A Luta de Classes Acabou
A luta de classes esfumou-se, dissolveu-se, a democracia tem funcionado como um diluente social: toda a gente vive, compra e acorre ao hipermercado, ao balcĂŁo do bar e aos concertos pagos pelo municĂpio na praça central, e todos falam ao mesmo tempo, vozes que se misturam como nas tumultuosas reuniões no cine Tivoli evocadas pelo meu pai, já nĂŁo se distingue o que está em cima do que está em baixo, está tudo enredado, confuso, e, porĂ©m, reina uma misteriosa ordem, eis a democracia. Mas, de sĂşbito, desde há um par de anos, parece desenhar-se uma ordem mais explĂcita, menos insidiosa. A nova ordem Ă© bem visĂvel, com os nĂveis superior e inferior bem definidos: alguns transportam com orgulho sacos repletos de compras e cumprimentam sorridentes os vizinhos Ă porta do centro comercial, outros remexem nos contentores onde os empregados do hipermercado lançaram as embalagens de carne fora de prazo, a fruta e as verduras pisadas, os pastĂ©is industriais caducados. Lutam entre si por esses alimentos.
(…) Trivial, a luta de classes? EntĂŁo nĂŁo era isso que determinava, que impregnava e condicionava tudo? O grande motor da histĂłria universal? NĂŁo era nisso que acreditavam o meu pai e os seus camaradas,
Textos sobre Diferença de Rafael Chirbes
2 resultadosUm Ser Humano nĂŁo Ă© Grande Coisa
NĂŁo tenhamos ilusões: um ser humano nĂŁo Ă© grande coisa. De facto, há tantos que os governos nĂŁo sabem o que fazer com eles. Seis mil milhões de humanos Ă face da Terra e apenas seis ou sete mil tigres de Bengala – ora digam lá qual das espĂ©cies necessita de mais proteção, de cuidados especiais. Sim, escolham vocĂŞs mesmos. Um negro, um chinĂŞs, um escocĂŞs, ou um belo tigre que cai vĂtima de um caçador. Um tigre, com a sua pelagem listrada de cores incomparáveis e os seus olhos coruscantes, Ă© bastante mais belo do que um velhote cheio de varizes como eu. Que diferença de porte. Comparem a agilidade de um com a inĂ©pcia do outro. Vejam como se movem. Metam-nos em jaulas do jardim zoolĂłgico, lado a lado. Diante da jaula do velho concentram-se as crianças que riem ao vĂŞ-lo catar-se e pĂ´r-se de cĂłcoras para defecar; diante da do tigre, arregalam os olhos de admiração. Acabou essa ilusĂŁo segundo a qual o homem Ă© o centro do universo. É verdade que no animal humano distinguimos os gestos, os rostos e as vozes, o que estimula a nossa empatia, mas tambĂ©m distinguimos caracterĂsticas particulares, que associamos a sentimentos,