Textos sobre Cara

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Textos de cara escritos por poetas consagrados, filósofos e outros autores famosos. Conheça estes e outros temas em Poetris.

O Amor Português não é um Fenómeno Ternurento

Do carinho e do mimo, toda a gente sabe tudo o que há a saber — e mais um bocado. Do amor, ninguém sabe nada. Ou pensa-se que se sabe, o que é um bocado menos do que nada. O mais que se pode fazer é procurar saber quem se ama, sem querer saber que coisa é o amor que se tem, ou de que sítio vem o amor que se faz.

Do amor é bom falar, pelo menos naqueles intervalos em que não é tão bom amar. Todos os países hão-de ter a sua própria cultura amorosa. A portuguesa é excepcional. Nas culturas mais parecidas com a nossa, é muito maior a diferença que se faz entre o amor e a paixão. Faz-se de conta que o amor é uma coisa — mais tranquila e pura e duradoura — e a paixão é outra — mais doída e complicada e efémera. Em Portugal, porém, não gostamos de dizer que nos «enamoramos», e o «enamoramento» e outras palavras que contenham a palavra «amor» são-nos sempre um pouco estranhas. Quando nós nos perdemos de amores por alguém, dizemos (e nitidamente sentimos) que nos apaixonamos. Aqui, sabe-se lá por que atavismos atlânticos,

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A Doutrina do Objectivo da Vida

Quer considere os homens com bondade ou malevolência, encontro-os sempre, a todos e a cada um em particular, empenhados na mesma tarefa: tornar-se úteis à conservação da espécie. E isto não por amor a essa espécie, mas simplesmente porque não há neles nada mais antigo, mais poderoso, mais impiedoso e mais invencível do que esse instinto… porque esse instinto é propriamente a essência da nossa espécie, do nosso rebanho.

Se bem que se chegue assaz rapidamente, com a miopia ordinária, a separar a cinco passos os nossos semelhantes em úteis e em prejudiciais, em seres bons e maus, quando fazemos o nosso balanço final e reflectimos sobre o conjunto acabamos por desconfiar destas depurações, destas distinções, e acabamos por renunciar a elas.

Talvez o homem mais prejudicial seja ainda, no fim de contas, o mais útil à conservação da espécie; porque sustenta em si mesmo, ou nos outros, com a sua acção, instintos sem os quais a humanidade estaria há muito tempo mole e corrompida. O ódio, o prazer de prejudicar, a sede de tomar e de dominar, e, de uma maneira geral, tudo aquilo a que se dá o nome de mal, não passam no fundo de um dos elementos da espantosa economia da conservação da espécie;

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O Amor e a Memória

O amor e a memória conspiram juntos. É por não nos conseguirmos lembrar de quem amamos que temos de estar sempre junto dela. A olhar para ela. Cada vez que a vejo sou apanhado de surpresa. Baque do costume. Já chateia. É sempre diferente, mais bonita, mais interessante do que eu pensava.
Porque é que eu não me consigo lembrar da cara dela? Já tentei. Já fiz tudo. Fiquei acordado a tentar aprendê-la de cor. Estudei-a. Sobrancelha por sobrancelha. Dez minutos para cada uma. Tomei apontamentos. Escrevi-a num caderno. Tirei-lhe fotografias. Pendurei-a na parede. Decorei o meu quarto (e os interiores do meu coração) com ela, mas mesmo assim não a consigo ver. No momento em que tiro os olhos dela, desaparece. Os meus olhos prendem-se a ela, mas os olhos dela não param dentro de mim. Isto assusta-me. Ela impressiona-me tanto. Mas não deixa impressão. Deixa um vazio. É isso que o amor faz. Troça de nós. Ou se calhar ela é como um bombardeamento que presencio e esqueço. Como um soldado cheio de medo, escondido na minha trincheira, varro-a da memória. E depois ela volta quando começo a sonhar.

