As Discussões Nunca São Feitas de Boa Fé
Só os ingénuos podem crer que uma discussão visa resolver um problema ou esclarecer uma questão difícil. Na realidade, a sua única justificação é testar a capacidade de os participantes derrubarem o adversário. O que está em jogo não é a verdade, mas o amor próprio. O bem falante leva a melhor sobre o que tartamudeia, o temerário sobre o tímido e o arrebatado sobre o escrupuloso. Estar de boa fé equivale a potenciar as desvantagens, porquanto os escrúpulos se somam à circunspecção, dificultando a expressão. O que é a boa fé? Uma conduta de fracasso, um autêntico suicídio… Quem participa em debates fala sem escutar, espezinha qualquer raciocínio que não seja conduzido por si próprio, despreza as oposições, ignora as obstrucções e, de certo modo, conquista a vitória à força de palavras.
Cultiva a má fé com o profissionalismo do jardineiro que cria uma planta venenosa cujo veneno possui suavidades tão profundas que quem o prova já não passa sem ele. Para dar melhor resultado, a má fé não deve ser demasiado subtil. Com efeito, o seu impacte não será suficiente para desnortear o outro, rápida e duradouramente. Nesta matéria, a subtileza não substitui a brutalidade que, não obstante a detestável fama em certos meios intelectuais,
Textos sobre Certos
372 resultadosO Irracional no Amor
Se é ridículo beijar uma mulher feia, também é ridículo dar um beijo a uma beleza. A presunção de que amando de uma certa maneira se tem o direito de rir do vizinho que tem outra maneira de amar, não vale mais do que a arrogância de certo meio social. Tal soberba não põe ninguém ao abrigo do cómico universal, porque todos os homens se encontram na impossibilidade de explicar a praxe a que se submetem, a qual pretende ter um alcance universal, pretende significar que os amantes querem pertencer um ao outro por toda a eternidade, e, o que mais divertido é, pretende também convencê-los de que hão-de cumprir fielmente o juramento.
Que um homem rico, muito bem sentado na sua poltrona, acene com a cabeça, ou volte a cara para a direita e para a esquerda, ou bata fortemente com um pé no chão, e que, uma vez perguntado pela razão de tais actos, me responda: «não sei; apeteceu-me de repente; foi um movimento involuntário», compreendo isso muito bem. Mas se ele me respondesse o que costumam responder os amantes, quando lhes pedem que expliquem os seus gestos e as suas atitudes, se me dissesse que em tais actos consistia a sua maior felicidade,
O caminho justo é sempre o caminho certo.
O Que é a Inspiração?
Eu não sei o que é a inspiração. Mas também a verdade é que às vezes nós usamos conceitos que nunca paramos a examinar. Vamos lá a ver: imaginemos que eu estou a pensar determinado tema e vou andando, no desenvolvimento do raciocínio sobre esse tema, até chegar a uma certa conclusão. Isto pode ser descrito, posso descrever os diversos passos desse trajecto, mas também pode acontecer que a razão, em certos momentos, avance por saltos; ela pode, sem deixar de ser razão, avançar tão rapidamente que eu não me aperceba disso, ou só me aperceba quando ela tiver chegado ao ponto a que, em circunstâncias diferentes, só chegaria depois de ter passado por todas essas fases.
Talvez, no fundo, isso seja inspiração, porque há algo que aparece subitamente; talvez isso possa chamar-se também intuição, qualquer coisa que não passa pelos pontos de apoio, que saltou de uma margem do rio para a outra, sem passar pelas pedrinhas que estão no meio e que ligam uma à outra. Que uma coisa a que nós chamamos razão funcione desta maneira ou daquela, que funcione com mais velocidade ou que funcione de forma mais lenta e que eu posso acompanhar o próprio processo,
Títulos e Diplomas
Parece que a humanidade só se esforça enquanto tem a esperar diplomas idiotas, que pode exibir em público para obter proveitos, mas, quando já tem na mão tais diplomas idiotas em número suficiente, deixa-se levar. Ela vive em grande parte só para obter diplomas e títulos, não por qualquer outra razão, e, depois de ter obtido o número de diplomas e títulos que, na sua opinião, é suficiente, deixa-se cair na cama macia desses diplomas e títulos. Ela não parece ter qualquer outro objectivo para a vida. Não tem, segundo parece, qualquer interesse numa vida própria, independente, numa existência própria, independente, mas apenas nesses diplomas e títulos, sob os quais a humanidade há já séculos ameaça sufocar.
