O Prazer do Beneficiador é Sempre Maior do que o do Beneficiado
– Não me podes negar um facto, disse ele; é que o prazer do beneficiador é sempre maior do que o do beneficiado. Que é o benefício? É um acto que faz cessar certa privação do beneficiado. Uma vez produzido o efeito essencial, isto é, uma vez cessada a privação, torna o organismo ao estado anterior, ao estado indiferente. Supõe que tens apertado em demasia o cós das calças; para fazer cessar o incómodo, desabotoas o cós, respiras, saboreias um instante de gozo, o organismo torna à indiferença, e não te lembras dos teus dedos que praticaram o acto. Não havendo nada que perdure, é natural que a memória se esvaeça, porque ela não é uma planta aérea, precisa de chão. A esperança de outros favores, é certo, conserva sempre no beneficiado a lembrança do primeiro; mas este facto, aliás um dos mais sublimes que a filosofia pode achar em seu caminho, explica-se pela memória da privação, ou, usando de outra fórmula, pela privação continuada na memória, que repercute a dor passada e aconselha a precaução do remédio oportuno.
Não digo que, ainda sem esta circunstância, não aconteça, algumas vezes, persistir a memória do obséquio, acompanhada de certa afeição mais ou menos intensa;
Textos sobre Bonitos
47 resultadosUm Infinito Domingo à Tarde
Regra geral, um ser humano agora vive tanto que acaba por arrastar muito mais penas do que as que lhe dizem respeito, e isso acaba por notar-se-lhe no rosto. Uma das consequências da crescente longevidade do habitante das sociedades desenvolvidas, em que, por outro lado, não se costuma pensar demasiado, é que, contrariamente ao que sucedia há algumas décadas, os velhos de hoje têm tempo para assistir à devastação da vida dos filhos, veem-nos praticamente envelhecer, fracassar, cansar-se da luta. Antes, na hora da morte dos pais, os filhos eram ainda fortes, tinham projetos, mulheres bonitas, um futuro aparentemente luminoso. Agora é fácil que um avô contemple antes de morrer o divórcio do neto (vê-o aos domingos sentar-se à mesa na casa da família, sem um cêntimo, com a camisa amarrotada), enquanto no mundo anterior a este, por razões de tempo, o neto não era mais do que uma criança que às vezes ia buscar ã escola, a quem dava a mão no regresso a casa e ajudava a conseguir nos alfarrabistas os cromos que lhe faltavam na sua coleção de futebolistas. Hoje, o velho que morre não abandona um mundo em marcha cheio de projetos e promessas, como sucedia dantes,
O Amor Maior
O amor é preocupação. Ter o coração já previamente ocupado. Ter medo que alguma coisa de mal aconteça à pessoa amada. Sofrer mais por não poder aliviar o sofrimento da pessoa amada do que ela própria sofre.
O amor é banal. É por isso que é tão bonito. O que se quer da pessoa amada: antes que ela nos ame também, é que ela seja feliz, que seja saudável, que tudo lhe corra bem. Embora se saiba que o mundo não o permite, passa-se por cima da realidade, do raciocínio do que é possível, e quer-se, e espera-se, que Deus abra, no caso dela, uma excepção.A paixão pode parecer mais interessante. Mas irrita-me que se compare com o amor. Como se pode comparar dois sentimentos que não têm uma única semelhança? Se o amor e a paixão coincidem, é como a cor do céu e do mar num dia de Verão — é uma alegria, mas nada nos diz acerca do que distingue o ar da água.
Dizer que o amor pode começar como paixão é uma forma falaciosa de estabelecer uma continuidade entre uma e outra, geralmente pejorativa para o amor, que é entendido como um resíduo da paixão,
A Tua Alma de Ouro
Meu querido rapaz,
O teu soneto é deveras bonito, e é uma maravilha que esses teus lábios da cor de rosas encarnadas tenham sido feitos tanto para a loucura da música e das canções como para a loucura do beijar. A tua alma de ouro caminha entre a paixão e a poesia. Eu sei que Hyacinthus, que Apollo amou tão perdidamente, eras tu nos tempos Gregos. Porque estás sozinho em Londres, e quando irás para Salisbury? Vai até lá para refrescar as tuas mãos no crepúsculo cinzento das coisas góticas, e vem aqui sempre que quiseres. É um lugar adorável, e falta-lhe apenas a tua pessoa; mais vai primeiro a Salisbury.