O Cidadão Lúcido em Vez do Consumidor Irracional

Já se sabe que não somos um povo alegre (um francês aproveitador de rimas fáceis é que inventou aquela de que «les portugais sont toujours gais»), mas a tristeza de agora, a que o Camões, para não ter de procurar novas palavras, talvez chamasse simplesmente «apagada e vil», é a de quem se vê sem horizontes, de quem vai suspeitando que a prosperidade prometida foi um logro e que as aparências dela serão pagas bem caras num futuro que não vem longe. E as alternativas, onde estão, em que consistem? Olhando a cara fingidamente satisfeita dos europeus, julgo não serem previsíveis, tão cedo, alternativas nacionais próprias (torno a dizer: nacionais, não nacionalistas), e que da crise profunda, crise económica, mas também crise ética, em que patinhamos, é que poderão, talvez — contentemo-nos com um talvez —, vir a nascer as necessárias ideias novas, capazes de retomar e integrar a parte melhor de algumas das antigas, principiando, sem prévia definição condicional de antiguidade ou modernidade, por recolocar o cidadão, um cidadão enfim lúcido e responsável, no lugar que hoje está ocupado pelo animal irracional que responde ao nome de consumidor.

A Cobardia como Pilar da Civilização

Costuma-se jogar na cara dos marxistas, com a sua concepção materialista da História, que eles subestimam certas qualidades espirituais do homem que não dependem de quanto ele ganhe ou deixe de ganhar. O argumento é o de que essas qualidades colorem as aspirações e actividades do homem civilizado tanto quanto são coloridas pela sua condição material, tornando assim impossível simplesmente
reduzir o homem a uma máquina económica. Como exemplos, os antimarxistas citam o patriotismo, a piedade, o senso estético e a vontade de conhecer Deus. Infelizmente, os exemplos são mal escolhidos. Milhões de homens não ligam para o patriotismo, a piedade ou o senso estético, não têm o menor interesse activo em conhecer Deus. Por que é que os antimarxistas não citam uma qualidade espiritual que seja verdadeiramente universal? Pois aqui vai uma. Refiro-me à cobardia. De uma forma ou de outra, ela é visível em todo o ser humano; serve também para separar o homem de todos os outros animais superiores. A cobardia, acredito, está na base de todo o sistema de castas e na formação de todas as sociedades organizadas, inclusive as mais democráticas. Para escapar de ir à guerra ele próprio, o camponês deva de mão beijada certos privilégios aos guerreiros – e destes privilégios brotou toda a estrutura da civilização.

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O Destino de Cada Homem é o Seu Maior Prazer

No ser vivo toda a necessidade essencial, que brota do próprio ser e não lhe advém de fora acidentalmente, vai acompanhada de voluptuosidade. A voluptuosidade é a cara, a facies da felicidade. E todo o ser é feliz quando satisfaz o seu destino, isto é, quando segue a encosta da sua inclinação, da sua necessidade essencial, quando se realiza, quando está a ser o que é na verdade. Por esta razão Schlegel dizia, invertendo a relação entre voluptuosidade e destino: «Para o que nos agrada temos génio». O génio, isto é, o dom superlativo de um ser para fazer alguma coisa tem sempre simultaneamente uma fisionomia de supremo prazer. Num dia que está próximo e graças a uma transbordante evidência vamo-nos ver surpreendidos e obrigados a descobrir o que agora somente parecerá uma frase: que o destino de cada homem é, ao mesmo tempo, o seu maior prazer.

