Os que Morrem por Amor
Os que morrem por amor continuam a pertencer à lenda. Os seus funerais arrastam uma multidão piedosa, tal como decerto aconteceu na cidade de Verona, há seiscentos anos. Ainda que nesse tempo os costumes fossem bastante fáceis, a prática erótica da juventude era muito mais modesta. Reflectindo melhor, é de crer que a própria licença produzisse um tipo de pessoas orgulhosas da sua intimidade afectiva; o que, se não é virtude, algo se parece. Este orgulho da própria intimidade conduz a uma atitude hostil em relação a tudo o que pode burocratizar os sentimentos. Há um sociólogo inclinado a crer que existe muito de romantismo burocrático no amor moderno. É possível. E quando aparecem os contestatários dessa espécie de burocracia, como são os Romeus e Julietas do Candal, a cidade fica-lhes agradecida. No campo dos afectos trata-se da luta obstinada que resulta do choque entre a vida privada e o regime governativo; entre um corpo animado de impulsos e uma autoridade explicada por leis. Através de inquéritos feitos nos meios juvenis para inquirir das transformações que se efectuam no âmbito das relações afectivas, deparam-se declarações bastante confusas. Elas pairam entre uma sinceridade elementar que descura a experiência e teorias perfeitamente viciadas nos lugares-comuns do século.
Textos sobre Comportamento
66 resultadosJogar à Bola na Rua
– É triste, sabes? As crianças, hoje em dia, mesmo as mais dadas a jogos de computador e sei lá mais o quê, alimentam-se melhor, fazem mais exercício, têm físicos mais equilibrados. Para além de tudo, sabem fazer uma triangulação, percebem com toda a facilidade como se joga em quatro-quatro-dois e em quatro-três-três, acorrem a um pontapé de canto e cumprem a coreografia toda, dançando na grande área como os profissionais. Só que, depois, não têm intimidade com a bola. Não conhecem as suas manias, os movimentos mais imprevistos do seu comportamento, os seus amuos. E só os conheceriam se jogassem à bola na rua. Se jogassem à bola seis ou sete ou oito horas por dia, como nós chegávamos a jogar. Se fossem ao dentista arrancar um dente e, mesmo assim, precisassem de levar uma bola debaixo do braço, para ocupar os tempos mortos.
Ao invés de manifestar o íntimo, os comportamentos podem também dissimulá-lo
Ao invés de manifestar o íntimo, os comportamentos podem também dissimulá-lo.
Faz Acontecer
Mais vale uma única ação rumo ao que desejas do que dez palavras ditas, cem frases escritas ou mil pensamentos iguais.
As coisas não acontecem pelo número de vezes que as dizes, escreves ou pensas nelas; as coisas acontecem por aquilo que tu fazes para elas acontecerem.
Nada acontece porque, e por exemplo, afirmas que amanhã é que vais começar a perder peso ou porque desabafas sistematicamente para o papel todas as tuas tristezas ou porque não paras de pensar naquilo que te faria bem. Nada. Rigorosamente nada. O que dizes é zero se não deres forma às tuas palavras. O que escreves é nulo se não existir compromisso para além das palavras. E o que pensas não vale nada se não deres vida aos pensamentos.
As palavras faladas ou escritas têm uma força poderosíssima, é indesmentível, assim como tudo aquilo que pensamos. No entanto, sem ação, sem criação em movimento, de nada valem. O sumo de todas as conversas que tens, de todos os livros que lês ou de todos os diários que escreves e todas as ideias que te pincelam a cabeça, resume-se a nada se daí não se originar mudança.
E não há mudança sem saíres do conforto.
Quem Cobra não Ama
Quem cobra não ama, quer atenção.
0 amor, como nos ensinaram, salvo raríssimas exceções, é uma mentira. Não é amor, é medo. Ensinaram-nos a amar através do medo. Do medo de perder ou deixar de ter, do medo de falhar por sermos obrigados a agradar e por termos sistematicamente de ceder.
0 propósito de amar está certo, o caminho está errado.
A cobrança, entre muitos outros comportamentos egoístas, é fruto de um total desconhecimento acerca do amor verdadeiro, daquele que nunca deixou de ser e apenas foi mortificado pelo homem. Cobrar é feio. É afirmar, por outras palavras, que existe o direito de fazê-lo porque detemos os direitos da vida de alguém e que, para esse mesmo alguém, temos de ser a coisa mais importante da sua vida. Não somos. E mesmo que o consigamos convencer durante um determinado período da sua vida, nunca seremos, pois nada é nosso além de nós.
