Passa-se a Vida Temendo ou Desejando a Morte
A morte pode dar ensejo a dois sentimentos opostos: ou fazer pensar que morrer é tornar-se o mais vulnerável dos seres, sem defesa contra o desconhecido; ou que é tornar-se invulnerável e afastado de todos os males possíveis. Em quase todos, esses dois sentimentos existem e alternam-se. Passa-se a vida temendo ou desejando a morte.
Textos sobre Dois
451 resultadosDeixemos a Humanidade à Sua Ordem Natural
Não aleijemos a pobre humanidade mais do que ela já está com tantas sacudidelas da direita para a esquerda e da esquerda para a direita, de cima para baixo e de baixo para cima. Do individualismo para o colectivismo e do colectivismo para o individualismo. Não sejamos tão crianças que queiramos levantar ao ar a esfera pretendendo agarrá-la apenas pelo hemisfério da direita ou apenas pelo da esquerda, ou apenas pelo hemisfério superior, porque a única maneira de agarrá-la bem tão-pouco é pôr-lhe as mãos por baixo, nem ainda abraçando-a com os dois braços e os dedos metidos uns nos outros para não deixar escapar as mãos e com o próprio peito do lado de cá a ajudar também; a única maneira de equilibrar a esfera no ar é deixá-la estar no ar como a pôs Deus Nosso Senhor, ás voltas à roda do sol, como a lua à roda de nós e assegurada contra todos os riscos dos disparates da humanidade.
Dificuldade de Leitura
Quando encontro alguma dificuldade no curso da leitura, não fico a roer as unhas; passo adiante, depois de ter feito uma ou duas tentativas de resolvê-la.
Se insistisse nela, iria perder-me, e ao meu tempo, pois tenho espírito resoluto e impaciente. O que não vejo da primeira vez, menos o vejo se insistir. Nada faço sem alegria; o esforço por demais seguido e obstinado ofusca, aflige e fatiga o meu entendimento. A minha vista confunde-se e cansa-se. É-me mister dar-lhe alguma distracção, do mesmo modo por que, para avaliar o lustro do escarlate, recomendam-nos que lhe passemos os olhos de relance, e que voltemos a fazê-lo diversas vezes, de modo súbito e reiterado.
Os Amantes não Contam Nada de Novo uns aos Outros
A alma só acolhe o que lhe pertence; de certo modo, ela já sabe de antemão tudo aquilo por que vai passar. Os amantes não contam nada de novo uns aos outros, e para eles também não existe reconhecimento. De facto, o amante não reconhece no ser que ama nada a não ser que é transportado por ele, de modo indescritível, para um estado de dinamismo interior. E reconhecer uma pessoa que não ama significa para ele trazer o outro ao amor como uma parede cega sobre a qual cai a luz do Sol. E reconhecer uma coisa inerte não significa identificar os seus atributos uns a seguir aos outros, mas sim que um véu cai ou uma fronteira se abre, e nenhum deles pertence ao mundo da percepção. Também o inanimado, desconhecido como é, mas cheio de confiança, entra no espaço fraterno dos amantes. A natureza e o singular espírito dos amantes olham-se nos olhos, e são as duas direcções de um mesmo agir, um rio que corre em dois sentidos, um fogo que arde em dois extremos.
E então é impossível reconhecer uma pessoa ou uma coisa sem relação connosco próprios, pois o acto de tomar conhecimento toma das coisas qualquer coisa;
Arte Com ou Sem Nacionalidade
O que se deve entender por arte portuguesa? Concorda com este termo? Há arte verdadeiramente portuguesa?
— Por arte portuguesa deve entender-se uma arte de Portugal que nada tenha de português, por nem sequer imitar o estrangeiro. Ser português no sentido decente da palavra, é ser europeu sem a má-criação de nacionalidade. Arte portuguesa será aquela em que a Europa — entendendo por Europa principalmente a Grécia antiga e o universo inteiro — se mire e se reconheça sem se lembrar do espelho. Só duas nações — a Grécia passada e Portugal futuro — receberam dos deuses a concessão de serem não só elas mas também todas as outras. Chamo a sua atenção para o facto, mais importante que geográfico, de que Lisboa e Atenas estão quase na mesma latitude.
A Imperfeição dos Nossos Sentidos
Se os nossos sentidos fossem perfeitos, não precisávamos de inteligência; nem as ideias abstractas de nada nos serviriam. A imperfeição dos nossos sentidos faz com que não concordemos em absoluto sobre um objecto ou um facto do exterior. Nas ideias abstractas concordamos em absoluto.
Dois homens não vêem uma mesa da mesma maneira; mas ambos entendem a palavra «mesa» da mesma maneira. Só querendo visualizar uma coisa é que divergirão; isso, porém, não é a ideia abstracta da mesa.
