A Memória é o Maior Tormento do Homem
Considera o rebanho que passa ao teu lado pastando: ele não sabe o que é ontem e o que é hoje; ele saltita de lá para cá, come, descansa, digere, saltita de novo; e assim de manhã até a noite, dia após dia; ligado de maneira fugaz por isto, nem melancólico nem enfadado. Ver isto desgosta duramente o homem porque ele vangloria-se da sua humanidade frente ao animal, embora olhe invejoso para a sua felicidade – pois o homem quer apenas isso, viver como animal, sem melancolia, sem dor; e o que quer entretanto em vão, porque não quer como o animal. O homem pergunta mesmo um dia ao animal: por que não falas sobre a tua felicidade e apenas me observas?
O animal quer também responder e falar, isso deve-se ao facto de que sempre se esquece do que queria dizer, mas também já esqueceu esta resposta e silencia: de tal modo que o homem se admira disso. Todavia, o homem também se admira de si mesmo por não poder aprender a esquecer e por sempre se ver novamente preso ao que passou: por mais longe e rápido que ele corra, a corrente corre junto. É um milagre: o instante em um átimo está aí,
Textos sobre Dia de Friedrich Nietzsche
12 resultadosOs Doentes São o Maior Perigo da Humanidade
Se tão normal é o homem em estado morboso, tanto mais de devem estimar os raros exemplos de potência física e corpural, os acidentes felizes da espécie humana, e tanto mais devem ser preservados do ar infecto os seres robustos. Faz-se assim ?…
Os doentes são o maior perigo para os sãos; daqueles vêm todos os males. Já se reparou suficientemente nisto?… Decerto se não deve desejar que diminua a violência entre os homens; porque esta violência obriga os homens a serem fortes, e mantém na sua integridade o tipo do homem robusto. O temível e desastroso é o grande tédio do homem e a sua grande compaixão. Se algum dia estes elementos se unirem, darão á luz irremissivelmente a monstruosa «última» vontade, a sua vontade do nada, o niilismo.
E efectivamente tudo está já preparado para este fim. Os que têm olhos, ouvidos, nariz, percebem por todos os lados a atmosfera de um manicómio e de um hospital, em todas as partes do mundo civilizado, europeizado. Os doentes são o maior perigo da humanidade; não os maus, não as «feras de rapina». Os desgraçados, os vencidos, os impotentes, os fracos são os que minam a vida e envenenam e destroem a nossa confiança.
A Vida não me Desapontou
Não, a vida não me desapontou! Pelo contrário, todos os anos a acho melhor, mais desejável, mais misteriosa… desde o dia em que vejo a mim a grande libertadora, a ideia de que a vida podia ser experiência para aqueles que procuram saber, e não dever, fatalidade, duplicidade!… Quanto ao próprio conhecimento, seja ele para outros aquilo que quiser, um leito de repouso, ou o caminho para um leito de repouso, ou distracção ou vagabundagem, para mim é um mundo de perigos, é um universo de vitórias onde os sentimentos heróicos têm a sua sala de baile. «A vida é um meio de conhecimento»; quando se tem este princípio no coração, pode viver-se não somente corajoso mas feliz, pode-se rir alegremente!
O Defeito dos Homens Activos
Aos activos falta, habitualmente, a actividade superior: refiro-me à individual. Eles são activos enquanto funcionários, comerciantes, eruditos, isto é, como seres genéricos, mas não enquanto pessoas perfeitamente individualizadas e únicas; neste aspecto, são indolentes. A infelicidade das pessoas activas é a sua actividade ser quase sempre um tanto absurda. Não se pode, por exemplo, perguntar ao banqueiro, que junta dinheiro, qual o objectivo da sua incansável actividade: ela é irracional. Os homens activos rebolam como rebola a pedra, em conformidade com a estupidez da mecânica. Todos os homens se dividem, como em todos os tempos também ainda actualmente, em escravos e livres; pois quem não tiver para si dois terços do seu dia é um escravo, seja ele, de resto, o que quiser: político, comerciante, funcionário, erudito.
Mais Vale Ser Surdo que Ensurdecido
Antigamente as pessoas queriam criar-se uma reputação: isso já não basta, a feira tornou-se demasiado vasta; agora é necessário vender aos berros. A consequência é que mesmo as melhores gargantas forçam a voz e as melhores mercadorias não são oferecidas por orgãos enrouquecidos; já não há génio, nos nossos dias, sem clamor e sem rouquidão. Época vil para o pensador: devemos aprender a encontrar entre duas barulheiras o silêncio de que se tem necessidade e a fingir de surdo até chegar a sê-lo. Enquanto não se tiver chegado a isso, corre-se o risco de perecer de impaciência e de dores de cabeça.
A Cautela dos Espíritos Livres
Os homens de espírito livre, que vivem só para o conhecimento, em breve acharão ter alcançado a sua definitiva posição relativamente à sociedade e ao Estado e, por exemplo, dar-se-ão de bom grado por satisfeitos com um pequeno emprego ou com uma fortuna que chega à justa para viver; pois arranjar-se-ão para viver de maneira que uma grande transformação dos bens materiais, até mesmo um derrube da ordem política, não deite também abaixo a sua vida. Em todas essas coisas eles gastam a menor energia possível, de modo a poderem imergir, com todas as forças reunidas e, por assim dizer, com um grande fôlego, no elemento do conhecimento. Podem, assim, ter esperança de mergulhar profundamente e também de, talvez, verem bem até ao fundo.