Cobrar é, assim, viver na ilusão.
Compete-te, portanto, e para viveres de acordo com a realidade e com amor como ele deve ser vivido, identificar quem são as pessoas que fazem parte da tua vida e que se comportam desta maneira.
Se Pudesses Estar Comigo Vinte e Quatro horas do Dia
Se pudesses estar comigo durante as vinte e quatro horas do dia, observar cada gesto meu, dormir comigo, comer comigo, trabalhar comigo, tudo isto não poderia ter lugar. Quando me vejo afastado de ti, penso em ti constantemente e isso dá cor a tudo o que eu diga ou faça. Se soubesses o quão fiel te sou! Não apenas fisicamente, mas mentalmente, moralmente, espiritualmente. Aqui não há qualquer tentação para mim, absolutamente nenhuma. Estou imune a Nova Iorque, aos meus velhos amigos, ao passado, a tudo. Pela primeira vez na minha vida, estou completamente centrado em outro ser… Em ti. Sinto-me capaz de dar tudo, sem ter medo de ficar exaurido ou de me ver perdido. Quando ontem escrevi no meu artigo que «se eu nunca tivesse ido para a Europa…», não era a Europa que tinha em mente, mas sim tu.
Mas não posso dizer isso ao mundo num artigo. Tu és a Europa. Pegaste em mim, um homem despedaçado, e tornaste-me completo. E não hei-de desintegrar-me — não existe o menor perigo disso. Mas agora vejo-me mais sensível, mais receptivo a qualquer sinal de perigo. Se te persigo loucamente, se te imploro para ouvires, se fico à tua porta e espero por ti,
Conversão Mental
Os métodos de conversão religiosa foram até agora considerados mais sob ângulos psicológicos e metafísicos que psicológicos e mecanísticos; contudo, as técnicas empregadas aproximam−se tanto frequentemente das modernas técnicas políticas de lavagem cerebral e controle da mente que cada uma delas lança luz sobre os mecanismos da outra. É conveniente começar com a história melhor documentada de conversão religiosa, que tem em comum com a conversão política o facto de um indivíduo ou grupo de indivíduos poder adoptar novas crenças ou padrões de comportamento, em resultado de revelações surgidas na mente repentinamente e com grande intensidade, muitas vezes depois de períodos de grande tensão emocional.
A Tolerância é um Atributo dos Fortes
A emoção é um campo de energia em contínuo estado de transformação. Produzimos centenas de emoções diárias. Elas organizam-se, desorganizam-se e reorganizam-se num processo contínuo e inevitável. O ideal seria que o círculo de transformação da emoção seguisse uma trajetória prazerosa, ou seja, que um sentimento de alegria se transformasse num sentimento de paz, que se transformasse numa reação de amor, que se transformasse numa experiência contemplativa. Mas, na realidade, o que ocorre na vida de cada ser humano é que a alegria se converte em ansiedade, o prazer em irritabilidade, enfim, as emoções alternam-se.
Não é possível para a natureza humana ter uma emoção continuamente prazerosa. Não existe, como muitos psicólogos pensam, equilíbrio emocional. A emoção passa por inevitáveis ciclos diários. No entanto, a emoção é mais saudável quanto mais estável ela for e quanto mais perdurarem os sentimentos que alimentam o prazer e a serenidade.
A tolerância é um atributo dos fortes e não dos fracos. A tolerância produz profunda estabilidade no campo da energia emocional. Só se constrói a tolerância quando se constrói primeiro a capacidade de compreender as limitações dos outros.