Olhar e Chorar
Notável criatura são os olhos! Admirável instrumento da natureza; prodigioso artifício da Providência! Eles são a primeira origem da culpa; eles a primeira fonte da Graça. São os olhos duas víboras, metidas em duas covas, e que a tentação pôs o veneno, e a contrição a triaga. São duas setas com que o Demónio se arma para nos ferir e perder; e são dois escudos com que Deus depois de feridos nos repara para nos salvar. Todos os sentidos do homem têm um só ofício; só os olhos têm dois. O Ouvido ouve, o Gosto gosta, o Olfacto cheira, o Tacto apalpa, só os olhos têm dois ofícios: Ver e Chorar. Estes serão os dois pólos do nosso discurso.
Ninguém haverá (se tem entendimento) que não deseje saber por que ajuntou a Natureza no mesmo instrumento as lágrimas e a vista; e por que uniu a mesma potência o ofício de chorar, e o de ver? O ver é a acção mais alegre; o chorar a mais triste. Sem ver, como dizia Tobias, não há gosto, porque o sabor de todos os gostos é o ver; pelo contrário, o chorar é o estilado da dor, o sangue da alma,
O Amor-Próprio como Fonte de Todos os Males
É preciso não confundir o amor-próprio e o amor de si mesmo, duas paixões muito diferentes pela sua natureza e pelos seus efeitos. O amor de si mesmo é um sentimento natural que leva todo o animal a velar pela sua própria conservação, e que, dirigido no homem pela razão e modificado pela piedade, produz a humanidade e a virtude. O amor-próprio é apenas um sentimento relativo, factício e nascido na sociedade, que leva cada indivíduo a fazer mais caso de si do que de qualquer outro, que inspira aos homens todos os males que se fazem mutuamente, e que é a verdadeira fonte da honra.
Bem entendido isso, repito que, no nosso estado primitivo, no verdadeiro estado de natureza, o amor-próprio não existe; porque, cada homem em particular olhando a si mesmo como o único espectador que o observa, como o único ser no universo que toma interesse por ele, como o único juiz do seu próprio mérito, não é possível que um sentimento que teve origem em comparações que ele não é capaz de fazer possa germinar na sua alma.
Pela mesma razão, esse homem não poderia ter ódio nem desejo de vingança, paixões que só podem nascer da opinião de alguma ofensa recebida.
As Vantagens de se Ser um Pobre-Diabo
Para aquele que não é nobre, mas dotado de algum talento, ser um pobre-diabo é uma verdadeira vantagem e uma recomendação. Pois o que cada um mais procura e aprecia, não apenas na simples conversação, mas sobretudo no serviço público, é a inferioridade do outro. Ora, só um pobre-diabo está convencido e compenetrado em grau suficiente da sua completa, profunda, decisiva, total inferioridade e da sua plena insignificância e ausência de valor, tal como exige o caso. Apenas ele, portanto, inclina-se amiúde e por bastante tempo, e apenas a sua reverência atinge plenos noventa graus; apenas ele suporta tudo e ainda sorri; apenas ele conhece como obras-primas, em público, em voz alta ou em grandes caracteres, as inépcias literárias dos seus superiores ou dos homens influentes em geral; apenas ele sabe como mendigar; por conseguinte, apenas ele se pode tornar um iniciado, a tempo, portanto, na juventude, naquela verdade oculta que Goethe nos revelou nos seguintes termos:
Sobre a baixeza
Que ninguém se lamente:
Pois ela é a potência,
Não importa o que te digam.
Em contrapartida, quem já nasceu com uma fortuna que lhe garanta a existência irá posicionar-se, na maioria das vezes,
O Provincianismo Literário
O provincianismo do querer fazer «como lá fora» não é pecha só portuguesa. A maior parte dos países são importadores de cultura. No entanto, redimem-se no desafogo de casos geniais, como um Lorca em Espanha e como um Ghelderode na Bélgica. Cito estes dois exemplos porque eles acusam o verdadeiro alcance que pode ter o universal quando mergulha nos mais íntimos recessos do popular. Quer Lorca, quer o autor de Mademoiselle Jair, apreenderam na psique espanhola e flamenga algo que encerra o universal em bruto na sua forma mais primitiva e, por isso mesmo, de toda a gente. Entre nós pratica-se o inverso. Tem-se horror do popular pelo grande embasbacamento em que se está perante uma cultura que não sendo vivificada pela experiência, redunda em erudição.
