As Saudades que Sinto de Ti
Meu Bebé, meu Bebezinho querido:
Sem saber quando te entregarei esta carta, estou escrevendo em casa, hoje, domingo, depois de acabar de arrumar as coisas para a mudança de amanhã de manhã. Estou outra vez mal da garganta; está um dia de chuva; estou longe de ti — e é isto tudo o que tenho para me entreter hoje, com a perspectiva da maçada da mudança amanhã, com chuva talvez e comigo doente, para uma casa onde não está absolutamente ninguém. Naturalmente (a não ser que esteja já inteiramente bom e arranje as coisas de qualquer modo, o que faço é ir pedir guarida cá na Baixa ao Marianno Sant’Anna, que, além de ma dar de bom grado, me trata da garganta com competência, como fez no dia 19 deste mês quando eu tive a outra angina.
Não imaginas as saudades de ti que sinto nestas ocasiões de doença, de abatimento e de tristeza. O outro dia, quando falei contigo a propósito de eu estar doente, pareceu-me (e creio que com razão) que o assunto te aborrecia, que pouco te importavas com isso. Eu compreendo bem que, estando tu de saúde, pouco te rales com o que os outros sofrem,
Textos sobre Casas de Fernando Pessoa
11 resultadosO Significado dos Sonhos
Os meu sonhos eram de muitas espécies mas representavam manifestações de um único estado de alma. Ora sonhava ser um Cristo, a sacrificar-me para redimir a humanidade, ora um Lutero, a quebrar com todas as convenções estabelecidas, ora um Nero, mergulhado em sangue e na luxúria da carne. Ora me via numa alucinação o amado das multidões, aplaudido, desfilando ao longo (…), ora o amado das mulheres, atraindo-as arrebatadoramente para fora das suas casas, dos seus lares, ora o desprezado por todos embora o eleito do bem, por todos a sacrificar-me. Tudo o que lia, tudo o que ouvia, tudo o que via — cada ideia vinda de fora, cada (…), cada acontecimento era o ponto de partida de um sonho. Vinha de um circo e ficava em casa ousando imaginar-me um palhaço, com luzes em arco à minha volta. Via soldados passarem na minha mente a falarem com uma visão de mim próprio, tratando-me por capitão, chefiando, ordenando, vitorioso. Quando lia algo acerca de aventureiros imediatamente me convertia neles, por completo. Quando lia algo acerca de criminosos, morria por cometer crimes até me apavorar com o meu desarranjo mental. Conforme as coisas que via, ou ouvia, ou lia, vivia em todas as classes sociais,
O Mal em Mim
NĂŁo sou capaz de explicar a sensação do mal em mim; representava, nesse perĂodo da minha vida de que falo, a fonte de uma angĂşstia inexprimĂvel. Os homens constroem teorias estranhas sobre o bem e o mal, sobre os castigos e as recompensas; procuram assim a verdade que nunca em vida poderĂŁo saber.
Foi muito bom para mim e para a minha famĂlia o facto de eu ter sempre ficado em casa e conservado sem esforço o meu antigo modo de ser calmo atĂ© aos quinze anos. Nessa altura, porĂ©m, mandaram-me para uma escola longe da minha casa, onde o ser latente em mim que tanto temia despertou e começou a agir e a insinuar-se na vida humana.
Quando digo que sentia haver muito mal dentro de mim, nĂŁo quero dizer que estivesse desde sempre condenado a uma vida de infâmia ou de vĂcio. Quero dizer, porĂ©m, isto — que havia em mim uma forte atracção por todas as coisas censuráveis que assediam o homem: podia controlar ou podia satisfazer esta atracção, mas uma vez satisfeita, mesmo sĂł um pouco, era provável que eu nunca mais me pudesse controlar. Resolvi satisfazer essa atracção, e a partir desse momento,
Procurei a Verdade Ardentemente
A nossa ânsia de verdade é grande, e por certo o que quiséramos fora, não esta doutrina do Limiar, senão a casa e o lar que há nele.
De aĂ a arte, feita para entretimento dos outros e nossa ocupação, dos que somos ocupáveis desse modo. Negada a verdade, nĂŁo temos com que entreter-nos senĂŁo a mentira. Com ela nos entretenhamos, dando-a porĂ©m como tal, que nĂŁo como verdade; se uma hipĂłtese metafĂsica nos ocorre, façamos com ela, nĂŁo a mentira de um sistema (onde possa ser verdade) mas a verdade de um poema ou de uma novela – verdade em saber que Ă© mentira, e assim nĂŁo mentir. (…) e assim construĂ para mim esta regra de vida.