A Superficialidade dos Grandes Espíritos

Não há nada de mais perigoso para o espírito do que a sua relação com as grandes coisas. Alguém deambula por uma floresta, sobe a um monte e vê o mundo estendido a seus pés, olha para um filho que lhe colocam pela primeira vez nos braços, ou desfruta da felicidade de assumir uma posição invejada por todos. Perguntamos: o que se passa nele em tais momentos? Ele próprio certamente pensa que são muitas coisas, profundas e importantes; mas não tem presença de espírito suficiente para, por assim dizer, as tomar à letra. O que há de admirável, diante dele e fora dele, que o encerra numa espécie de gaiola magnética, arranca os pensamentos do seu interior. O seu olhar perde-se em mil pormenores, mas ele tem a secreta sensação de ter esgotado todas as munições. Lá fora, esse momento inspirado, solar, profundo, essa grande hora, recobre o mundo com uma camada de prata galvanizada que penetra todas as folhinhas e veias; mas na outra extremidade em breve se começa a notar uma certa falta de substância interior, e nasce aí uma espécie de grande «O», redondo e vazio. Este estado é o sintoma clássico do contacto com tudo o que é eterno e grande,

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Quando nos Apaixonamos

Quando nos apaixonamos, ou estamos prestes a apaixonar-nos, qualquer coisinha que essa pessoa faz – se nos toca na mão ou diz que foi bom ver-nos, sem nós sabermos sequer se é verdade ou se quer dizer alguma coisa — ela levanta-nos pela alma e põe-nos a cabeça a voar, tonta de tão feliz e feliz de tão tonta. E, logo no momento seguinte, larga-nos a mão, vira a cara e espezinha-nos o coração, matando a vida e o mundo e o mundo e a vida que tínhamos imaginado para os dois. Lembro-me, quando comecei a apaixonar-me pela Maria João, da exaltação e do desespero que traziam essas importantíssimas banalidades. Lembro-me porque ainda agora as senti. Não faz sentido dizer que estou apaixonado por ela há quinze anos. Ou ontem. Ainda estou a apaixonar-me.

Gosto mais de estar com ela a fazer as coisas mais chatas do mundo do que estar sozinho ou com qualquer outra pessoa a fazer as coisas mais divertidas. As coisas continuam a ser chatas mas é estar com ela que é divertido. Não importa onde se está ou o que se está a fazer. O que importa é estar com ela. O amor nunca fica resolvido nem se alcança.

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O Amor em Portugal

Mesmo que Dom Pedro não tenha arrancado e comido o coração do carrasco de Dona Inês, Júlio Dantas continua a ter razão: é realmente diferente o amor em Portugal. Basta pensar no incómodo fonético de dizer «Eu amo-o» ou «Eu amo-a». Em Portugal aqueles que amam preferem dizer que estão apaixonados, o que não é a mesma coisa, ou então embaraçam seriamente os eleitos com as versões estrangeiras: «I love you» ou «Je t’aime». As perguntas «Amas-me?» ou «Será que me amas?» estão vedadas pelo bom gosto, senão pelo bom senso. Por isso diz-se antes «Gostas mesmo de mim?», o que também não é a mesma coisa.

O mesmo pudor aflige a palavra amante, a qual, ao contrário do que acontece nas demais línguas indo-europeias, não tem em Portugal o sentido simples e bonito de «aquele que ama, ou é amado». Diz-se que não sei-quem é amante de outro, e entende-se logo, maliciosamente, o biscate por fora, o concubinato indecente, a pouca vergonha, o treco-lareco machista da cervejaria, ou o opróbio galináceo das reuniões de «tupperwares» e de costura.
Amoroso não significa cheio de amor, mas sim qualquer vago conceito a leste de levemente simpático, porreiro, ou giríssimo.

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A Portugalite

Entre as afecções de boca dos portugueses que nem a pasta medicinal Couto pode curar, nenhuma há tão generalizada e galopante como a Portugalite. A Portugalite é uma inflamação nervosa que consiste em estar sempre a dizer mal de Portugal. É altamente contagiosa (transmite-se pela saliva) e até hoje não se descobriu cura.