Tremo Sempre Diante do Amor
Nadia, deves ter visto a falta de jeito com que no último momento te pedi o número do telefone e este endereço de correio eletrónico para onde te escrevo, e deves ter-te apercebido também da peregrina desculpa: os dois sabemos que podes conseguir de mil outras maneiras diferentes 05 livros que fiquei de te emprestar. Há-os em muitos lados. Toda a gente os tem. Pode até acontecer que já façam parte da tua biblioteca há anos e que neste momento estejas a olhar as suas lombadas da cadeira onde estás sentada enquanto me lês; e também pode acontecer, na realidade não me admiraria nada, que seja eu quem não os tem nem os teve nunca. Durante o jantar não conseguia tirar os olhos de ti, mas isso já tu sabes. Perante isso, apenas posso esperar que o resto dos comensais, especialmente os teus amigos, não se tenham apercebido de até que ponto me eram indiferentes as restantes pessoas e conversas. Como viste, tenho já um longo caminho percorrido. Sou um homem com passado, como se costuma dizer, embora isso não faça com que seja mais fácil para mim escrever uma carta como esta. Porque isto é uma carta, não é verdade?
A Cólera dos Bondosos e a Cólera das Almas Fracas
Podemos distinguir duas espécies de cólera: uma que é muito súbita e se manifesta muito no exterior, mas mesmo assim tem pouco efeito e pode facilmente ser apaziguada; e outra que inicialmente não aparece tanto, porém corrói mais o coração e tem efeitos mais perigosos. Os que têm muita bondade e muito amor são mais sujeitos à primeira. Pois ela não provém de um ódio profundo, e sim de uma súbita aversão que os surpreende, porque, sendo levados a imaginar que as coisas devem desenrolar-se da forma como julgam ser a melhor, tão logo acontece de forma diferente; eles ficam admirados e frequentemente se ofendem com isso, mesmo que a coisa não os atinja pessoalmente, porque, tendo muita afeição, interessam-se por aqueles a quem amam, da mesma forma que por si mesmos. Assim, o que para outra pessoa seria apenas motivo de indignação é para eles um motivo de cólera. E como a inclinação que têm para amar faz que tenham muito calor e muito sangue no coração, a aversão que os surpreende não pode impelir para este tão pouca bile que isso não cause inicialmente uma grande emoção no sangue. Mas tal emoção pouco dura, porque a força da surpresa não se prolonga e porque,
O Dom de Deixar Ir
É preciso aprender a viver. A qualidade da nossa existência depende de um equilíbrio fundamental na nossa relação com o mundo: apego e desapego. Nesta vida, a ponderação, a proporção e a subtileza são sempre melhores que qualquer arrebatamento. Mas o essencial é aprender que a existência é feita de dádivas e perdas.
Eis porque quem reza deve pedir e agradecer: tudo é, na verdade, um dom. Tudo passa… importa pois prepararmo-nos para a perda, ainda que tantas vezes não seja senão temporária… Alegrias e dores. Só há felicidade num coração onde habita a sabedoria e paciência dos tempos e dos momentos, a paz de quem sabe que são muitos os porquês e para quês que ultrapassam a capacidade humana de compreender.
Na vida, tudo se recebe e tudo se perde.
Amar é um apego natural mas também obriga a que deixemos o outro ser quem é, abrindo mão e permitindo-lhe que parta, ou que fique, sem desejar outra coisa senão que seja radicalmente livre. Aprendendo que há muito mais valor no ato de quem decide ficar do que naquele de quem só está por não poder partir.Nada verdadeiramente nos pertence. O sublime do amor está aí,
O Mal Saltitante
A morte é apenas uma consequência da nossa maneira de viver. Vivemos de pensamento em pensamento, de sensação em sensação. Os nossos pensamentos e as nossas sensações não correm tranquilamente como um rio, «ocorrem-nos», caem em nós como pedras. Se te observares bem, sentirás que a alma não é algo que vai mudando de cor em gradações progressivas, mas que os pensamentos saltam dela como algarismos saindo de um buraco negro. Neste momento tens um pensamento ou uma sensação, e no seguinte aparece outro, diferente, como que saído do nada. Se deres atenção, até podes sentir o instante entre dois pensamentos, quando tudo se torna negro. Esse instante, uma vez apreendido, é para nós o mesmo que a morte.
Pois a nossa vida resume-se a definir marcos e a saltar de um para o outro, diariamente, passando por milhares de instantes de morte. De certo modo, vivemos apenas nos pontos de repouso. É por isso que temos esse medo ridículo da morte irreversível, porque ela é, em absoluto, o lugar sem marcos, o abismo insondável em que caímos. Na verdade, ela é a negação absoluta daquela maneira de viver.
Mas isto só é assim quando visto da perspectiva desta vida,
A Morte que Trazemos no Coração
É no coração que morremos. É aí que a morte habita.
