O Sentido de Possibilidade
Poderia definir-se o sentido de possibilidade como aquela capacidade de pensar tudo aquilo que também poderia ser e de não dar mais importância àquilo que é do que àquilo que não é. Como se vê, as consequências desta disposição criadora podem ser notáveis; infelizmente, não é raro que façam aparecer como falso aquilo que as pessoas admiram e como lícito aquilo que elas proíbem, ou então as duas coisas como sendo indiferentes. Esses homens do possível vivem, como se costuma dizer, numa trama mais subtil, numa teia de névoa, fantasia, sonhos e conjuntivos; se uma criança mostra tendências destas, acaba-se firmemente com elas, e diz-se-lhe que tais pessoas são visionários, sonhadores, fracos, gente que tudo julga saber melhor e em tudo põe defeito.
Quando se quer elogiar estes loucos, chama-se-lhes também idealistas, mas é claro que com isso só se alude à sua natureza débil, incapaz de compreender a realidade, ou que a evita por melancolia, uma natureza na qual a falta do sentido de realidade é um verdadeiro defeito. O possível, porém, não abarca apenas os sonhos dos neurasténicos, mas também os desígnios ainda adormecidos de Deus. Uma experiência possível ou uma verdade possível não são iguais a uma experiência real e uma verdade real menos o valor da sua realidade,
Textos sobre Dois
451 resultadosÉ Impossível que o Tempo Actual não Seja o Amanhecer doutra Era
É impossível que o tempo actual não seja o amanhecer doutra era, onde os homens signifiquem apenas um instinto às ordens da primeira solicitação. Tudo quanto era coerência, dignidade, hombridade, respeito humano, foi-se. Os dois ou três casos pessoais que conheço do século passado, levam-me a concluir que era uma gente naturalmente cheia de limitações, mas digna, direita, capaz de repetir no fim da vida a palavra com que se comprometera no início dela. Além disso heróica nas suas dores, sofrendo-as ao mesmo tempo com a tristeza do animal e a grandeza da pessoa. Agora é esta ferocidade que se vê, esta coragem que não dá para deixar abrir um panarício ou parir um filho sem anestesia, esta tartufice, que a gente chega a perguntar que diferença haverá entre uma humanidade que é daqui, dali, de acolá, conforme a brisa, e uma colónia de bichos que sentem a humidade ou o cheiro do alimento de certo lado, e não têm mais nenhuma hesitação nem mais nenhum entrave.
A Diagonal da Vida
Ao olharmos o caminho que percorremos na vida, ao abarcarmos o seu «erróneo curso labiríntico» (Fausto), não podemos deixar de ver muita felicidade malograda, muita desgraça atraída, e talvez facilmente exageremos nas repreensões a nós mesmos. O curso da vida não é certamente a nossa obra exclusiva, mas o produto de dois factores, a saber, a série dos acontecimentos e a das nossas decisões. Séries que sempre interagem e se modificam reciprocamente. Além disso, há o facto de que, em ambas, o nosso horizonte é sempre bastante limitado, na medida em que não podemos predizer com muita antecipação as nossas decisões e muito menos prever os acontecimentos; na verdade, de ambos conhecemos com justeza apenas os acontecimentos e decisões actuais.
Sendo assim, enquanto o nosso alvo está longe, não podemos dirigir-nos directamente para ele, mas só por aproximações e conjecturas, amiúde tendo de bordejar. Tudo o que conseguimos é tomar decisões sempre segundo a medida das circunstâncias presentes, na esperança de fazê-lo bem, para desse modo nos aproximarmos do alvo principal. Na maioria das vezes, portanto, os acontecimentos e as nossas intenções básicas são comparáveis a duas forças que agem em direcções opostas, sendo a diagonal resultante o curso da nossa vida.
Vivemos Presos ao Nosso Passado e ao Nosso Futuro
A nós ligam-nos o nosso passado e o nosso futuro. Passamos quase todo o nosso tempo livre e também quanto do nosso tempo de trabalho a deixá-los subir e descer na balança. O que o futuro excede em dimensão, substitui o passado em peso, e no fim não se distinguem os dois, a meninice torna-se clara mais tarde, tal como é o futuro, e o fim do futuro já é de facto vivido em todos os nossos suspiros e assim se torna passado. Assim quase se fecha este círculo em cujo rebordo andamos. Bem, este círculo pertence-nos de facto, mas só nos pertence enquanto nos mantivermos nele; se nos afastarmos para o lado uma vez que seja, por distracção, por esquecimento, por susto, por espanto, por cansaço, eis que já o perdemos no espaço; até agora tínhamos tido o nariz metido na corrente do tempo, agora retrocedemos, ex-nadadores, caminhantes actuais, e estamos perdidos. Estamos do lado de fora da lei, ninguém sabe disso, mas todos nos tratam de acordo com isso.