Sempre teu, com amor eterno,
Oscar
Todo o Passado é um Erro para cada um de Nós
No fundo, todo o passado é um erro para cada um de nós. E como ninguém é capaz de aceitar corajosamente os erros e de fazer deles um roteiro de sinceridade, contorna-se o problema desta ingénua maneira: recomeçar. Sem nos querermos convencer de que nada pode deixar de ser como é, porque continuamos os mesmos e, só errado, o caminho é bonito e nos apetece.
Falar com Coração
Não é possível dominares as palavras nem, por exemplo, uma qualquer audiência que tenhas à frente se não tiveres um total e absoluto conhecimento a teu próprio respeito, se não confiares em ti e se não tiveres como hábito dar voz aos teus sentidos. Vai sempre soar a falso. Não é possível agarrares uma plateia nem mexer com as emoções de quem te ouve se não te vulnerabilizares, se não te assumires como o ser humano que és e se tudo o que disseres já tiver sido dito por outros. Vais fazer figura de parvo. E não esperes nunca sensibilizar ou gerar identificação em alguém se não falares sobre ti mesmo, se não te expuseres ao erro e se não partilhares o segredo que tu próprio desvendaste para superar um qualquer problema. Vais ver as pessoas a bocejar. As pessoas precisam de saber que não são as únicas a ter problemas por resolver, que há mais gente em busca de si mesma, com crises existenciais e que errar é, afinal, absolutamente humano, assim como desvendar soluções para tudo. É isso que gera identificação, é isso que fortalece os laços entre as pessoas e é isso que te torna num bom comunicador.
Só um Mundo de Amor pode Durar a Vida Inteira
Há coisas que não são para se perceberem. Esta é uma delas. Tenho uma coisa para dizer e não sei como hei-de dizê-la. Muito do que se segue pode ser, por isso, incompreensível. A culpa é minha. O que for incompreensível não é mesmo para se perceber. Não é por falta de clareza. Serei muito claro. Eu próprio percebo pouco do que tenho para dizer. Mas tenho de dizê-lo.
O que quero é fazer o elogio do amor puro. Parece-me que já ninguém se apaixonade verdade. Já ninguém quer viver um amor impossível. Já ninguém aceita amar sem uma razão. Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática. Porque dá jeito. Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado. Porque se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido. Porque é mais barato, por causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e das contas da lavandaria.
Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de antemão, fazem planos e à mínima merdinha entram logo em “diálogo”. O amor passou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornaram-se sócios.Reúnem-se, discutem problemas, tomam decisões.
Como te Tens Lembrado Hoje de Mim?
O que tens tu feito, amor? Andarás, como segunda-feira, cavaleiro andante a flirtar às janelas das ruas do Alto do Pina, com damas de cem anos?… Cem anos, pelo menos… Eu creio mesmo que tu disseste mais alguns… Sempre estás uma prenda, um espertalhão… Tenho que te educar convenientemente e ensinar-te que damas de cem anos e mulheres que fazem queijadas, não servem, ou pelo menos não devem servir, a quem tem a suprema felicidade de possuir uma mulher como eu, que sou uma pérola, ou por outra: um colar de pérolas, como ontem gentilmente me chamaste… Estás de acordo, não é verdade?
A tua pequenina fera está há imenso tempo ansiosa que a chuva acabe, para deitar o focinhito fora do covil, ao menos por cinco minutos; mas não há meio, o diabo da chuva continua a cair sem piedade e daqui a pouco a ferazinha sai mesmo com chuva e tudo. Há tanto tempo que não saio! Em horas de concentração de consciência, eu ponho-me a pensar que nunca julguei capaz que um homem pudesse fazer da Miss América, como muita gente me chamava dantes, esta burguezinha pacata, que, detrás dos vidros duma janela, passa a vida a fazer rendas,
O Amor Português não é um Fenómeno Ternurento
Do carinho e do mimo, toda a gente sabe tudo o que há a saber — e mais um bocado. Do amor, ninguém sabe nada. Ou pensa-se que se sabe, o que é um bocado menos do que nada. O mais que se pode fazer é procurar saber quem se ama, sem querer saber que coisa é o amor que se tem, ou de que sítio vem o amor que se faz.
Do amor é bom falar, pelo menos naqueles intervalos em que não é tão bom amar. Todos os países hão-de ter a sua própria cultura amorosa. A portuguesa é excepcional. Nas culturas mais parecidas com a nossa, é muito maior a diferença que se faz entre o amor e a paixão. Faz-se de conta que o amor é uma coisa — mais tranquila e pura e duradoura — e a paixão é outra — mais doída e complicada e efémera. Em Portugal, porém, não gostamos de dizer que nos «enamoramos», e o «enamoramento» e outras palavras que contenham a palavra «amor» são-nos sempre um pouco estranhas. Quando nós nos perdemos de amores por alguém, dizemos (e nitidamente sentimos) que nos apaixonamos. Aqui, sabe-se lá por que atavismos atlânticos,
O Amor e a Memória
O amor e a memória conspiram juntos. É por não nos conseguirmos lembrar de quem amamos que temos de estar sempre junto dela. A olhar para ela. Cada vez que a vejo sou apanhado de surpresa. Baque do costume. Já chateia. É sempre diferente, mais bonita, mais interessante do que eu pensava.