Nem sempre nos damos conta que a carregamos connosco, mas, desde que somos vida, ela segue-nos de perto. Enquanto não somos tomados pela nossa, vamos assistindo e sentindo, em ritmo crescente ao longo da vida, às mortes de quem nos é querido. A morte de um amigo é como uma amputação: perdemos uma parte de nós; uma fonte de amor; alguém que dava sentido à nossa existência… porque despertava o amor em nós.
Mas não há sabedoria alguma, cultura ou religião, que não parta do princípio de que a realidade é composta por dois mundos: um, a que temos acesso direto e, outro, que não passa pelos sentidos, a ele se chega através do coração. Contudo, o visível e o invisível misturam-se de forma misteriosa, ao ponto de se confundirem e, como alguns chegam a compreender, não serem já dois mundos, mas um só.
Só as pessoas que amamos morrem. Só a sua morte é absoluta separação. Os estranhos, com vidas com as quais não nos cruzamos, não morrem, porque, para nós, de facto, não chegam sequer a ser.Só as pessoas que amamos não morrem.
Evitar a Sabedoria de Umbigo
Se alguém se inebria com o seu saber ao olhar para baixo de si, que volte o olhar para cima, rumo aos séculos passados, e abaixará os cornos ao encontrar aí tantos milhares de espíritos que o calcam aos pés. Se ele forma alguma ligeira presunção do seu valor, que se recorde das vidas dos dois Cipiões e dos incontáveis exércitos e povos que o deixam muito para trás. Nenhuma particular qualidade dará motivo de orgulho aquele que, ao mesmo tempo, tiver em conta os muitos traços de imperfeição e debilidade que em si há e, enfim, a nulidade da condição humana.
Porque Sócrates foi o único a compreender acertadamente o preceito do seu Deus, o de conhecer-se a si mesmo, e através de tal estudo, ter chegado a desprezar-se, só ele foi julgado digno de sobrenome de «sábio». Quem assim se conhecer, que tenha a audácia de, pela sua própria boca, o dar a conhecer.
A Intimidade na Amizade
Ele encontrou alguém com quem pode falar, pensei. E eu também, pensei a seguir. No momento em que um homem começa a falar de sexo a outro, está a dizer alguma coisa acerca de ambos. Noventa por cento das vezes isso não acontece, e talvez seja melhor que não aconteça, mas se não conseguirmos alcançar um certo grau de franqueza no que respeita a sexo e optamos por proceder como se nem sequer pensássemos nisso, então a amizade masculina é incompleta. A maioria dos homens nunca encontra um amigo assim. Não é comum. Mas quando acontece, quando dois homens se descobrem de acordo sobre esta parte essencial de ser um homem, sem medo de serem julgados, aviltados, invejados ou dominados, seguros de que a sua confiança não será traída, a sua relação humana pode tornar-se muito forte e nascer uma intimidade inesperada.
O Ódio liga mais os Indivíduos que a Amizade
O ódio, a inveja e o desejo de vingança ligam muitas vezes mais dois indivíduos um ao outro do que o podem fazer o amor e a amizade. Pois está em causa a comunidade de interesses interiores ou exteriores e a alegria que se sente nessa comunidade – onde é muitas vezes determinada a essência das relações positivas entre os indivíduos: o amor e a amizade – é sempre relativa e não é em nenhum caso um estado de alma permanente; mas as relações negativas, essas são, a maior parte das vezes, absolutas e constantes. O ódio, a inveja e o desejo de vingança têm, poder-se-ia dizer, o sono mais ligeiro do que o amor. O menor sopro os desperta, enquanto que o amor e a amizade continuam tranquilamente a dormir, mesmo sob o trovão e os relâmpagos.
O que Une uma Mulher a um Homem
O que une uma mulher a um homem não passa por nada do que aparentemente vale. Passa por onde? Não, não: pode não ser por aí, embora seja fundamentalmente por aí. Porque mesmo aí outros poderiam cumprir melhor, com o acréscimo do resto. Há uma falha (uma falta) essencial na mulher que só um certo homem pode preencher. E não é necessariamente essa. O mais misterioso no domínio das relações é o que se situa nas relações amorosas. Ou seja no que há de mais íntimo, essencial, primeiro do ser humano. Um labregório qualquer, torto, bronco, cabeçudo, pode ser amado pela mulher mais divinal e inteligente e ilustrada e refinada de figura. Haverá, pois, para o homem dois mundos que não comunicam entre si e que se separam na porta do quarto. Poucos são os que a atravessam em glória — idos da rua ou para a rua.
Quem busca o conhecimento e o acha, obterá dois prémios: um por procurá-lo
Quem busca o conhecimento e o acha, obterá dois prémios: um por procurá-lo, e outro por achá-lo. Se não o encontrar, ainda restará o primeiro prémio.