Em Louvor das Crianças
Se há na terra um reino que nos seja familiar e ao mesmo tempo estranho, fechado nos seus limites e simultaneamente sem fronteiras, esse reino Ă© o da infância. A esse paĂs inocente, donde se Ă© expulso sempre demasiado cedo, apenas se regressa em momentos privilegiados — a tais regressos se chama, Ă s vezes, poesia. Essa espĂ©cie de terra mĂtica Ă© habitada por seres de uma tĂŁo grande formosura que os anjos tiveram neles o seu modelo, e foi Ă s crianças, como todos sabem pelos evangelhos, que foi prometido o ParaĂso.
A sedução das crianças provém, antes de mais, da sua proximidade com os animais — a sua relação com o mundo não é a da utilidade, mas a do prazer. Elas não conhecem ainda os dois grandes inimigos da alma, que são, como disse Saint-Exupéry, o dinheiro e a vaidade. Estas frágeis criaturas, as únicas desde a origem destinadas à imortalidade, são também as mais vulneráveis — elas têm o peito aberto às maravilhas do mundo, mas estão sem defesa para a bestialidade humana que, apesar de tanta tecnologia de ponta, não diminui nem se extingue.
O sofrimento de uma criança é de uma ordem tão monstruosa que,
Textos sobre Bem de Eugénio de Andrade
3 resultadosO Acto de Criação é de Natureza Obscura
O acto de criação Ă© de natureza obscura; nele Ă© impossĂvel destrinçar o que Ă© da razĂŁo e o que Ă© do instinto, o que Ă© do mundo e o que Ă© da terra. Nunca nenhum dualismo serviu bem o poeta. Esse «pastor do Ser», na tĂŁo bela expressĂŁo de Heidegger, Ă©, como nenhum outro homem, nostálgico de uma antiga unidade. As mil e uma antinomias, tĂŁo escolarmente elaboradas, quando nĂŁo pervertem a primordial fonte do desejo, pecam sempre por cindir a inteireza que Ă© todo um homem. NĂŁo há vitĂłria definitiva sem a reconciliação dos contrários. É no mar crepuscular e materno da memĂłria, onde as águas «superiores» nĂŁo foram ainda separadas das «inferiores», que as imagens do poeta sonham pela primeira vez com a precária e fugidia luz da terra.
Diante do papel, que «la blancheur dĂ©fend», o poeta Ă© uma longa e sĂł hesitação. Que IfigĂ©nia terá de sacrificar para que o vento propĂcio se levante e as suas naves possam avistar os muros de TrĂłia? Que augĂşrios escuta, que enigmas decifra naquele rumor de sangue em que se debruça cheio de aflição? Porque ao princĂpio Ă© o ritmo; um ritmo surdo, espesso, do coração ou do cosmos — quem sabe onde um começa e o outro acaba?
SĂlaba sobre SĂlaba
Aprendo uma gramática de exĂlio, nas vertentes do silĂŞncio. É uma aprendizagem que requer pernas rijas e mĂŁo segura, coisas de que já nĂŁo me posso gabar, mas embora precárias, sempre as minhas mĂŁos foram animais de paciĂŞncia, e as pernas, essas ainda vĂŁo trepando pelos dias sem ajuda de ninguĂ©m. Sem o desembaraço de muitos, mas tirando partido dos variados acidentes da pedra, que conheço bem, lá vou pondo sĂlaba sobre sĂlaba. Do nascer ao pĂ´r do sol.