A IlusĂŁo da ConsistĂȘncia da Obra do Escritor
O homem nĂŁo Ă© permanentemente igual a si mesmo. A velha concepção dos carĂĄcteres rectilĂneos e das mentalidades cristalizadas em sistemas imutĂĄveis abriu falĂȘncia. Tudo muda, no espaço e no tempo. Para um organismo vivo, existir – mesmo no ponto de vista somĂĄtico – Ă© transformar-se. Quando começamos cedo e envelhecemos na actividade das letras, nĂŁo hĂĄ um nĂłs apenas um escritor; hĂĄ, ou houve, escritores sucessivos, mĂșltiplos e diversos, representando estados de evolução da mesma mentalidade incessantemente renovada. Ao chegar a altura da vida em que a estabilização se opera, olhamos para trĂĄs, e muitas das nossas prĂłprias obras parecem-nos escritas por um estranho, tĂŁo longe se encontram jĂĄ, nĂŁo apenas dos nossos processos literĂĄrios, mas do nosso espĂrito, das nossas tendĂȘncias, da nossa orientação, dos nossos pontos de vista Ă©ticos e estĂ©ticos.
Nesse exame retrospectivo, por vezes doloroso, se de algumas coisas temos de louvar-nos – obras a que a nossa mocidade comunicou a chama viva do entusiasmo e da paixĂŁo -, de outras somos forçados a reconhecer a pobreza da concepção, os vĂcios da linguagem, as carĂȘncias da tĂ©cnica, e tantas vezes (poenitet me!) as audĂĄcias, as incoerĂȘncias, as injustiças, as demasias, a licença de certas pinturas de costumes e o erro de certas atitudes morais.
Textos sobre EspĂrito de JĂșlio Dantas
2 resultadosO Talento na Juventude e na Velhice
Nada menos exacto do que supor que o talento constitui privilĂ©gio da mocidade. NĂŁo. Nem da mocidade, nem da velhice. NĂŁo se Ă© talentoso por se ser moço, nem genial por se ser velho. A certidĂŁo de idade nĂŁo confere superioridade de espĂrito a ninguĂ©m. Nunca compreendi a hostilidade tradicional entre velhos e moços (que aliĂĄs enche a histĂłria das literaturas); e nĂŁo percebo a razĂŁo por que os homens se lançam tantas vezes recĂprocamente em rosto, como um agravo, a sua velhice ou a sua juventude.
Ser idoso nĂŁo quer dizer que se seja necessĂĄriamente intolerante e retrĂłgado; e engana-se quem supuser que a mocidade, por si sĂł, constitui garantia de progresso ou de renovação mental. As grandes descobertas que ilustram a histĂłria da ciĂȘncia e contribuiram para o progresso humano sĂŁo, em geral, obra dos velhos sĂĄbios; e a mocidade literĂĄria, negando embora sistemĂĄticamente o passado, Ă© nele que se inspira, atĂ© que o escritor adquire (quando adquire) personalidade prĂłpria.
(…) A mocidade, em geral, nĂŁo cria; utiliza, transformando-o, o legado que recebeu. Juventude e velhice nĂŁo se opĂ”em; completam-se na harmonia universal dos seres e das coisas. A vida nĂŁo Ă© sĂł o entusiasmo dos moços;