Porque é que eu não me consigo lembrar da cara dela? Já tentei. Já fiz tudo. Fiquei acordado a tentar aprendê-la de cor. Estudei-a. Sobrancelha por sobrancelha. Dez minutos para cada uma. Tomei apontamentos. Escrevi-a num caderno. Tirei-lhe fotografias. Pendurei-a na parede. Decorei o meu quarto (e os interiores do meu coração) com ela, mas mesmo assim não a consigo ver. No momento em que tiro os olhos dela, desaparece. Os meus olhos prendem-se a ela, mas os olhos dela não param dentro de mim. Isto assusta-me. Ela impressiona-me tanto. Mas não deixa impressão. Deixa um vazio. É isso que o amor faz. Troça de nós. Ou se calhar ela é como um bombardeamento que presencio e esqueço. Como um soldado cheio de medo, escondido na minha trincheira, varro-a da memória. E depois ela volta quando começo a sonhar.
Uma Vida Calma e Tranquila
A primeira pergunta que Diógenes fez a Alexandre é a primeira pergunta que qualquer pessoa inteligente deve fazer a si própria. Diógenes não desperdiçou um único momento.
– Alexandre, estás a tentar conquistar o mundo inteiro. Então e tu? Terás tempo suficiente, depois de conquistares o mundo, para te conheceres a ti próprio? Tens certezas sobre o amanhã ou sobre o próximo momento?
Alexandre nunca tinha conhecido um homem assim. Ele já tinha vencido grandes reis e imperadores, mas percebeu que Diógenes era um homem muito poderoso. Baixando os olhos, Alexandre respondeu:
– Não te posso dizer que esteja certo sobre o momento seguinte. Mas posso prometer-te uma coisa: quando tiver conquistado o mundo, vou desejar descansar e viver uma vida calma, tal como tu.
Diógenes estava a gozar um banho de sol matinal junto a um rio, rodeado por bonitas árvores. Ele riu-se… por vezes penso que o seu riso ainda deve continuar a ecoar.
Pessoas como Diógenes pertencem à eternidade. As suas assinaturas não são feitas na água.
Alexandre sentiu-se ofendido e perguntou-lhe porque se estava a rir.
– É muito simples! – respondeu Diógenes. – Se eu posso descansar e viver uma vida calma sem ter conquistado o mundo,
A Fronteira Entre a Amizade e o Amor
Há na pura amizade um prazer a que não podem atingir os que nasceram medíocres. A amizade pode subsistir entre pessoas do mesmo sexo a diferentes, isenta mesmo de toda a materialidade. Uma mulher, entretanto, olha sempre um homem como um homem; e reciprocamente, um homem olha uma mulher como uma mulher; essa ligação não é paixão nem pura amizade: constitui uma classe aparte.
O amor nasce bruscamente, sem outra reflexão, por temperamento, ou por fraqueza: um detalhe de beleza nos fixa, nos determina. A amizade, pelo contrário, forma-se pouco a pouco, com o tempo, pela prática, por um longo convívio. Quanta inteligência, bondade, dedicação, serviços e obséquios, nos amigos, para fazer, em anos, muito menos do que faz, às vezes, num minuto, um rosto bonito e uma bela mão!
O tempo, que fortalece as amizades, enfraquece o amor. Enquanto o amor dura, subsiste por si, e às vezes pelo que parece dever extingui-lo: caprichos, rigores, ausência, ciúme; a amizade, pelo contrário, precisa de alento: morre por falta de cuidados, de confiança, de atenção. É mais comum ver um amor extremo que uma amizade perfeita.
O amor e a amizade excluem-se um ao outro. Aquele que teve a experiência de um grande amor descuida a amizade;
O Amor em Portugal
Mesmo que Dom Pedro não tenha arrancado e comido o coração do carrasco de Dona Inês, Júlio Dantas continua a ter razão: é realmente diferente o amor em Portugal. Basta pensar no incómodo fonético de dizer «Eu amo-o» ou «Eu amo-a». Em Portugal aqueles que amam preferem dizer que estão apaixonados, o que não é a mesma coisa, ou então embaraçam seriamente os eleitos com as versões estrangeiras: «I love you» ou «Je t’aime». As perguntas «Amas-me?» ou «Será que me amas?» estão vedadas pelo bom gosto, senão pelo bom senso. Por isso diz-se antes «Gostas mesmo de mim?», o que também não é a mesma coisa.