Quanto mais uma pessoa for intolerante, mais será invadida pelos comportamentos dos outros,
Construir a Realidade
A pura verdade é que no mundo acontece a todo instante, e, portanto, agora, infinidade de coisas. A pretensão de dizer o que é que acontece agora no mundo deve ser entendida, pois, como ironizando-se a si mesma. Mas assim como é impossível conhecer directamente a plenitude do real, não temos outro remédio senão construir arbitrariamente uma realidade, supor que as coisas são de certa maneira. Isto proporciona-nos um esquema, quer dizer, um conceito ou entretecido de conceitos. Com ele, como através de uma quadrícula, olhamos depois a efectiva realidade, e então, só então, conseguimos uma visão aproximada dela. Nisto consiste o método científico. Mais ainda: nisto consiste todo uso do intelecto. Quando ao ver chegar o nosso amigo pela vereda do jardim dizemos: «Este é o Pedro», cometemos deliberadamente, ironicamente, um erro. Porque Pedro significa para nós um esquemático repertório de modos de se comportar física e moralmente – o que chamamos «carácter» –, e a pura verdade é que o nosso amigo Pedro não se parece, em certos momentos, em quase nada à ideia «o nosso amigo Pedro».
Todo o conceito, o mais vulgar como o mais técnico, vai incluso na ironia de si mesmo, nos entredentes de um sorriso tranquilo,
O Intelectual e o Meio
Ser intelectual e fazer parte dos intelectuais são duas coisas que simultaneamente se identificam e opõem. Há um determinismo de colectividade; assim, os gafanhotos isolados são insectos amáveis, cada um devotado aos seus pequenos assuntos, tendo cada um o seu comportamento. Mas a partir de uma certa densidade, de resto demasiado fraca, tornam-se uma turba onde as individualidades desaparecem, perdem a sua cor esverdeada em troca de um uniforme e padronizado amarelo-acizentado, adquirem um comportamento estereotipado e transformam-se em impiedosos devoradores, destruindo tudo o que for obstáculo ao seu frenesim. Da mesma forma, os intelectuais são, isoladamente, simpáticos indivíduos, cada um dedicado à sua obra, mas a sua reunião em sociedade faz deles monstros.
O Perigo do Especialista
O especialista serve-nos para concretizar energicamente a espécie e fazer ver todo o radicalismo da sua novidade. Porque outrora os homens podiam dividir-se, simplesmente, em sábios e ignorantes, em mais ou menos sábios e mais ou menos ignorantes. Mas o especialista não pode ser submetido a nenhuma destas duas categorias. Não é um sábio, porque ignora formalmente o que não entra na sua especialidade; mas tampouco é um ignorante, porque é «um homem de ciência» e conhece muito bem a sua fracção de universo. Devemos dizer que é um sábio ignorante, coisa sobremodo grave, pois significa que é um senhor que se comportará em todas as questões que ignora, não como um ignorante, mas com toda a petulância de quem na sua questão especial é um sábio.
E, com efeito, este é o comportamento do especialista. Em política, em arte, nos usos sociais, nas outras ciências tomará posições de primitivo, e ignorantíssimo; mas tomará essas posições com energia e suficiência, sem admitir – e isto é o paradoxal – especialistas dessas coisas. Ao especializá-lo a civilização tornou-o hermético e satisfeito dentro da sua limitação; mas essa mesma sensação íntima de domínio e valia vai levá-lo a querer predominar fora da sua especialidade.
Cartas Trocadas para o Marido e para o Amante
Anais,
Uma terrível asneira foi feita. Enviaste a carta para o Hugo, no dia em que chegaste, e mandaste-lhe a minha. O Hugo está freneticamente a tentar entrar em contacto comigo. Mandou a Amélia aqui, que deixou debaixo da porta o bilhete que junto. Ela esteve aqui de manhã e outra vez esta noite. Pensei de manhã que era o próprio Hugo e que ele tinha vindo para me “apanhar”… Por isso, não abri a porta.
