O Cortejo Ingénuo dos Nossos Sonhos
Não desenhamos uma imagem ilusória de nós próprios, mas inúmeras imagens, das quais muitas são apenas esboços, e que o espírito repele com embaraço, mesmo quando porventura haja colaborado, ele próprio, na sua formação. Qualquer livro, qualquer conversa podem fazê-las surgir; renovadas por cada paixão nova, mudam com os nossos mais recentes prazeres e os nossos últimos desgostos. São, contudo, bastante fortes para deixarem, em nós, lembranças secretas que crescem até formarem um dos elementos mais importantes da nossa vida: a consciência que temos de nós mesmos tão velada, tão oposta a toda a razão, que o próprio esforço do espírito para a captar a faz anular-se.
Nada de definido, nem que nos permita definir-nos; uma espécie de potência latente… como se houvesse apenas faltado a ocasião para cumprirmos no mundo real os gestos dos nossos sonhos, conservamos a impressão confusa, não de os ter realizado, mas de termos sido capazes de os realizar. Sentimos esta potência em nós como o atleta conhece a sua força sem pensar nela. Actores miseráveis que já não querem deixar os seus papéis gloriosos, somos, para nós mesmos, seres nos quais dorme, amalgamado, o cortejo ingénuo das possibilidades das nossas acções e dos nossos sonhos.
Textos sobre Cortejos
2 resultadosA Mentira é mais Interessante que a Verdade
«O que é a verdade»? Perguntava Pilatos gracejando, talvez que não esperasse pela resposta. Há quem se delicie com a inconstância, e considere servidão o fixar-se numa crença; há quem se afeiçoe ao livre-arbítrio tanto no pensar como no agir. E se bem que as seitas de filósofos desta espécie hajam desaparecido, sobrevivem alguns representantes da mesma família, apesar de nas veias não lhes correr tanto sangue como nas dos antigos. Não é somente a dificuldade e a canseira que o homem experimenta ao perseguir a verdade, nem sequer o facto de, uma vez encontrada, se impor aos pensamentos humanos, o que leva a conceder às mentiras os maiores favores; é sim, um natural mas corrompido amor da própria mentira. Uma das últimas escolas dos Gregos examinou esta questão, mas deteve-se a pensar no que leva o homem a armar as mentiras, quando não o faz por prazer, como os poetas, ou por utilidade, como os mercadores, mas pelo próprio mentir.
Não sei como dizê-lo, mas a verdade é uma luz nua e crua que não mostra as máscaras, as cegadas e os cortejos do mundo com metade da altivez e da graciosidade com que aparecem iluminados pelos candelabros.