Textos sobre Fácil de Michel de Montaigne

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Textos de fácil de Michel de Montaigne. Leia este e outros textos de Michel de Montaigne em Poetris.

A Arte da Retórica Floresce nas Sociedades Decadentes

Um retórico do passado dizia que o seu ofício era fazer que as coisas pequenas parecessem grandes e como tais fossem julgadas. Dir-se-ia um sapateiro que, para calçar pés pequenos, sabe fazer sapatos grandes. Em Esparta ter-lhe-iam dado a experimentar o azorrague por professar uma arte trapaceira e mentirosa. E creio que Arquidamo, que foi seu rei, não terá ouvido sem espanto a resposta de Tucídides, ao qual perguntara quem era mais forte na luta, se Péricles, se ele: «Isso será difícil de verificar, pois quando o deito por terra, ele convence os espectadores que não caiu, e ganha». Os que, com cosméticos, caracterizam e pintam as mulheres fazem menos mal, pois é coisa de pouca perda não as ver ao natural, ao passo que estoutros fazem tenção de enganar, não já os olhos, mas o nosso juízo, e de abastardar e corromper a essência das coisas. Os Estados que longamente se mantiveram em boa ordem e bem governados, como o cretense e o lacedemónio, não tinham em grande conta os oradores.
Aríston definiu sabiamente a retórica como a ciência de persuadir o povo; Sócrates e Platão, como a arte de enganar e lisonjear; e aqueles que isto negam na sua definição genérica,

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A Eterna Instabilidade

O pior que vejo no nosso estado é a instabilidade, e que as nossas leis, não mais que as nossas roupas, não possam assumir uma forma fixa. É muito fácil acusar de imperfeição um governo, pois todas as coisas mortais estão repletas dela; é muito fácil gerar num povo o menosprezo pelas suas observâncias antigas: jamais homem algum empreendeu isso sem obter sucesso; mas restabelecer um estado melhor no lugar daquele que foi posto em ruína, isso muitos cansaram de esperar, entre os que haviam tentado.

Virtude Representa Muito Mais que Bondade

Parece-me que a virtude é coisa diferente e mais nobre do que as inclinações para a bondade que nascem em nós. As almas bem ajustadas por si mesmas e bem nascidas seguem o mesmo andamento e apresentam nas suas ações a mesma aparência que as virtuosas. Porém a virtude significa não sei quê de maior e mais activo do que, por uma índole favorecida, deixar-se conduzir docemente e tranquilamente na esteira da razão. Aquele que com uma doçura e complacência naturais menosprezasse as ofensas recebidas faria coisa mui bela e digna de louvor; mas aquele que, espicaçado e ultrajado até o âmago por uma ofensa, se armasse com as armas da razão contra o furio­so apetite de vingança e após um grande conflito finalmen­te o dominasse, sem a menor dúvida seria muito mais. Aquele agiria bem, e este virtuosamente: uma acção poder-­se-ia dizer bondade; a outra, virtude, pois parece que o nome de virtude pressupõe dificuldade e oposição, e que ela não pode se exercer sem combate. Talvez seja por isso que chamamos Deus de bom, forte e liberal, e justo; mas não O chamamos de virtuoso: Os Seus actos são todos natu­rais e sem esforço.
Metelo, o único de todos os senadores romanos a se ter proposto,

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Testemunhas Aparentes

Não me preocupa tanto qual eu seja para outrem como me preocupa qual eu seja em mim mesmo. Quero ser rico por mim, não por empréstimo. Os estranhos vêem apenas os acontecimentos e as aparências externas; cada qual pode ter um ar alegre exteriormente e por dentro estar cheio de febre e receio. Eles não vêem o meu coração; vêem apenas o meu comportamento. Tem-se razão em depreciar a hipocrisia que existe na guerra; pois o que é mais fácil para um homem oportunista do que esquivar-se dos perigos e fazer-se de bravo, tendo o ânimo repleto de frouxidão? Há tantos meios de evitar as ocasiões de arriscar-se pessoalmente que teremos enganado o mundo mil vezes antes de encetarmos um passo perigoso; e mesmo então, vendo-nos entravados, nesse momento bem sabemos encobrir o nosso jogo com um ar alegre e uma palavra serena, embora a alma nos trema interiormente.
E se alguém pudesse usar o anel de Platão, que tornava invisível quem o levasse no dedo e o virasse para a palma da mão, muitas pessoas amiúde se esconderiam quando mais é preciso apresentar-se e se arrependeriam de estar colocadas num lugar tão honroso, no qual a necessidade as torna seguras: Quem pode alegrar-se com falsas honrarias e temer a calúnia,