Já que eu tinha recebido a carta dele na noite anterior (a tua carta para ele), tive um pressentimento de que as cartas tinham sido postas nos envelopes errados e fiquei apreensivo. Esta noite enviei-lhe a sua carta para o número 18 da Ave. de Versailles, sem dar a minha morada. Não posso dizer nesta carta se chegarei a receber a que me era devida. Espero que sim. Suponho que ele saiba tudo agora. Mas estou a evitá-lo, porque não quero admitir nem negar. Ele deve estar furioso, mas, ao mesmo tempo, num estado terrível. Eu próprio estou exausto de apreensão. Trouxe o Fred para ficar aqui comigo, porque até o Hugo partir vou estar em pulgas. Sei que, se ele me matasse,
O Pressuposto Indispensável para se Ser um Grande-Escritor
O pressuposto indispensável para se ser um grande-escritor é, então, o de escrever livros e peças de teatro que sirvam para todos os níveis, do mais alto ao mais baixo. Antes de produzir algum bom efeito, é preciso primeiro produzir efeito: este princípio é a base de toda a existência como grande-escritor. É um princípio miraculoso, eficaz contra todas as tentações da solidão, por excelência o princípio goethiano do sucesso: se nos movermos apenas num mundo que nos é propício, tudo o resto virá por si. Pois quando um escritor começa a ter sucesso dá-se logo uma transformação significativa na sua vida. O seu editor pára de se lamentar e de dizer que um comerciante que se torna editor se parece com um idealista trágico, porque faria muito mais dinheiro negociando com tecidos ou papel virgem. A crítica descobre nele um objecto digno da sua actividade, porque os críticos muitas vezes até nem são más pessoas, mas, dadas as circunstâncias epocais pouco propícias, ex-poetas que precisam de um apoio do coração para poderem pôr cá fora os seus sentimentos;são poetas do amor ou da guerra, consoante o capital interior que têm de aplicar com proveito, e por isso é perfeitamente compreensível que escolham o livro de um grande-escritor e não o de um comum escritor.
Testemunhas Aparentes
Não me preocupa tanto qual eu seja para outrem como me preocupa qual eu seja em mim mesmo. Quero ser rico por mim, não por empréstimo. Os estranhos vêem apenas os acontecimentos e as aparências externas; cada qual pode ter um ar alegre exteriormente e por dentro estar cheio de febre e receio. Eles não vêem o meu coração; vêem apenas o meu comportamento. Tem-se razão em depreciar a hipocrisia que existe na guerra; pois o que é mais fácil para um homem oportunista do que esquivar-se dos perigos e fazer-se de bravo, tendo o ânimo repleto de frouxidão? Há tantos meios de evitar as ocasiões de arriscar-se pessoalmente que teremos enganado o mundo mil vezes antes de encetarmos um passo perigoso; e mesmo então, vendo-nos entravados, nesse momento bem sabemos encobrir o nosso jogo com um ar alegre e uma palavra serena, embora a alma nos trema interiormente.
E se alguém pudesse usar o anel de Platão, que tornava invisível quem o levasse no dedo e o virasse para a palma da mão, muitas pessoas amiúde se esconderiam quando mais é preciso apresentar-se e se arrependeriam de estar colocadas num lugar tão honroso, no qual a necessidade as torna seguras: Quem pode alegrar-se com falsas honrarias e temer a calúnia,
A Indiferença ou a Paixão pelos Outros
O que é mais proveitoso — perguntava eu — representar o mundo como pequeno ou como grande? Vejamos como eu resolvia o assunto: os homens eminentes, os capitães famosos, os estadistas competentes, em suma, todos os conquistadores e todos os chefes que se elevam pela violência acima dos outros homens, devem ser feitos de tal maneira que o Mundo lhes deve parecer como um tabuleiro de damas. Se assim não fosse, eles não teriam a rudeza e a impassibilidade necessárias para subordinarem audaciosamente aos seus imprevisíveis planos a felicidade e os sofrimentos dos indivíduos isolados, sem se importarem nada com isso. Em contrapartida, uma tão limitada concepção pode levar os homens a não realizarem coisa alguma, porque todo aquele que considera a humanidade como uma coisa sem importância acabará por a achar insignificante e por soçobrar na indiferença e na passividade. Desdenhoso de tudo, preferirá a inércia à acção sobre os espíritos, sem contar que a sua insensibilidade, a sua ausência de simpatia e a sua letargia chocarão toda a gente, ofendendo constantemente um mundo imbuído do seu próprio valor. Assim se lhe fecharão todas as vias de um sucesso imprevisto. Será mais razoável — perguntava eu, então — ver na humanidade qualquer coisa de grande,
O Sexo Como Factor de Génio
O facto de o sexo desempenhar um maior ou menor papel na vida de alguém parece relativamente irrelevante. Algumas das maiores realizações de que temos notícia foram empreendidas por indivíduos cuja vida sexual foi reduzida ou nula. Em contrapartida, sabemos pela biografia de certos artistas – figuras de primeira grandeza – que as suas obras imponentes nunca teriam sido realizadas se eles não tivessem vivido mergulhados em sexo. No caso de alguns poucos, os períodos de criatividade excepcional coincidiram com períodos de extrema licença sexual. Nem a abstinência nem a licença explicam seja o que for.