Procurei a verdade ardentemente, ora com uma atenção (…)
Espontaneidade PĂşblica Inexistente
O pĂşblico nĂŁo Ă© crĂtico, nĂŁo pensa espontaneamente. Na escolha do que lĂŞ, na prĂłpria disposição do seu bom gosto, Ă© guiado por influĂŞncias externas. Este fenĂłmeno vĂŞ-se com particular clareza no caso das modas, mormente nas do vestuário, em que determinadas casas de criações do gĂ©nero determinam o que há de ser de bom gosto, e efectivamente todo o pĂşblico segue o critĂ©rio que lhe Ă© assim imposto. É frequente, anos mais tarde, o homem ou a mulher que se teve por vestindo com o melhor gosto em tal Ă©poca, pasmar, ante um seu retrato e vendo-o Ă luz de novas modas e novos tipos de gosto, de como algum dia considerou de bom gosto ou de qualquer espĂ©cie de elegância o desastrado fato ou vestido que relembra.
Temos, pois, que para o pĂşblico apreciar um pintor, um poeta, um mĂşsico, que nĂŁo seja banal, tem que haver quem chame a atenção do pĂşblico para ele. O espĂrito humano espontaneamente aceita sĂł o que já conhece; e como o valor, em qualquer secção da actividade humana superior, reside essencialmente na originalidade, resulta que nĂŁo há aceitação espontânea, nem a pode haver, de um autor ou artista, que seja espontaneamente aceite pelo pĂşblico.
Meu Bebé para Dar Dentadas
Meu Bebé pequeno e rabino:
Cá estou em casa, sozinho, salvo o intelectual que está pondo o papel nas paredes (pudera! havia de ser no tecto ou no chão!); e esse não conta. E, conforme prometi, vou escrever ao meu Bebezinho para lhe dizer, pelo menos, que ela é muito má, excepto numa cousa, que é na arte de fingir, em que vejo que é mestra.
Sabes? Estou-te escrevendo mas «não estou pensando em ti». Estou pensando nas saudades que tenho do meu tempo da «caça aos pombos»; e isto é uma cousa, como tu sabes, com que tu não tens nada…
Foi agradável hoje o nosso passeio — não foi? Tu estavas bem-disposta, e eu estava bem-disposto, e o dia estava bem-disposto também. (O meu amigo, Sr. A.A. Crosse está de saúde — uma libra de saúde por enquanto, o bastante para não estar constipado.)
NĂŁo te admires de a minha letra ser um pouco esquisita. Há para isso duas razões. A primeira Ă© a de este papel (o Ăşnico acessĂvel agora) ser muito corredio, e a pena passar por ele muito depressa; a segunda Ă© a de eu ter descoberto aqui em casa um vinho do Porto esplĂŞndido,
A Felicidade vem da Monotonia
Em sua essência a vida é monótona. A felicidade consiste pois numa adaptação razoavelmente exacta à monotonia da vida. Tornarmo-nos monótonos é tornarmo-nos iguais à vida; é, em suma, viver plenamente. E viver plenamente é ser feliz.
Os ilógicos doentes riem – de mau grado, no fundo – da felicidade burguesa, da monotonia da vida do burguês que vive em regularidade quotidiana e, da mulher dele que se entretém no arranjo da casa e se distrai nas minúcias de cuidar dos filhos e fala dos vizinhos e dos conhecidos. Isto, porém, é que é a felicidade.
Parece, a princĂpio, que as cousas novas Ă© que devem dar prazer ao espĂrito; mas as cousas novas sĂŁo poucas e cada uma delas Ă© nova sĂł uma vez. Depois, a sensibilidade Ă© limitada, e nĂŁo vibra indefinidamente. Um excesso de cousas novas acabará por cansar, porque nĂŁo há sensibilidade para acompanhar os estĂmulos dela.
Conformar-se com a monotonia Ă© achar tudo novo sempre. A visĂŁo burguesa da vida Ă© a visĂŁo cientĂfica; porque, com efeito, tudo Ă© sempre novo, e antes de este hoje nunca houve este hoje.
É claro que ele não diria nada disto. Às minhas observações,
Com Quantos Tenho que Casar?
Querida Ăbis:
Desculpa o papel impróprio em que te escrevo; é o único que encontrei na pasta, e aqui no Café Arcada não têm papel. Mas não te importas, não?
