As Máscaras e a Guerra
… A minha casa ficou entre os dois sectores… De um lado avançavam mouros e italianos… Do outro lado avançavam, retrocediam ou aguentavam-se os defensores de Madrid… Pelas paredes tinham entrado as granadas da artilharia… As janelas desfizeram-se em estilhaços… Encontrei restos de chumbo no chĂŁo, entre os meus livros… Mas as minhas máscaras tinham desaparecido… As minhas máscaras trazidas do SiĂŁo, de Bali, de Samatra, do arquipĂ©lago malaio, de Bandung. Douradas, cinzentas, cor de tomate, com sobrancelhas prateadas ou azuis, infernais, ensimesmadas, as minhas máscaras eram a Ăşnica lembrança daquele primeiro Oriente aonde cheguei solitário e que me tinha acolhido com o seu odor de chá, de esterco, de Ăłpio, de suor, de jasmins intensos, de frangipana, de fruta podre pelas ruas… Aquelas máscaras, memĂłria de purĂssimas danças, dos bailes defronte do templo… Gotas de madeira coloridas pelos mitos, restos daquela floral mitologia que traçava no ar sonhos, costumes, demĂłniosi mistĂ©rios incompatĂveis com a minha natureza americana… E entĂŁo… Talvez os militantes tenham assomado Ă s janelas da minha casa com as máscaras postas, talvez tenham assustado os mouros entre dois disparos… Muitas deles ficaram em estilhas e sangrentas, ali mesmo… Outras teriam rolado desde o meu quinto andar, arrancadas por um tiro…
Textos sobre Espanha de Pablo Neruda
3 resultadosNeruda e GarcĂa Lorca em Homenagem a RubĂ©n Dario
Eis o texto do discurso:
Neruda: Senhoras…
Lorca: …e senhores. Existe na lide dos touros uma sorte chamada «toreio dei alimón», em que dois toureiros furtam o corpo ao touro protegidos pela mesma capa.
Neruda: Federico e eu, ligados por um fio eléctrico, vamos emparelhar e responder a esta recepção tão significativa.
Lorca: É costume nestas reuniões que os poetas mostrem a sua palavra viva, prata ou madeira, e saúdem com a sua voz própria os companheiros e amigos.
Neruda: Mas nós vamos colocar entre vós um morto, um comensal viúvo, escuro nas trevas de uma morte maior que as outras mortes, viúvo da vida, da qual foi na sua hora um marido deslumbrante. Vamos esconder-nos sob a sua sombra ardente, vamos repetir-lhe o nome até que a sua grande força salte do esquecimento.
Lorca: Nós, depois de enviarmos o nosso abraço com ternura de pinguim ao delicado poeta Amado Villar, vamos lançar um grande nome sobre a toalha, na certeza de que vão estalar as taças, saltar os garfos, buscando o olhar que todos anseiam, e que um golpe de mar há-de manchar as toalhas. Nós vamos evocar o poeta da América e da Espanha: Rubén…
Somos o Mistério
No fim desta Ă©poca, como se toda a longa viagem tivesse sido inĂştil, volto a ficar sozinho nos territĂłrios recĂ©m-descobertos. Como na crise do nascimento, como no começo alarmante e alarmado do terror metafĂsico donde brota o manancial dos meus primeiros versos, como num novo crepĂşsculo que a minha prĂłpria criação provocou, entro numa nova agonia e na segunda solidĂŁo. Para onde ir? Para onde regressar, conduzir, calar ou palpitar? Olho para todos os pontos da claridade e da obscuridade e nĂŁo encontro senĂŁo o vazio que as minhas prĂłprias mĂŁos elaboraram com persistĂŞncia fatal.
Mas o mais próximo, o mais fundamental, o mais extenso, o mais incalculável, não apareceria, afinal, senão neste momento no meu caminho. Tinha pensado em todos os mundos, mas não no homem. Tinha explorado com crueldade e agonia o coração do homem. Sem pensar nos homens, tinha visto cidades, mas cidades vazias. Tinha visto fábricas de trágico aspecto, mas não vira o sofrimento debaixo dos tectos, sobre as ruas, em todas as estações, nas cidades e no campo.
Ă€s primeiras balas que trespassaram as violas de Espanha, quando, em vez de sons, saĂram delas borbotões de sangue, a minha poesia deteve-se como um fantasma no meio das ruas da angĂşstia humana e começou a subir por ela uma torrente de raĂzes e de sangue.