As pessoas não procuram independência e autonomia, não procuram a sua própria evolução natural, mas apenas esses diplomas e títulos e estariam, a todo o momento, prontas a morrer por esses diplomas e títulos, se lhos entregassem e dessem sem qualquer condição, esta é que é a verdade desmascaradora e deprimente. Tão pouco estimam elas a vida em si que só vêem os diplomas e títulos e nada mais. Elas penduram nas paredes das suas casas os diplomas e títulos, nas casas dos mestres talhantes e dos filósofos,
Humanismo e Liberalismo
O termo humanismo é infelizmente uma palavra que serve para designar as correntes filosóficas, não somente em dois sentidos, mas em três, quatro, cinco ou seis. Toda a gente é humanista na hora que passa, até mesmo certos marxistas que se descobrem racionalistas clássicos, são humanistas num enfadonho sentido, derivado das ideias liberais do último século, o dum liberalismo refractado através de toda a crise actual. Se os marxistas podem pretender ser humanistas, as diferentes religiões, os cristãos, os hindus, e muitos outros afirmam-se também antes de mais humanistas, como por sua vez o existencialista, e de um modo geral, todas as filosofias. Actualmente muitas correntes políticas se reivindicam igualmente um humanismo. Tudo isso converge para uma espécie de tentativa de restabelecimento duma filosofia que, apesar da sua pretensão, recusa no fundo comprometer-se, e recusa comprometer-se, não somente no ponto de vista político e social, mas também num sentido filosófico profundo.
Se o cristianismo se pretende antes de tudo humanista, é porque ele não pode comprometer-se, quer dizer participar na luta das forças progressivas, porque se mantém em posições reaccionárias frente a esta revolução. Quando os pseudomarxistas ou os liberais se reclamam da pessoa antes do mais, é porque eles recuam diante das exigências da situação presente no mundo.
Antecipar a Recusa
Não cometas a asneira de pedir a alguém um objecto raro que lhe é querido, sobretudo se não tens necessidade expressa dele. Porque, se to recusar, sentirá que te ofendeu e guardar-te-á rancor; se consentir, também te quererá mal, porque passará a considerar-te como um pedinchão incómodo e indelicado.
Como é sempre desagradável ouvir uma recusa, nada peças que não estejas certo de obter. Por isso é que mais vale nada pedir directamente, mas dar a entender por meias palavras o que nos faz falta.
Quando tencionas solicitar um favor, não o deixes adivinhar antes de o teres obtido. Declara mesmo abertamente que nada esperas nesse sentido. Anuncia por toda a parte que foi concedido a outra pessoa aquilo que por um momento cobiçaras e vai felicitar o feliz eleito.
Se te recusarem alguma coisa, compra uma pessoa que tenha mais possibilidades que tu, de modo a que te entregue discretamente o objecto desejado, uma vez obtido.
Se alguém disputa uma honra que também cobiças, envia-lhe secretamente um emissário que, em nome da amizade, o dissuada falando-lhe dos múltiplos obstáculos que em todo o caso teria de enfrentar.
Só Há Duas maneiras de se Ter Razão
Quando o público soube que os estudantes de Lisboa, nos intervalos de dizer obscenidades às senhoras que passam, estavam empenhados em moralizar toda a gente, teve uma exclamação de impaciência. Sim — exactamente a exclamação que acaba de escapar ao leitor…
Ser novo é não ser velho. Ser velho é ter opiniões. Ser novo é não querer saber de opiniões para nada. Ser novo é deixar os outros ir em paz para o Diabo com as opiniões que têm, boas ou más — boas ou más, que a gente nunca sabe com quais é que vai para o Diabo.
Os moços da vida das escolas intrometem-se com os escritores que não passam pela mesma razão porque se intrometem com as senhoras que passam. Se não sabem a razão antes de lha dizer, também a não saberiam depois. Se a pudessem saber, não se intrometeriam nem com as senhoras nem com os escritores.
Bolas para a gente ter que aturar isto! Ó meninos: estudem, divirtam-se e calem-se. Estudem ciências, se estudam ciências; estudem artes, se estudam artes; estudem letras, se estudam letras. Divirtam-se com mulheres, se gostam de mulheres; divirtam-se de outra maneira, se preferem outra.
Não existe meio mais certo e eficaz para exercer influência directa sobre o próximo do que o
Não existe meio mais certo e eficaz para exercer influência directa sobre o próximo do que o bom exemplo, a força e o prestígio de uma personalidade modelar.
Os Limites da Amizade
Determinemos, agora, quais são os limites e, por assim dizer, os termos da amizade. Encontro aqui três opiniões diferentes, das quais não aprovo nenhuma: a primeira deseja que sejamos para os nossos amigos, assim como somos para nós mesmos; a segunda, que a nossa afeição por eles seja tal e qual à que eles têm por nós; a terceira, que estimemos os nossos amigos, assim como eles se estimam a si mesmos. Não posso concordar com nenhuma destas três máximas. Porque a primeira, que cada um tenha para com o seu amigo a mesma afeição e vontade que tem para si, é falsa. De facto, quantas coisas fazemos pelos nossos amigos, que jamais faríamos para nós! Rogar, suplicar a um homem que se despreza, tratar a outro com aspereza, persegui-lo com violência; coisas que em causa própria não seriam muito decentes, nos negócios dos amigos tornam-se muito honrosas. Quantas vezes um homem de bem abandona a defesa dos seus interesses e os sacrifica, em seu próprio detrimento, para servir os de seu amigo!