A Portugalite é contraída por cada português logo que entra em contacto com Portugal. É uma doença não tanto venérea como venal. Para compreendê-la é necessário estudar a relação de cada português com Portugal. Esta relação é semelhante a uma outra que já é clássica na literatura. Suponhamos então que Portugal é fundamentalmente uma meretriz, mas que cada português está apaixonado por ela. Está sempre a dizer mal dela, o que é compreensível porque ela trata-o extremamente mal. Chega até a julgar que a odeia, porque não acha uma única razão para amá-la. Contudo, existem cinco sinais — típicos de qualquer grande e arrastada paixão — que demonstram que os portugueses, contra a vontade e contra a lógica, continuam apaixonados por ela, por muito afectadas que sejam as «bocas» que mandam.

Em primeiro lugar, estão sempre a falar dela. Como cada português é um amante atraiçoado e desgraçado pela mesma mulher,

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Sinceridade Proscrita

A verdade permanece sepultada sob as máximas de uma falsa delicadeza. Chama-se saber viver à arte de viver com baixeza. Não se põe diferença entre conhecer o mundo e enganá-lo; e a cerimónia, que deveria ater-se inteiramente ao exterior, introduz-se nos nossos costumes mesmos.
A ingenuidade deixa-se aos espíritos pequenos, como uma marca da sua imbecilidade. A franqueza é olhada como um vício na educação. Nada de pedir que o coração saiba manter o seu lugar; basta que façamos como os outros. É como nos retratos, aos quais não se exige mais do que parecença. Crê-se ter achado o meio de tornar a vida deliciosa, através da doçura da adulação.
Um homem simples que não tem senão a verdade a dizer é olhado como o perturbador do prazer público. Evitam-no, porque não agrada; evita-se a verdade que anuncia, porque é amarga; evita-se a sinceridade que professa porque não dá frutos senão selvagens; temem-na porque humilha, porque revolta o orgulho que é a mais cara das paixões, porque é um pintor fiel, que faz com que nos vejamos tão disformes como somos.
Não há por que nos espantarmos, se ela é rara: é expulsa, proscrita por toda a parte.

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Não Estás a Ver

Todos os dias, todos nós assistimos – seja como utentes, vítimas ou observadores – a uma prática irritantemente portuguesa.
Alguém faz uma longa e pormenorizada descrição de uma coisa extraordinária (ou, mais amiúde, banal) que lhe aconteceu. Nós ouvimos, com paciência e empatia exageradas, e comentamos conforme as mais bem equilibradas expectativas.
Descrevem-nos um momento de horror (“atravessou-se um gato na estrada, tive de desviar-me e quase bati noutro carro”) e, quando nós simpatizamos (muitos de nós tendo passado pela mesma experiência de medo de morrer ou matar), o nosso interlocutor dá como perdidos os quartos de hora que gastou a dar-nos uma narrativa completa e, apesar da nossa sincera afirmação de empatia (“Coitado! Sei exactamente o que sentiste!”), atira-nos invariavelmente à cara a mesma psicopática acusação: “Não estás a ver!”
É português pensar que aquilo que se sente ou que nos acontece não pode ser sentido ou acontecer a mais ninguém. Temos a ideia estúpida, avançada por Camões – do saber de experiência feito -, que cada um sabe o que sabe e vive o que vive. Dizer “não estás a ver” a quem vê perfeitamente – o mais das vezes espontaneamente – é uma espécie de distanciação.

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O Temor Combate-se com a Esperança

Não haverá razão para viver, nem termo para as nossas misérias, se fôr mister temer tudo quanto seja temível. Neste ponto, põe em acção a tua prudência; mercê da animosidade de espírito, repele inclusive o temor que te acomete de cara descoberta. Pelo menos, combate uma fraqueza com outra: tempera o receio com a esperança. Por certo que possa ser qualquer um dos riscos que tememos, é ainda mais certo que os nossos temores se apaziguam, quando as nossas esperanças nos enganam.
Estabelece equilíbrio, pois, entre a esperança e o temor; sempre que houver completa incerteza, inclina a balança em teu favor: crê no que te agrada. Mesmo que o temor reuna maior número de sufrágios, inclina-a sempre para o lado da esperança; deixa de afligir o coração, e figura-te, sem cessar, que a maior parte dos mortais, sem ser afectada, sem se ver seriamente ameaçada por mal algum, vive em permanente e confusa agitação. É que nenhum conserva o governo de si mesmo: deixa-se levar pelos impulsos, e não mantém o seu temor dentro de limites razoáveis. Nenhum diz:
– Autoridade vã, espírito vão: ou inventou, ou lho contaram.
Flutuamos ao mínimo sopro. De circunstâncias duvidosas,

