Um Infinito Domingo Ă Tarde
Regra geral, um ser humano agora vive tanto que acaba por arrastar muito mais penas do que as que lhe dizem respeito, e isso acaba por notar-se-lhe no rosto. Uma das consequĂŞncias da crescente longevidade do habitante das sociedades desenvolvidas, em que, por outro lado, nĂŁo se costuma pensar demasiado, Ă© que, contrariamente ao que sucedia há algumas dĂ©cadas, os velhos de hoje tĂŞm tempo para assistir Ă devastação da vida dos filhos, veem-nos praticamente envelhecer, fracassar, cansar-se da luta. Antes, na hora da morte dos pais, os filhos eram ainda fortes, tinham projetos, mulheres bonitas, um futuro aparentemente luminoso. Agora Ă© fácil que um avĂ´ contemple antes de morrer o divĂłrcio do neto (vĂŞ-o aos domingos sentar-se Ă mesa na casa da famĂlia, sem um cĂŞntimo, com a camisa amarrotada), enquanto no mundo anterior a este, por razões de tempo, o neto nĂŁo era mais do que uma criança que Ă s vezes ia buscar ĂŁ escola, a quem dava a mĂŁo no regresso a casa e ajudava a conseguir nos alfarrabistas os cromos que lhe faltavam na sua coleção de futebolistas. Hoje, o velho que morre nĂŁo abandona um mundo em marcha cheio de projetos e promessas, como sucedia dantes,
Textos sobre DifĂcil de Carlos Castán
2 resultadosO ExercĂcio de Viver
Se o exercĂcio de viver consiste maioritariamente em se ir atraiçoando um por um os sonhos que animaram os nossos anos de infância e juventude, entĂŁo cada pessoa Ă© o resultado exato de um bom punhado de traições. Ă€s vezes centenas. Traem-se os sonhos mais puros e traem-se tambĂ©m os pesadelos. Por erro humano, fugimos de tempestades sem nos apercebermos de que eram tĂŁo nossas e estavam tĂŁo mergulhadas na nossa prĂłpria medula que sem elas nĂŁo poderĂamos existir. Dizemos, salva-me; dizemos, a ti já nĂŁo quererei cravar facas nas pernas, nĂŁo te farei mal, nĂŁo desejarei ver a tua expressĂŁo de dor em nenhum espelho, amar-te-ei de outro modo, adorar-te-ei a partir de um ser que nĂŁo existe, chamarei suplĂcio ao meu passado, chamar-lhe-ei calvário atĂ© chegar a ti. Dir-te-ei que Ă©s suave como sonho o cĂ©u e que nĂŁo me importo de fechar os olhos a tudo para sempre se souber que depois irás beijar-me as pálpebras. NĂŁo serei eu. Lançarei pazadas e mais pazadas de terra sobre o monstro. Aproximar-me-ei o mais possĂvel do nada, de um caixĂŁo sem morto, de uma catedral vazia. Comprar-te-ei flores.
NĂŁo pode ser muito difĂcil porque nada Ă© o que somos em definitivo,