A segunda opinião é a que define a amizade por uma correspondência igual em amor e bons serviços. É fazer da amizade uma ideia bem limitada e mesquinha,
O Homem Não é o Indivíduo
«Não é a arranhar interminavelmente o indivíduo que acabamos por encontrar o homem» – diz alguém em certo livro do Malraux. Nada, de facto, mais útil que a separação dos dois conceitos, que tanto tendem a confundir-se, mormente hoje, em que tal confusão parece agravar-se. Com efeito, o «homem» não é o «indivíduo», porque é só do indivíduo aquela parte que pode universalizar-se. E é desta ideia que temos de partir para que um equívoco se não consuma, o equívoco de um individualismo, de um pessoalismo restrito que a arte e o pensamento modernos parecem à primeira vista aceitar.
Que estranho «eu» é pois este que de algum modo dir-se-ia predominar na filosofia e na literatura de hoje? Porque é evidente que uma forte tendência da arte de hoje, do homem actual, apela para a comunicabilidade, para uma fraternidade, e não para um estéril isolamento. Mas acontece que nesse apelo muitas vezes se esquece o que há aí de mecânico, de superficial, de relações externas, imediatas, provisórias, que nos não satisfaz inteiramente. O homem que aí fala é o que se ensurdece a si próprio, às suas vozes profundas, aos avisos que se anunciam desde o limiar da solidão.
História não é só Cronologia
Um dos principais defeitos dos trabalhos históricos no nosso país parece-me ser a insulação de cada um dos aspectos sociais de qualquer época, que nunca se conhecerá, nem entenderá, enquanto a sociedade se não estudar em todas as suas formas de existir, enquanto se não contemplar em todos os seus caracteres.
Estas cartas, se merecerem a aprovação de V. Exas., poderão algum dia servir, no que tiverem de bom, se o tiverem, de esclarecimento e notas a uma parte da História Portuguesa, como eu concebo que ela se deveria escrever: história não tanto dos indivíduos como da Nação; história que não ponha à luz do presente o que se deve ver à luz do passado; história, enfim, que ligue os elementos diversos que constituem a existência de um povo em qualquer época, em vez de ligar um ou dois desses elementos, não com os outros que com ele coexistem, mas com os seus afins na sucessão dos tempos.
A história pode comparar-se a uma coluna polígona de mármore. Quem quiser examiná-la deve andar ao redor dela, contemplá-la em todas as suas faces. O que entre nós se tem feito, com honrosas excepções, é olhar para um dos lados,
O Êxito e a Felicidade
A raiz do mal reside no facto de se insistir demasiadamente que no êxito da competição está a principal fonte da felicidade. Não nego que o sentimento do triunfo torna a vida mais agradável. Um pintor, por exemplo, que viveu obscuramente na juventude, decerto se sentirá feliz se o seu talento acabar por ser reconhecido. Não nego também que o dinheiro, até um certo limite, é capaz de aumentar a felicidade; para lá desse limite, julgo que não. O que eu afirmo é que o êxito só pode ser um dos vários elementos da felicidade e que é demasiado o preço pelo qual se obtém se a ele se sacrificam todos os outros.
O Gosto é a Causa da Aparência
O nosso engenho todo se esforça em pôr as coisas numa perspectiva tal, que vistas de um certo modo, fiquem a parecer o que nós queremos que elas sejam, e não o que elas são. A razão é como um instrumento lisonjeiro, por meio do qual vemos as coisas, grandes, ou pequenas, falsas, ou verdadeiras. O nosso pensamento não se acomoda às coisas, acomoda-se ao nosso gosto. O amor, a vaidade, e o interesse são os moldes em que as coisas se formam, e se configuram para se apresentarem a nós; e com efeito nenhuma coisa se nos mostra como é, contra a nossa vontade.
A Maior Necessidade do Homem
A maior necessidade do homem é sentir que é necessário. Se no mundo não existir ninguém que precise de nós, cometeremos suicídio, não conseguiremos viver. É estranho – talvez nunca tenham pensado nisto, que estamos continuamente à procura de quem precise de nós. Isto faz de nós seres preciosos, dá-nos valor, um certo significado. Talvez as mulheres se casem com os homens apenas para preencher a necessidade de se sentir necessária. E a razão poderá ser igualmente válida para os homens, talvez desejem sentir que uma determinada mulher precisa deles.