O mesmo pudor aflige a palavra amante, a qual, ao contrário do que acontece nas demais línguas indo-europeias, não tem em Portugal o sentido simples e bonito de «aquele que ama, ou é amado». Diz-se que não sei-quem é amante de outro, e entende-se logo, maliciosamente, o biscate por fora, o concubinato indecente, a pouca vergonha, o treco-lareco machista da cervejaria, ou o opróbio galináceo das reuniões de «tupperwares» e de costura.
Amoroso não significa cheio de amor, mas sim qualquer vago conceito a leste de levemente simpático, porreiro, ou giríssimo.
A Portugalite
Entre as afecções de boca dos portugueses que nem a pasta medicinal Couto pode curar, nenhuma há tão generalizada e galopante como a Portugalite. A Portugalite é uma inflamação nervosa que consiste em estar sempre a dizer mal de Portugal. É altamente contagiosa (transmite-se pela saliva) e até hoje não se descobriu cura.
A Portugalite é contraída por cada português logo que entra em contacto com Portugal. É uma doença não tanto venérea como venal. Para compreendê-la é necessário estudar a relação de cada português com Portugal. Esta relação é semelhante a uma outra que já é clássica na literatura. Suponhamos então que Portugal é fundamentalmente uma meretriz, mas que cada português está apaixonado por ela. Está sempre a dizer mal dela, o que é compreensível porque ela trata-o extremamente mal. Chega até a julgar que a odeia, porque não acha uma única razão para amá-la. Contudo, existem cinco sinais — típicos de qualquer grande e arrastada paixão — que demonstram que os portugueses, contra a vontade e contra a lógica, continuam apaixonados por ela, por muito afectadas que sejam as «bocas» que mandam.
Em primeiro lugar, estão sempre a falar dela. Como cada português é um amante atraiçoado e desgraçado pela mesma mulher,
Indigno do Amor
Não se pode amar uma pessoa que se detesta a si própria. E nesta terra desgraçada, quase toda a gente se detesta a si própria, toda a gente se condena a si própria. Como poderá você amar uma pessoa que se condena a si própria? Essa pessoa não acreditará em si. Ela não se pode amar a si própria — como é que você se atreve? A pessoa não se pode amar a si própria — como pode você amá-la? Suspeitará de que se trata de uma brincadeira, de um embuste, de uma rasteira. Suspeitará que você tenta enganá-la em nome do amor. Será muito cautelosa, vigilante, e a sua suspeita envenenará o seu ser. Quando você ama uma pessoa que se detesta a si própria, está a tentar destruir o conceito que ela faz de si própria. E ninguém deixa facilmente cair o conceito que faz de si mesmo; esse conceito é a sua identidade. Enfrentá-lo-á, provar-lhe-á de que ela tem razão e você não.
É o que está a acontecer a todos os relacionamentos de amor — ou antes a todos os assim-chamados relacionamentos de amor. Acontece entre marido e mulher, entre amante e amado, entre homem e mulher.
Ninguém me Ama a Ponto de Ser Eu
Fiz o que era mais urgente: uma prece. Rezo para achar o meu verdadeiro caminho. Mas descobri que não me entrego totalmente à prece, parece-me que sei que o verdadeiro caminho é com dor. Há uma lei secreta e para mim incompreensível: só através do sofrimento se encontra a felicidade. Tenho medo de mim pois sou sempre apta a poder sofrer. Se eu não me amar estarei perdida — porque ninguém me ama a ponto de ser eu, de me ser. Tenho que me querer para dar alguma coisa a mim. Tenho que valer alguma coisa? Oh protegei-me de mim mesma, que me persigo. Valho qualquer coisa em relação aos outros — mas em relação a mim, sou nada. É tão bom ter a quem pedir. Nem me incomodo muito se eu não for totalmente atendida. Eu peço a Deus para eu ser mais bonita — e não é que meu olho faísca ao mesmo tempo que meus lábios parecem mais doces e cheios? Eu peço a Deus tudo o que eu quero e preciso. É o que me cabe. Ser ou não ser atendida — isso não me cabe a mim, isto já é matéria-mágica que se me dá ou se retrai.
