A IlusĂŁo da ConsistĂȘncia da Obra do Escritor
O homem nĂŁo Ă© permanentemente igual a si mesmo. A velha concepção dos carĂĄcteres rectilĂneos e das mentalidades cristalizadas em sistemas imutĂĄveis abriu falĂȘncia. Tudo muda, no espaço e no tempo. Para um organismo vivo, existir – mesmo no ponto de vista somĂĄtico – Ă© transformar-se. Quando começamos cedo e envelhecemos na actividade das letras, nĂŁo hĂĄ um nĂłs apenas um escritor; hĂĄ, ou houve, escritores sucessivos, mĂșltiplos e diversos, representando estados de evolução da mesma mentalidade incessantemente renovada. Ao chegar a altura da vida em que a estabilização se opera, olhamos para trĂĄs, e muitas das nossas prĂłprias obras parecem-nos escritas por um estranho, tĂŁo longe se encontram jĂĄ, nĂŁo apenas dos nossos processos literĂĄrios, mas do nosso espĂrito, das nossas tendĂȘncias, da nossa orientação, dos nossos pontos de vista Ă©ticos e estĂ©ticos.
Nesse exame retrospectivo, por vezes doloroso, se de algumas coisas temos de louvar-nos – obras a que a nossa mocidade comunicou a chama viva do entusiasmo e da paixĂŁo -, de outras somos forçados a reconhecer a pobreza da concepção, os vĂcios da linguagem, as carĂȘncias da tĂ©cnica, e tantas vezes (poenitet me!) as audĂĄcias, as incoerĂȘncias, as injustiças, as demasias, a licença de certas pinturas de costumes e o erro de certas atitudes morais.
Textos sobre Erros de JĂșlio Dantas
2 resultadosO Progresso Aumenta a Vida e a Morte
NĂŁo desconheço que a velhice constitui, em grande parte, um preconceito aritmĂ©tico, e que o nosso maior erro consiste em contar os anos que vivemos. Com efeito, tudo nos leva a supor que a Natureza dotou o homem (nĂŁo falo jĂĄ nas longevidades da BĂblia) de vida mĂ©dia mais longa do que aquela que as estatĂsticas demogrĂĄficas acusam, e que, se morremos antes do termo normal da existĂȘncia, Ă© porque sucumbimos, nĂŁo a «morte natural» (a «morte fisiolĂłgica», de Metchnickoff), mas a «morte violenta», que Ă© a morte por acção destrutiva dos germes patogĂ©nicos. Como quer que seja, porĂ©m, parece-me incontestĂĄvel que o homem envelhece antes do tempo e morre, em geral, quando ainda nĂŁo chegou a meio do caminho da vida.
SerĂĄ o engenho humano capaz de opĂŽr uma barreira Ă marcha inexorĂĄvel da decrepitude? Talvez. O nosso organismo Ă© uma mĂĄquina; gasta-se, como todas as mĂĄquinas; e, por milagre da Natureza, ainda Ă© aquela que, funcionando permanentemente, consegue durar mais tempo. Contentemo-nos com a ideia de que o homem de hoje vive mais do que vivia na Antiguidade clĂĄssica e na Ă©poca medieval, mercĂȘ do progresso das tĂ©cnicas, do conforto moderno da existĂȘncia, da observação dos preceitos que a higiene,