Os homens tentaram impedir as mulheres de ganharem dinheiro, de trabalharem, de se instruírem e educarem. As explicações para isso são de ordem política, económica, entre outras, mas a razão psicológica reside no facto de os homens desejarem a dependência das mulheres para que elas nunca deixem de precisar deles e os façam sentirem-se bem por haver alguém que precisa deles. Juntos terão filhos e ambos se sentirão bem pelo facto de essas crianças precisarem deles: é um motivo para viver. Temos de viver pelo bem dessas crianças, temos de viver pelo bem da nossa mulher, temos de viver pelo bem do nosso marido: a vida deixa de ser algo desprovido de sentido.
O Prazer Puro do Amor para uma Rapariga Honesta
O que, subconscientemente, na rapariga honesta torna agradável o namoro, é nitidamente distrinçável. Um acto agradável é agradável não só no acto mas na antecipação dele; e, ausentes certos elementos psicológicos não orientadores desse acto, em geral, na antecipação ainda não imediata, porque na antecipação para daí a pouco a ânsia de chegar a ele, amorna (ou, perturba) um tanto o […] da esperança. — Ora o «flirt», o namoro, não é senão, analisada sem escrúpulo a sua essência íntima, uma antecipação da possibilidade de uma cópula. Repare-se que não é a antecipação de uma cópula, o que, por mais directo, é mais perturbante. O que se chama o prazer puro do amor (no que é namoro ou «flirt») não é senão um prazer muito grande porque isento (e nesse sentido puro) do elemento perturbante do directo desejo, ou imediata esperança, do coito.
Nada é Verdadeiramente Satisfatório
Nada é verdadeiramente satisfatório. Mesmo a arte a que um artista é vocacionado, e sobre a qual e para a qual vive, está sempre aquém do seu desejo. Nunca atinge aquele nível, aquele andar que desejaria. Está sempre a tentar, a aproximar-se do limite das possibilidades. No fundo, do absoluto. Um absoluto que se não atinge, [que se] ignora mesmo. A única coisa que sabemos ao certo é: ninguém nasce senão para morrer. Morrer mais cedo ou morrer mais tarde. Tem esse privilégio: acabar com a vida antes do fim natural dela. Se estiver desesperado, acontece. Justamente quando perde a esperança. Quando perde a esperança, perdeu tudo, e então liquida-se.
[Pensou alguma vez? Houve algum momento na sua vida tão desesperançado? Teve tantos reveses…]
Não. Suponho que ninguém deixa de pensar na morte. E quando se chega à minha idade, está-se mais consciente de que se aproxima o fim. Portanto, ele tem que se preparar para esse final. Há muita gente que conheci que se suicidou por isto ou por aquilo. E há o problema da eutanásia, quando o sofrimento é muito grande, a experiência é nula e as pessoas não podem sequer matar-se, têm que pedir que alguém as mate.
Amar um Ser é Matar Todos os Outros
Não há uma coisa que se faça por um ser (que se faça verdadeiramente) que não negue um outro. E quando não nos podemos resignar a negar os seres, há uma lei que nos estiriliza para sempre. De certo modo, amar um ser é matar todos os outros.
Nunca Te Intitules Filósofo
Nunca te intitules Filósofo nem fales demasiado sobre os Princípios com os iletrados; faz, antes, o que deles decorre. Assim, num banquete, não discutas como devem as pessoas comer, mas come como é devido. Lembra que Sócrates evitava inteiramente a ostentação. As pessoas vinham a ele encaminhadas a filósofos, e ele próprio as encaminhava, tão bem suportava ser desdenhado. Da mesma maneira, se alguma conversa relativa a princípios ocorrer entre os iletrados, procura guardar silêncio. Pois corres o risco de vomitar o que digeriste mal. E quando alguém te disser que não sabes nada e tu não te apoquentares com isso, podes estar certo que estás finalmente no bom caminho.
Sou um Verdadeiro Solitário
O meu sentido ardente de justiça social e de dever social estiveram sempre em estranho desacordo com uma marcada carência de necessidade directa de ligação com os homens e com as comunidades humanas. Sou um verdadeiro solitário («Einspänner»), que nunca pertenceu inteiramente e de todo o coração ao Estado, à Pátria, ao círculo dos amigos ou até mesmo à família mais chegada, mas antes pelo contrário experimentou sempre, em relação a todas essas ligações, um sentimento indomável de estranheza e de ânsia de isolamento, um sentimento que com a idade mais se intensifica. Apercebemo-nos nitidamente, mas sem o lamentarmos, que nos é limitada a convivência em sociedade com outros seres humanos. Um homem desta natureza perde, de certo modo, uma parte da sua maneira de ser inocente e despreocupada mas ganha em se sentir largamente independente das opiniões, dos hábitos e juízos dos homens, e não cai na tentação de estabelecer o seu equilíbrio numa base tão pouco sólida.