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Escrever é Triste

Escrever é triste. Impede a conjugação de tantos outros verbos. Os dedos sobre o teclado, as letras se reunindo com maior ou menor velocidade, mas com igual indiferença pelo que vão dizendo, enquanto lá fora a vida estoura não só em bombas como também em dádivas de toda natureza, inclusive a simples claridade da hora, vedada a você, que está de olho na maquininha. O mundo deixa de ser realidade quente para se reduzir a marginália, puré de palavras, reflexos no espelho (infiel) do dicionário.
O que você perde em viver, escrevinhando sobre a vida. Não apenas o sol, mas tudo que ele ilumina. Tudo que se faz sem você, porque com você não é possível contar. Você esperando que os outros vivam, para depois comentá-los com a maior cara-de-pau (“com isenção de largo espectro”, como diria a bula, se seus escritos fossem produtos medicinais). Selecionando os retalhos de vida dos outros, para objeto de sua divagação descompromissada. Sereno. Superior. Divino. Sim, como se fosse deus, rei proprietário do universo, que escolhe para o seu jantar de notícias um terremoto, uma revolução, um adultério grego — às vezes nem isso, porque no painel imenso você escolhe só um besouro em campanha para verrumar a madeira.

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A Minha Poesia

A minha poesia e a minha vida fluíram como um rio americano, como uma torrente de águas do Chile, nascidas na intimidade profunda das montanhas austrais e dirigindo sem cessar para uma saída marítima o movimento do caudal. A minha poesia não rejeitou nada do que pôde transportar nas suas águas. Aceitou a paixão, desenvolveu o mistério, abriu passagem nos corações do povo.

Coube-me sofrer e lutar, amar e cantar. Tocaram-me na partilha do mundo o triunfo e a derrota, provei o gosto do pão e do sangue. Que mais quer um poeta? Todas as alternativas, do pranto até aos beijos, da solidão até ao povo, estão vivas na minha poesia, reagem nela, porque vivi para a minha poesia e porque a poesia sustentou as minhas lutas. E se muitos prémios alcancei, prémios fugazes como borboletas de pólen evasivo, alcancei um prémio maior, um prémio que muitos desdenham, mas que, na realidade, é para muitos inatingível.

Consegui chegar, através de uma dura lição de estética e rebusca, através dos labirintos da palavra escrita, à altura de poeta do meu povo. O meu prémio maior é esse — não os livros e os poemas traduzidos, não os livros escritos para descreverem ou dissecarem as palavras dos meus livros.

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As Mães

Quando voltar ao Alentejo as cigarras já terão morrido. Passaram o verão todo a transformar a luz em canto – não sei de destino mais glorioso. Quem lá encontraremos, pela certa, são aquelas mulheres envolvidas na sombra dos seus lutos, como se a terra lhes tivesse morrido e para todo o sempre se quedassem órfãs. Não as veremos apenas em Barrancos ou em Castro Laboreiro, elas estão em toda a parte onde nasça o sol: em Cória ou Catania, em Mistras ou Santa Clara del Cobre, em Varchats ou Beni Mellal, porque elas são as Mães. O olhar esperto ou sonolento, o corpo feito um espeto ou mal podendo com as carnes, elas são as Mães. A tua; a minha, se não tivera morrido tão cedo, sem tempo para que o rosto viesse a ser lavrado pelo vento. Provavelmente estão aí desde a primeira estrela. E como duram! Feitas de urze ressequida, parecem imortais. Se o não forem, são pelo menos incorruptíveis, como se participassem da natureza do fogo. Com mãos friáveis teceram a rede dos nossos sonhos, alimentaram-nos com a luz coada pela obscuridade dos seus lenços. Às vezes encostam-se à cal dos muros a ver passar os dias,

