invertido. O que já sabes que vai ser cĂ©u Ă© um martĂrio. Se sabes que vai ser cĂ©u: entĂŁo Ă© porque nĂŁo Ă© cĂ©u. És tu que, todos os dias, tens de agarrar nas tuas perninhas e no monte de antĂteses de que Ă©s feito. És tu que tens de rezar pelo teu cĂ©u. Mas rezar nĂŁo Ă© de joelhos. Rezar nem sequer Ă© cruzar os dedos e olhar para o cĂ©u Ă espera de que de lá caia alguma coisa. O mais inusitado que podes esperar que caia do cĂ©u sĂŁo perdigotos de quem, como tu, pensa que rezar Ă© dizer meia dĂşzia de palavras com os joelhos dobrados e as mĂŁos unidas em forma de impotĂŞncia. Mas rezar nĂŁo Ă© nada disso. Vou-te explicar o que Ă© rezar. Oremos, irmĂŁo.
Rezar não é ajoelhar nem é falar nem é esperar. Rezar é lutar. Não é por acaso que depois de morrer alguém de quem se gosta se faz o luto. Luto. Ouve bem, lê bem: sente bem. Luto. Luto.