O Homem Pensador e a Mulher Faladora
O homem pensador é necessariamente taciturno. A mulher faladora não consegue atordoar-lhe o espírito, mas faz-lhe nos ouvidos a traquinada intolerável de uma matraca. A matraca afuguenta do coração todas as quimeras do amor. Não vos caseis com homem pensador, mulheres que falais um momento antes de pensar o que direis. O amor —se vo-lo pode inspirar tal homem—fará que não fecheis olhos velando-lhe a doença; fará que lhe sacrifiqueis os haveres, a reputação e a vida; fará tudo que humanamente pode fazer um anjo de sacrifício, mas não vos fará calar. O feudo mais pesado que uma tal mulher pôde impôr a um homem é — a obrigação de ouvi-la.
A ofensa que tal mulher nunca perdoa é — a insolência de ouvi-la, sem escutá-la. Vejam num dicionário a diferença das duas palavras. Escutar é querer ouvir. Uma bela mulher, capaz de extremos, tentou a franqueza do amante que, em vésperas de matrimonio, lhe disse: «não faltes tanto.» A noiva pesou estas palavras, reflectiu, calculou as suas forças, chorou, atormentou-se, e disse: «não me casarei: é impossível calar-me.» Para que me não tomem isto como anedota, é preciso dizer-lhes que esta mulher foi acerbamente ferida no seu orgulho.
Aprendendo a Viver
Thoreau era um filósofo americano que, entre coisas mais difíceis de se assimilar assim de repente, numa leitura de jornal, escreveu muitas coisas que talvez possam nos ajudar a viver de um modo mais inteligente, mais eficaz, mais bonito, menos angustiado.
Thoreau, por exemplo, desolava-se vendo seus vizinhos só pouparem e economizarem para um futuro longínquo. Que se pensasse um pouco no futuro, estava certo. Mas «melhore o momento presente», exclamava. E acrescentava: «Estamos vivos agora.» E comentava com desgosto: «Eles ficam juntando tesouros que as traças e a ferrugem irão roer e os ladrões roubar.»
A mensagem é clara: não sacrifique o dia de hoje pelo de amanhã. Se você se sente infeliz agora, tome alguma providência agora, pois só na sequência dos agoras é que você existe.Cada um de nós, aliás, fazendo um exame de consciência, lembra-se pelo menos de vários agoras que foram perdidos e que não voltarão mais. Há momentos na vida que o arrependimento de não ter tido ou não ter sido ou não ter resolvido ou não ter aceito, há momentos na vida em que o arrependimento é profundo como uma dor profunda.
Ele queria que fizéssemos agora o que queremos fazer.
Os Distraídos e os Organizados
O «distraído» é a figura mais privilegiada de uma família, de um grupo de amigos, de uma empresa. O «distraído» chega sempre atrasado – paciência, é distraído. O «distraído» chumba na escola primária – coitado, é distraído. O «distraído» não dá presentes no Natal – deixa lá, é distraído. O «distraído» não pergunta pelas análises com que nos andávamos a consumir – não foi por mal, já sabes que é distraído. O «distraído» é engraçado e é fofinho. O seu defeito, na verdade, é uma virtude. O «distraído» mete nojo e faz inveja – e, se há uma presença de que não gostamos nunca de dispensar-nos, é a do «distraído». Dá patine, andar com o «distraído». O «distraído» é um charme. O «distraído» é aquilo que nós seríamos se não fôssemos esta desgraça que somos.
Porque depois, ao longo da vida, o «distraído» fica com os melhores empregos. O «distraído», bem vistas as coisas, não é aluado: é criativo – é um artista. E o «distraído» fica sempre com as raparigas mais giras também. Naturalmente: só é distraído quem pode – e o «distraído» é o mais bonito de nós todos. Também por isso, aliás, nos dá jeito emparceirar com o «distraído»: sempre pode ser que a gorda sobre para nós.
A Beleza Maior é a que não se Vê
– Hoje, durante o meu passeio matinal, vi uma linda mulher… Meu Deus, que linda que ela era! (…)
– Sério, sr. Spinell? Descreva-ma então.
– Não, não posso! Dar-lhe-ia uma imagem imperfeita dela. Ao passar, mal a vi; na verdade, não a vi. Apercebi-me, porém, da sua sombra esfumada, e isso bastou para me excitar a imaginação e guardar dela uma imagem de beleza. Meu Deus, que linda imagem!
A mulher do sr. Klöterjahn sorriu.
– É essa a sua maneira de olhar para as mulheres bonitas, senhor Spinell?
– Sim, minha senhora, é; é muito melhor do que olhá-las fixamente na cara, com uma grosseira avidez da realidade, para no fim ficarmos com uma impressão falsa…