O Nobre Patriotismo dos Patriotas
Há em primeiro lugar o nobre patriotismo dos patriotas: esses amam a pátria, não dedicando-lhe estrofes, mas com a serenidade grave e profunda dos corações fortes. Respeitam a tradição, mas o seu esforço vai todo para a nação viva, a que em torno deles trabalha, produz, pensa e sofre: e, deixando para trás as glórias que ganhámos nas Molucas, ocupam-se da pátria contemporânea, cujo coração bate ao mesmo tempo que o seu, procurando perceber-lhe as aspirações, dirigir-lhe as forças, torná-la mais livre, mais forte, mais culta, mais sábia, mais próspera, e por todas estas nobres qualidades elevá-la entre as nações. Nada do que pertence à pátria lhes é estranho: admiram decerto Afonso Henriques, mas não ficam para todo o sempre petrificados nessa admiração: vão por entre o povo, educando-o e melhorando-o, procurando-lhe mais trabalho e organizando-lhe mais instrução, promovendo sem descanso os dois bens supremos – ciência e justiça.
Põem a pátria acima do interesse, da ambição, da gloríola; e se têm por vezes um fanatismo estreito, a sua mesma paixão diviniza-os. Tudo o que é seu o dão à pátria: sacrificam-lhe vida, trabalho, saúde, força, o melhor de si mesmo. Dão-lhe sobretudo o que as nações necessitam mais,
Memória Personalizada
Não acontece apenas que certas pessoas têm memória e outras não (…), mas, mesmo com memórias iguais, duas pessoas não se lembram das mesmas coisas. Uma terá prestado pouca atenção a um facto do qual a outra guardará um grande remorso, e em contrapartida terá apanhado no ar como sinal simpático e característico uma palavra que a outra terá deixado escapar quase sem pensar. O interesse de não nos termos enganado quando emitimos um prognóstico falso abrevia a duração da lembrança desse prognóstico e permite-nos afirmar em breve que não o emitimos. Enfim, um interesse mais profundo, mais desinteressado, diversifica as memórias das pessoas, de tal modo que o poeta que esqueceu quase tudo dos factos que outros lhe recordam retém deles uma impressão fugidia.
De tudo isso, resulta que, passados vinte anos de ausência, encontramos, em lugar de esperados rancores, perdões involuntários, inconscientes, e, em contrapartida, tantos ódios cuja razão não conseguimos explicar (porque esquecemos também a má impressão que causámos). Até da história das pessoas que conhecemos melhor esquecemos as datas.
Pense por si Próprio
Do que você precisa, acima de tudo, é de se não lembrar do que eu lhe disse; nunca pense por mim, pense sempre por você; fique certo de que mais valem todos os erros se forem cometidos segundo o que pensou e decidiu do que todos os acertos, se eles foram meus, não são seus. Se o criador o tivesse querido juntar muito a mim não teríamos talvez dois corpos distintos ou duas cabeças também distintas. Os meus conselhos devem servir para que você se lhes oponha. É possível que depois da oposição, venha a pensar o mesmo que eu; mas, nessa altura. já o pensamento lhe pertence. São meus discípulos, se alguns tenho, os que estão contra mim; porque esses guardaram no fundo da alma a força que verdadeiramente me anima e que mais desejaria transmitir-lhes: a de se não conformarem.
A Lamentação é Completamente Inútil
Não há dúvida de que é inútil e prejudicial lamentarmo-nos perante o mundo. Resta saber se não é igualmente inútil e prejudicial lamentarmo-nos perante nós próprios. Evidentemente. De facto, ninguém se lamentará perante si próprio, a fim de se incitar à piedade, o que nada significaria, dado que a piedade é, por definição, o voluptuso encontro de dois espíritos. Para quê, então? Não para obter favores, porque o único favor que um espírito pode fazer a si próprio é conceder-se indulgência, e toda a gente percebe quanto é prejudicial que a vontade seja indulgente para com a sua própria e lamentável fraqueza.
Resta a hipótese de o fazermos para extrair verdades do nosso coração amolecido pela ternura. Mas a experiência ensina que as verdades surgem apenas em virtude de uma pacata e severa busca, que surpreende a consciência numa atitude inesperada e a vê, como de um filme que parasse de repente, estupefacta, mas não emocionada.
Basta, portanto.