De um dado acontecimento, um tal espírito pegará de bom grado só numa ponta: ele não gosta das coisas em toda a sua amplitude e superabundância das suas pregas, pois não se quer emaranhar nelas. Também ele conhece os dias de semana da falta de liberdade, da dependência, da servidão. Mas, de tempos a tempos, tem de lhe aparecer um domingo de liberdade, senão ele não suportará a vida. É provável que mesmo o seu amor pelos seres humanos seja cauteloso e com pouco fôlego,
Retrocesso Civilizacional
São talvez as prioridades dos nossos tempos que acarretam um retrocesso e uma eventual depreciação da vida contemplativa. Mas há que confessar que a nossa época é pobre em grandes moralistas, que Pascal, Epicteto, Séneca, Plutarco pouco são lidos ainda, que o trabalho e o esforço – outrora, no séquito da grande deusa Saúde – parecem, por vezes, grassar como uma doença. Porque faltam tempo para pensar e sossego no pensar, já não se examina as opiniões diferentes: a gente contenta-se em odiá-las. Dada a enorme aceleração da vida, o espírito e o olhar são acostumados a ver e a julgar parcial ou erradamente, e toda a gente se assemelha aos viajantes que ficam a conhecer um país e um povo, vendo-os do caminho-de-ferro.
Uma atitude independente e cautelosa em matéria de conhecimento é menosprezada quase como uma espécie de tolice, o espírito livre é difamado, nomeadamente, por eruditos que, na sua arte de observar as coisas, sentem a falta da minúcia e do zelo de formigas que lhes são próprios, e bem gostariam de bani-lo para um canto isolado da ciência: quando ele tem a missão, completamente diferente e superior, de comandar, a partir de uma posição solitária,
Dar Estilo ao Seu Carácter
«Dar estilo» ao seu carácter… é uma arte deveras considerável que raramente se encontra! Para a exercer é necessário que o nosso olhar possa abranger tudo o que há de forças e de fraquezas na nossa natureza, e que as adaptemos em seguida a um plano concebido com gosto, até que cada uma apareça na sua razão e na sua beleza e que as próprias fraquezas seduzam os olhos. Aqui ter-se-á acrescentado uma grande massa de segunda natureza, nos pontos onde se terá tirado um pedaço da primeira, à custa, nos dois casos, de um paciente exercício e de um trabalho de todos os dias. Neste lugar disfarçou-se uma fealdade que se não podia fazer desaparecer, noutro ela foi transmudada, fez-se dela uma beleza sublime. Grande número de elementos, que se recusavam a tomar forma, foram reservados para ser utilizados nos efeitos de perspectiva: darão os longes, o apelo do infinito. Foi a unidade, a pressão de um mesmo gosto que dominou e afeiçoou no grande e no pequeno: a que ponto, vemo-lo por fim, uma vez terminada a obra; que esse gosto seja bom ou mau, importa menos do que se pensa, basta que tenha havido um.
Serão as naturezas fortes e dominadoras que apreciarão as alegrias mais subtis nesta opressão,
Aparentes Fazedores do Tempo na Política
Tal como o povo, perante quem seja entendido no tempo e o preveja com um dia de antecedência, admite tacitamente que ele faz o tempo, assim também mesmo pessoas cultas e doutas, recorrendo a uma fé supersticiosa, atribuem aos grandes estadistas todas as alterações e conjunturas importantes que se deram durante o seu governo, como se estas fossem a sua obra mais pessoal, quando é simplesmente visível que aqueles souberam alguma coisa do assunto mais cedo do que outros e fizeram o seu cálculo em conformidade: portanto, são também tomados por fazedores do tempo… e essa crença não é o mais insignificante instrumento do seu poder.
O Que os Outros Sabem de Nós
O que sabemos de nós próprios, o que a nossa memória reteve, é menos decisivo do que se pensa para a felicidade da nossa vida. Chega um dia em que surge nela aquilo que, sabem os outros (ou julgam saber), de nós: damo-nos então conta de que a sua opinião é mais poderosa. Arranjamo-nos melhor com a má consciência do que com a má reputação.
A Acção Edifica-nos
Os nossos actos transformam-nos; em cada um dos nossos actos se exercem certas forças – enquanto que noutros, não – forças essas que assim são transitoriamente ignoradas; e sempre uma paixão se afirma em detrimento doutras paixões, às quais retira forças. Os nossos actos marcadamente habituais acabam por formar em redor de nós como que um edifício sólido; açambarcam as nossas forças de tal modo, que tornam difícil um desvio de intenções.
Acontece também que uma abstenção habitual acaba por transformar o homem. Até pela cara se consegue adivinhar quem é um homem que se tem vencido a si próprio diariamente, ou quem é um homem que se entrega com passividade ao dia a dia.
A primeira consequência da acção, é ser ela a edificar-nos, até fisicamente.
Hábitos Breves
Gosto dos hábitos que não duram; são de um valor inapreciável se quisermos aprender a conhecer muitas coisas, muitos estados, sondar toda a suavidade, aprofundar a amargura. Tenho uma natureza que é feita de breves hábitos, mesmo nas necessidades de saúde física, e, de uma maneira geral, tão longe quanto posso ver nela, de alto a baixo dos seus apetites. Imagino sempre comigo que esta ou aquela coisa se vai satisfazer duradouramente – porque o próprio hábito breve acredita na eternidade, nesta fé da paixão; imagino que sou invejável por ter descoberto tal objecto: devoro-o de manhã à noite, e ele espalha em mim uma satisfação, cujas delícias me penetram até à medula dos ossos, não posso desejar mais nada sem comparar, desprezar ou odiar.
E depois um belo dia, aí está: o hábito acabou o seu tempo; o objecto querido deixa-me então, não sob o efeito do meu fastio, mas em paz, saciado de mim e eu dele, como se ambos nos devêssemos gratidão e estendemo-nos a mão para nos despedirmos. E já um novo me aguarda, mas aguarda no limiar da minha porta com a minha fé – a indestrutível louca… e sábia! – em que este novo objecto será o bom,