Acabo de receber a tua carta com o postal, que acho muito engraçado.Ontem foi — nĂŁo Ă© verdade? — uma coincidĂŞncia engraçadĂssima o facto de eu e minha irmĂŁ virmos para a Baixa exactamente ao mesmo tempo que tu. O que nĂŁo teve graça foi tu desapareceres, apesar dos sinais que eu te fiz. Eu fui apenas deixar minha irmĂŁ ao Avda. Palace, para ela ir fazer umas compras e dar um passeio com a mĂŁe e a irmĂŁ do rapaz belga que aĂ está. Eu saĂ quasi imediatamente, e esperava encontrar-te ali prĂłximo para falarmos. NĂŁo quiseste. Tanta pressa tiveste de ir para casa de tua irmĂŁ!
E, ainda por cima, quando saà do hotel, vejo a janela de casa de tua irmã armada em camarote (com cadeiras suplementares) para o espectáculo de me ver passar! Claro está que, tendo visto isto, segui o meu caminho como se ali não estivesse ninguém. Quando eu pretendesse ser palhaço (para o que, aliás,
Conselhos de Vida
1 – Faça o menos possĂvel de confidĂŞncias. Melhor nĂŁo as fazer, mas, se fizer alguma, faça com que sejam falsas ou vagas.
2 – Sonhe tĂŁo pouco quanto possĂvel, excepto quando o objectivo directo do sonho seja um poema ou produto literário. Estude e trabalhe.
3 – Tente e seja tĂŁo sĂłbrio quanto possĂvel, antecipando a sobriedade do corpo com a sobriedade do espĂrito.
4 – Seja agradável apenas para agradar, e nĂŁo para abrir a sua mente ou discutir abertamente com aqueles que estĂŁo presos Ă vida interior do espĂrito.
5 – Cultive a concentração, tempere a vontade, torne-se uma força ao pensar de forma tĂŁo pessoal quanto possĂvel, que na realidade vocĂŞ Ă© uma força.
6 – Considere quão poucos são os amigos reais que tem, porque poucas pessoas estão aptas a serem amigas de alguém. Tente seduzir pelo conteúdo do seu silêncio.
7 – Aprenda a ser expedito nas pequenas coisas, nas coisas usuais da vida mundana, da vida em casa, de maneira que elas não o afastem de você.
8 – Organize a sua vida como um trabalho literário, tornando-a tĂŁo Ăşnica quanto possĂvel.
Plano de Vida
Um plano geral para a vida deve implicar, antes de mais, alcançar-se qualquer forma de estabilidade financeira. Marquei como limite para essa coisa humilde a que chamo estabilidade financeira cerca de sessenta dólares—quarenta para o necessário, e vinte para as coisas supérfluas da vida. A forma de o alcançar é adicionar aos trinta e um dólares dos dois escritórios (P & FF) vinte e nove dólares de proveniência a determinar. Em rigor, para viver apenas, cinquenta dólares bastariam, pois, tomando trinta e cinco como base necessária, quinze já davam para o resto.
A coisa essencial que vem logo a seguir é residir numa casa com bastante espaço, espaço quanto a divisões e divisões com os requisitos necessários, para arrumar todos os meus papéis e livros na devida ordem; e tudo isto sem grande possibilidade de me mudar dentro de pouco tempo. Parece que o mais fácil seria alugar eu próprio uma casa — à base de, suponhamos, oito ou, quando muito, nove dólares — e viver lá à vontade, combinando que me levassem o jantar (e o pequeno-almoço) todos os dias, ou coisa parecida. Mas seria este sistema absolutamente conveniente?
Substituir, no tocante à ordem dos papéis,
A Mulher Virgem e o Amor
A mulher virgem, em geral, não ama o homem com quem casa, embora frequentemente de tal se persuada: gosta dele, e esse gostar, que é uma amizade, provocada em geral pelo amor do homem por ela, somando-se ao instinto sexual insatisfeito, ou seja à atracção sexual abstracta, forma um composto semi-emotivo que dá a ilusão do amor, (…) as suas emoções — aquela parte da sexualidade que não é só sexual — ficam insatisfeitas. Nuns casos o instinto maternal, exercendo-se no aparecimento dos filhos, ou satisfaz essas emoções ou as esbate e acalma; noutros casos, a vida imaginativa consegue, em maior ou menor grau, satisfazê-las. Há casos, porém, em que ficam insatisfeitas e então só o fundo moral seguro e a […] moral forte, ou o senso […] e medroso da respeitabilidade social, podem — quando podem, e isso depende muito do temperamento que está por trás d’essas emoções — resistir ao aparecimento, quando e se ele se der, do homem em quem essas emoções se possam concentrar. Em todo o caso, e para bem moral dos resultados, o melhor é o homem não aparecer.
SĂł o maior dos sensos morais e da honestidade do dever pode evitar um desastre.