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A Falácia do Sucesso

Abominável coisa é o bom êxito, seja dito de passagem. A sua falsa parecença com o merecimento ilude os homens. Para o vulgo, o bom sucesso equivale à supremacia. A vítima dos logros do triunfo, desse menecma da habilidade, é a história. Só Tácito e Juvenal se lhe opõem. Existe na época e sente uma filosofia quase oficial, que envergou a libré do bom êxito e lhe faz o serviço da antecâmara. Fazei por serdes bem sucedido, é a teoria. Prosperidade supõe capacidade. Ganhai na lotaria, sereis um homem hábil. Quem triunfa é venerado. Nascei bem-fadado, não queirais mais nada. Tende fortuna, que o resto por si virá; sede feliz, julgar-vos-ão grande. Se pusermos de parte as cinco ou seis excepções imensas que fazem o esplendor de um século, a admiração contemporânea é apenas miopia. Duradora é ouro. Pouco importa que não sejais ninguém, contanto que consigais alguma coisa.
O vulgo é um narciso velho, que se idolatra a si próprio e aplaude o vulgar. A faculdade sublime de ser Moisés, Esquilo, Dante, Miguel Ângelo ou Napoleão, decreta-a a multidão indistintamente e por unanimidade a quem atinge o alvo que se propôs, seja no que for. Que um tabelião se transforme em deputado;

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Uma Completa Fome por Ti

Anais,

Não esperes que continue são. Não vamos ser sensatos. Foi um casamento, em Louveciennes — não podes negá-lo. Voltei com pedaços de ti pegados a mim. Estou a andar, a nadar num oceano de sangue, o teu sangue andaluz, destilado e venenoso. Tudo o que faço e digo e penso tem a ver com o casamento. Vi-te como a senhora do teu lar, uma moura de cara pesada, uma negra com um corpo branco, olhos por toda a tua pele, mulher, mulher, mulher. Não consigo ver como conseguirei viver longe de ti — estas interrupções são uma morte. Como te pareceu quando o Hugo voltou? Eu continuava aí? Não consigo imaginar-te a moveres-te com ele como fizeste comigo. Pernas fechadas. Fragilidade. Doce, traiçoeira aquiescência. Docilidade de pássaro. Tornaste-te uma mulher comigo. Isso quase me aterrorizou. Não tens só trinta anos de idade… Tens mil anos de idade.

Aqui estou de volta e ainda fervilhando de paixão, como vinho a fermentar. Não uma paixão apenas da carne, mas uma completa fome por ti, uma fome devoradora. Leio no jornal acerca de suicídios e homicídios e compreendo-o perfeitamente. Sinto-me assassino, suicida. Sinto talvez ser uma desgraça nada fazer,

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A Beleza Maior é a que não se Vê

– Hoje, durante o meu passeio matinal, vi uma linda mulher… Meu Deus, que linda que ela era! (…)
– Sério, sr. Spinell? Descreva-ma então.
– Não, não posso! Dar-lhe-ia uma imagem imperfeita dela. Ao passar, mal a vi; na verdade, não a vi. Apercebi-me, porém, da sua sombra esfumada, e isso bastou para me excitar a imaginação e guardar dela uma imagem de beleza. Meu Deus, que linda imagem!
A mulher do sr. Klöterjahn sorriu.
– É essa a sua maneira de olhar para as mulheres bonitas, senhor Spinell?
– Sim, minha senhora, é; é muito melhor do que olhá-las fixamente na cara, com uma grosseira avidez da realidade, para no fim ficarmos com uma impressão falsa…