No campo do sexo como noutros campos, costumamos referir-nos a uma norma – mas a norma indica apenas o que é estatisticamente verdade para a grande massa dos homens e das mulheres. Aquilo que pode ser normal, razoável, salutar, para a grande maioria, não nos fornece um critério de comportamento no caso do indivíduo excepcional. O homem de génio, quer pela sua obra, quer pelo seu exemplo pessoal, parece estar sempre a proclamar a verdade segundo a qual cada um é a sua própria lei, e o caminho para a realização passa pelo reconhecimento e pela compreensão do facto de que todos somos únicos.
O Céu e a Terra
Aqueles que afirmam existir mais coisas no céu que na terra, têm razão e não têm, por serem ambos a mesma coisa, embora em planos inversos. Todas as almas sabem disto, quando estão no etéreo, à espera de reencarnar, mas depois esquecem-se, quando mergulham no limbo e se agarram ao corpo mirrado de uma coisa viva que há-de ser.
E, tenho para mim, que as beatas não fazem por mal quando batem no peito e censuram o resto do mundo por não ser igual a si. Buscam, talvez, um comportamento livre dos corpos que as aproxime do que elas foram um dia: uma coisa diáfana e sem corpo, desprendidas da realidade da carne.
A Racionalidade Irracional
Eu digo muitas vezes que o instinto serve melhor os animais do que a razão a nossa espécie. E o instinto serve melhor os animais porque é conservador, defende a vida. Se um animal come outro, come-o porque tem de comer, porque tem de viver; mas quando assistimos a cenas de lutas terríveis entre animais, o leão que persegue a gazela e que a morde e que a mata e que a devora, parece que o nosso coração sensível dirá «que coisa tão cruel». Não: quem se comporta com crueldade é o homem, não é o animal, aquilo não é crueldade; o animal não tortura, é o homem que tortura. Então o que eu critico é o comportamento do ser humano, um ser dotado de razão, razão disciplinadora, organizadora, mantenedora da vida, que deveria sê-lo e que não o é; o que eu critico é a facilidade com que o ser humano se corrompe, com que se torna maligno.
Aquela ideia que temos da esperança nas crianças, nos meninos e nas meninas pequenas, a ideia de que são seres aparentemente maravilhosos, de olhares puros, relativamente a essa ideia eu digo: pois sim, é tudo muito bonito, são de facto muito simpáticos,
O Saber é uma Forma de Comportamento
O saber é uma forma de comportamento, uma paixão. No fundo, um comportamento ilícito; porque, tal como a dependência do álcool, de sexo ou da violência, também a compulsão de saber molda um carácter em desequilíbrio. É um erro pensar que o investigador persegue a verdade; de facto, é ela que o persegue a ele. É ele que tem de suportá-la. A verdade é verdadeira, o facto é real, sem se preocuparem com ele: ele é que sofre da paixão, da dipsomania dos factos que define o seu carácter, e está-se nas tintas para saber se as suas descobertas levarão a alguma coisa de total, humano, perfeito ou o que quer que seja. É uma natureza contraditória, sofredora e, ao mesmo tempo, incrivelmente enérgica.
As Restrições dos Guardiões Morais
Parece-me a mim que o pressuposto em que se baseiam as acções restritivas dos nossos guardiões morais é simplesmente o de que o acesso à literatura proibida nos pode levar a comportar-se como animais. Mas pensar assim é insultar o reino animal. E, ao mesmo tempo, transformar paixão, o maior atributo do homem, numa caricatura. A gama da paixão humana é quase ilimitada, atingindo alturas e profundidades impensáveis. Precisamente por abarcar tais extremos é a paixão a autêntica pedra de toque da nossa humanidade, e talvez também da nossa divindade. De todas as criaturas da terra, o homem é a única de comportamento imprevisível. Há em nós alguma coisa de toda a criação. Quando nos é negada a menor parcela de liberdade, ficamos espiritualmente limitados e mutilados. É a plena consciência da nossa natureza múltipla e a integração da miríade de elementos de que somos compostos que nos faz completos, que nos faz humanos. A religião faz de nós santos, ou apenas bons cidadãos, mas o que faz de nós homens, o que nos faz humanos até ao âmago, é a liberdade. É uma palavra terrível, a liberdade, para aqueles que viveram toda a vida mentalmente algemados.