Um Ăšnico Poema
Quando olho para esse livro («Poesia Toda»), vejo que nĂŁo fabriquei ou instruĂ ou afeiçoei objectos — estas palavras nĂŁo supõem o mesmo modo de fazer—, vejo que escrevi apenas um poema, um poema em poemas; durante a vida inteira brandi em todas as direcções o mesmo aparelho, a mesma arma furiosa. Fui um inocente, porque sĂł se consegue isso com inocĂŞncia. E se a inocĂŞncia Ă© uma condição insubstituĂvel de escândalo, uma transparente e mobilizadora familiaridade com a terra, constitui tambĂ©m um revĂ©s: pois há uma altura em que se sabe: as coisas ludibriaram-nos, ludibriámo-nos nas coisas; a inocĂŞncia deveria ter-nos oferecido uma vida estupenda, um tumulto: o ar em torno proporcionado como pura levitação; ver, tocar; os mais simples actos e factos prĂłximos como instantâneo e completo conhecimento. Era assim, foi assim, mas a dor, as vozes demonĂacas, o abismo junto Ă dança, a noite que se vai insinuando a toda a altura e largura da luz, tudo Isso invade a inocĂŞncia — e entĂŁo já nĂŁo sabemos nada, por exemplo: será inocente a nossa inocĂŞncia? A inocĂŞncia Ă© um estado clandestino na ditadura do mundo; tem se der astuta, tem de recorrer a todas as torpezas para lutar e escapar,
Textos sobre Escândalos de Herberto Helder
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