Os Artistas Verdadeiros não Têm Ideologia
Dia entre pescadores. Eles a pescarem sardinha para a fome orgânica do corpo, e eu a pescar imagens para uma necessidade igual do espírito. Tisnados de saúde, os homens olham-me; e eu, amarelo de doença, olho-os também. Certamente que se julgam mais justificados do que eu, e que o mundo inteiro lhes dá razão. Mas da mesma maneira que eles, sem que ninguém lhes peça sardinha, se metem às ondas, também eu, sem que ninguém me peça poesia, me lanço a este mar da criação. Há uma coisa que nenhuma ideologia pode tirar aos artistas verdadeiros: é a sua consciência de que são tão fundamentais à vida como o pão. Podem acusá-los de servirem esta ou aquela classe. Pura calúnia. É o mesmo que dizer que uma flor serve a princesa que a cheira. O mundo não pode viver sem flores, e por isso elas nascem e desabrocham. Se olhos menos avisados passam por elas e as não podem ver, a traição não é delas, mas dos olhos, ou de quem os mantém cegos e incultos.
Textos sobre Corpo de Miguel Torga
5 resultadosA Maior Desgraça da Vida
A maior desgraça da vida, vistas bem as coisas, acaba por não ser a morte. Salvo aqueles casos catastróficos, que sob o ponto de vista do aniquilamento são uma perfeita maravilha, morre-se quando esta coisa que se chama corpo, por uma razão ou por outra, está podre. Quando, afinal, a ele próprio já lhe não apetece viver. A desgraça verdadeira é esta de nós andarmos aqui a namorar o céu, a pisar a terra, a investir contra o mar — e nem o céu, nem a terra, nem o mar saberem sequer que a gente existe.
Não há Nada que Resista ao Tempo
Não há nada que resista ao tempo. Como uma grande duna que se vai formando grão a grão, o esquecimento cobre tudo. Ainda há dias pensava nisto a propósito de não sei que afecto. Nisto de duas pessoas julgarem que se amam tresloucadamente, de não terem mutuamente no corpo e no pensamento senão a imagem do outro, e daí a meia dúzia de anos não se lembrarem sequer de que tal amor existiu, cruzarem-se numa rua sem qualquer estremecimento, como dois desconhecidos.
Essa certeza, hoje então, radicou-se ainda mais em mim.
Fui ver a casa onde passei um dos anos cruciais da minha vida de menino. E nem as portas, nem as janelas, nem o panorama em frente me disseram nada. Tinha cá dentro, é certo, uma nebulosa sentimental de tudo aquilo. Mas o concreto, o real, o número de degraus da escada, a cara da senhoria, a significação terrena de tudo aquilo, desaparecera.
A Gente pouco Sabe e pouco Pode
A gente pouco sabe e pouco pode. Conhece apenas duas regras de higiene (que o corpo se recusa a observar), três de moral (que o instinto se recusa a praticar), e uma ou duas de civilidade (que só a polícia muito limitadamente nos faz cumprir), e pode apenas o que pode um bicho solicitado por um tropismo fundamental.
O Povo está Divorciado da Cultura
O povo está divorciado da cultura, e encolhe-se cada vez mais na sua fome e na sua ignorância. Somos nós, os que saímos dele e o queremos verdadeiramente servir, que temos o dever de o procurar, de o esclarecer, de o interessar activamente na sua própria salvação. Que lhe importam os grandes livros, se ele os não pode nem sequer ler? Que lhe importam as grandes sinfonias, se ele as não sabe ouvir? é urgente chamar o povo à realidade nacional. É preciso interessá-lo de verdade no processo social, onde ele tem o único papel que conta.
— Para isso?…
— Convidá-lo desde já a votar livre e claramente. Chamá-lo a determinar-se, a escolher os seus homens, a responsabilizar-se no seu destino,
— Esse destino é?…
— O destino de todos os corpos vivos: crescer, multiplicar-se, procurar a felicidade, e deixar no seu caminho uma nítida e aberta marca de compreensão e de amor.