Casamento e Amor
Um casamento pode sobreviver a um homem infiel e pode sobreviver a uma mulher infiel também. Um casamento são duas pessoas que estão juntas – e, felizmente, as razões por que as pessoas estão juntas não se reduzem ao sentimento. Coisa diferente, porém, é o amor propriamente dito. Um homem pode ser infiel à sua mulher e, no entanto, amá-la eterna e incondicionalmente. Uma mulher infiel simplesmente já não ama o seu marido. Pode gostar dele. Pode ter pena dele. Pode estimar a vida que os dois têm juntos: as rotinas, os objectos, os lugares, os cheiros, as pessoas. Mas pode viver sem eles também – e sabe-o. Porque, sendo tão capaz como o homem de ausentar-se do seu corpo, não será capaz nunca de ausentar-se das suas emoções. E porque, se o fizer, já não encontrará o caminho de regresso.
A Vida Pessoal e a Vida Social
Na vida de cada homem há dois aspectos: a vida pessoal, tanto mais livre quanto mais restritos são os seus interesses, e a vida geral, social, em que o homem obedece inevitávelmente a leis prescritas.
O homem vive constantemente para si próprio, mas serve de instrumento inconsciente aos fins históricos da humanidade. O acto realizado é imparável e, concordando, no tempo, com milhões de actos realizados por outros homens, adquire a sua importância histórica. Tanto mais elevado é o homem na escala social quanto mais ligado se encontra aos homens superiores, quanto mais poder tem sobre os outros, mais evidentes são a predestinação e a fatalidade de cada uma das suas acções.
O Prazer e o Trabalho
Em cada minuto somos esmagados pela ideia e a sensação do tempo. E apenas existem dois meios para escapar a tal pesadelo, para esquecê-lo: o prazer e o trabalho. O prazer gasta-nos. O trabalho fortifica-nos. Escolhamos.
Quanto mais nos servimos de um destes meios, mais o outro nos inspira repugnância.
A Necessidade de Conversar
Nos jornais, em conversas, no escritório, a impetuosidade da linguagem leva por vezes uma pessoa a perder-se, daí a esperança, que salta da fraqueza temporária, de uma repentina e mais forte iluminação mesmo no momento seguinte, ou de uma forte confiança em si próprio, ou mero desleixo, ou uma impressão forte e actual de que uma pessoa quer a todo o custo descarregar no futuro, portanto a opinião de que o verdadeiro entusiasmo no presente justifica toda e qualquer confusão futura, ou o deleite nas frases que se elevam no meio com um ou dois empurrões e que a pouco e pouco abrem completamente a boca mesmo que depois a deixem fechar com demasiada rapidez e tortuosidade, ou a leve possibilidade de um juízo claro e decisivo, ou o esforço para dar mais fluência ao discurso que realmente já acabou, ou o desejo de abandonar à pressa o tema se assim tiver de ser, de rastos, ou o desespero que tenta encontrar uma saída para a sua pesada respiração, ou o anseio por uma luz sem sombra — tudo isto pode levar uma pessoa a perder-se em frases como: «O livro que acabei agora mesmo é o mais belo que jamais li» ou «é tão belo,
Há duas classes de homens: uma diz que o esforço consiste de acções, e a outra, na abstenção de acções.
Não Cansar
Costuma ser cansativo o homem de um só negócio e de uma só conversação. A brevidade é lisonjeira e ainda mais negociante. Ganha por ser cortês quem perde por ser breve. O bom, se breve, é duas vezes bom. E mesmo o mau, se pouco, não é tão ruim. Mais obram as quintessências que as mixórdias. E é verdade conhecida que o homem de arengas raramente é entendido, não tanto no material que expõe quanto no formal do seu discurso. Há homens que servem mais de estorvo que de adorno do universo, alfaias perdidas, de que todos desviam. Que o discreto escuse estorvar, muito menos as grandes personagens, que vivem muito ocupadas, e seria pior desabrir-se com uma delas do que com o restante do mundo. Diz-se bem o que se diz depressa.
A Identidade é o Fundamental
Sempre pensei que a identidade é o fundamental. (…) Sem identidade não se é. E a gente tem que ser, isso é que é importante. Mas a identidade obriga depois à dignidade. Sem identidade não há dignidade, sem dignidade não há identidade, sem estas duas não há liberdade. A liberdade impõe, logo de começo, o respeito pelo próximo. Isto pode explicar um pouco os limites da própria vida. Quer dizer, é preferível morrer a perverter a dignidade.
O Antagonismo Racial
O elemento puramente instintivo não constitui senão uma pequena parte do ódio racial e não é difícil de vencer. O medo do que é estrangeiro, que é a sua principal essência, desaparece com a familiaridade. Se nenhum outro elemento o formasse, toda a perturbação desapareceria logo que pessoas de raças diferentes se habituassem umas às outras. Mas há sempre pretextos para se odiarem os grupos estrangeiros. Os seus hábitos são diferentes dos nossos e portanto (em nossa opinião) piores. Se triunfam, é porque nos roubam as oportunidades; se não triunfam, é porque são miseráveis vagabundos. A actual população do mundo descende dos sobreviventes de longos séculos de guerras e por instinto está à espreita de ocasiões de hostilidade colectiva.
O desejo de ter um inimigo fixa-se no coração desse instinto racista e constrói à sua volta um edifício monstruoso de crueldade e de loucura. Tais conflitos representam hoje uma catástrofe universal e não já somente, como outrora, um desastre para os vencidos: daí as inquietações do nosso tempo. É por isso que é mais importante do que nunca conseguir um certo grau de domínio racional sobre os nossos sentimentos destruidores.
Em geral o ódio racial tem duas origens,
A Consistência do Ser
Diz-se que quem modifica de tempos a tempos as suas ideias não merece qualquer confiança, porque faz supor que as suas últimas afirmações são tão erróneas como as anteriores. E, por outro lado, quem mantém as suas primeiras ideias e não as abandona facilmente, passa por teimoso e iludido. Perante estes dois juízos opostos da crítica, há só uma opção a fazer: permanecer-se aquilo que se é, e seguir-se apenas o próprio juízo.
A Ironia da Escolha
O prazer – um dos mais autênticos – de apreender que alguém está forçado a escolher, que não pode ter duas coisas ao mesmo tempo. É um sinal do carácter trágico da vida, que consiste no facto de um valor não se conciliar com outro. Consequência: renunciaste a muitas coisas para ter uma só – e agrada-te que os outros sintam também o império desta lei.
As pessoas que take for granted qualquer coisa entram em colisão contigo na medida justamente em que pretendem escapar a esse carácter trágico. As pessoas que gozam pagãmente qualquer coisa, idem, na medida também em que negam, por avidez, a incerteza e a contingência. Aspirar a qualquer coisa, pretendê-la, é em si mesmo agressivo na medida em que suprime a ironia da vida.
Odiamos os outros porque nos odiamos a nós próprios.
Tu, no entanto, take for granted o que não se deve take for granted. Aqui vem a propósito a pureza do coração, a humildade, a aceitação do mundo de Deus.
Se Fosse Alguma Coisa, Não Poderia Imaginar
Monotonizar a existência, para que ela não seja monótona. Tornar anódino o quotidiano, para que a mais pequena coisa seja uma distracção. No meio do meu trabalho de todos os dias, baço, igual e inútil, surgem-me visões de fuga, vestígios sonhados de ilhas longínquas, festas em áleas de parques de outras eras, outras paisagens, outros sentimentos, outro eu.
Mas reconheço, entre dois lançamentos, que se tivesse tudo isso, nada disso seria meu.Mais vale, na verdade, o patrão Vasques que os Reis do Sonho; mais vale, na verdade, o escritório da Rua dos Douradores do que as grandes áleas dos parques impossíveis. Tendo o patrão Vasques, posso gozar a visão interior das paisagens que não existem. Mas se tivesse os Reis do Sonho, que me ficaria para sonhar? Se tivesse as paisagens impossíveis, que me restaria de possível ?
(…) Posso imaginar-me tudo, porque não sou nada. Se fosse alguma coisa, não poderia imaginar. O ajudante de guarda-livros pode sonhar-se imperador romano; o Rei de Inglaterra não o pode fazer, porque o Rei de Inglaterra está privado de o ser, em sonhos, outro rei que não o rei que é. A sua realidade não o deixa sentir.
Toda a Ideia Geral é Puramente Intelectual
As ideias gerais só se podem introduzir na espécie com o auxílio das palavras, e o entendimento não as apreende senão por meio das proposições. É uma das razões por que os animais não poderiam formar tais ideias, nem jamais adquirir a perfectibilidade que delas depende. Quando um macaco vai, sem hesitar, de uma noz a outra, julga-se que tenha a ideia geral dessa espécie de fruta e que compare o seu arquétipo a esses dois indivíduos? Não, sem dúvida; mas, a vista de uma dessas nozes lembra à sua memória as sensações que recebeu da outra, e os seus olhos, modificados de certa maneira, anunciam ao seu gosto a modificação que vai receber. Toda a ideia geral é puramente intelectual; por pouco que a imaginação tome parte nela, a ideia torna-se, logo, particular.
Procurai traçar a imagem de uma árvore em geral, e jamais o conseguireis; contra a vossa vontade, é preciso vê-la grande ou pequena, desgalhada ou em copa, clara ou escura; e, se dependesse de vós não ver senão o que se acha em toda a árvore, essa imagem não se pareceria mais com uma árvore. Os seres puramente abstractos vêem-se do mesmo modo, ou não se concebem senão por meio do discurso.