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Somos Traídos pela Nossa Própria Percepção e Experiência

Vemos muito bem que as coisas não se alojam em nós com a sua forma e essência, e não penetram em nós pela sua própria força e autoridade; porque, se assim fosse, recebê-las-íamos do mesmo modo: o vinho seria o mesmo na boca do doente e na boca do homem são. Quem tem os dedos gretados, ou que os tem entorpecidos, encontraria na lança ou na espada que maneja uma rigidez semelhante à que o outro encontra. Os objetos externos rendem-se então à nossa mercê; alojam-se em nós como nos apraz. Ora, se da nossa parte recebêssemos alguma coisa sem alteração, se as faculdades humanas fossem bastante capazes e firmes para apreender a verdade pelos nossos próprios meios, esses meios sendo comuns a todos os homens, essa verdade se transmitiria de mão em mão de um para outro. E pelo menos se encontraria uma coisa no mundo, entre tantas que há, que seria acreditada pelos homens por um consenso universal. Mas o facto de não se ver proposição alguma que não seja debatida e controversa entre nós, ou que não o possa ser, mostra bem que o nosso julgamento natural não apreende muito claramente aquilo que apreende; pois o meu julgamento não pode fazer com que isso seja aceite pelo julgamento do meu companheiro,

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Poupar a Vontade

Em comparação com o comum dos homens, poucas coisas me atingem, ou, dizendo melhor, me prendem; pois é razoável que elas atinjam, contanto que não nos possuam. Tenho grande zelo em aumentar pelo estudo e pela reflexão esse privilégio de insensibilidade, que em mim é naturalmente muito saliente. Desposo – e consequentemente me apaixono por – poucas coisas. A minha visão é clara, mas detenho-a em poucos objectos; a sensibilidade, delicada e maleável. Mas a apreensão e aplicação, tenho-a dura e surda: dificilmente me envolvo. Tanto quanto posso, emprego-me todo em mim; porém mesmo nesse objecto eu refrearia e suspenderia de bom grado a minha afeição para que ela não se entregasse por inteiro, pois é um objecto que possuo por mercê de outrém e sobre o qual a fortuna tem mais direito do que eu. De maneira que até a saúde, que tanto estimo, ser-me-ia preciso não a desejar e não me dedicar a ela tão desenfreadamente a ponto de achar insuportáveis as doenças. Devemos moderar-nos entre o ódio e o amor à voluptuosidade; e Platão receita um caminho mediano de vida entre ambos.
Mas às paixões que me distraem de mim e me prendem alhures, a essas certamente me oponho com todas as minhas forças.

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A Estranheza dá Crédito

O verdadeiro campo e assunto da impostura são as coisas desconhecidas. Isso porque em primeiro lugar a própria estranheza dá crédito; e depois, não estando sujeitas às nossas reflexões habituais, elas tiram-nos os meios de as combater. Por causa disso, diz Platão, é muito mais fácil satisfazer ao falar da natureza dos deuses do que da natureza dos homens, porque a ignorância dos ouvintes abre um belo e amplo caminho e toda a liberdade para o manejo de uma matéria secreta.
Advém daí que nada é aceite tão firmemente como aquilo que menos se sabe, nem há pessoas tão seguras como as que nos contam fábulas, como alquimistas, prognotiscadores, astrólogos, quiromantes, médicos, toda a gente dessa espécie (Horácio). A eles eu acrescentaria de bom grado, se ousasse, um bando de pessoas, intérpretes e controladores habituais dos desígnios de Deus, que têm a pretensão de descobrir as causas de cada acontecimento e de ver nos segredos da vontade divina os incompreensíveis motivos das suas obras; e, embora a variedade e a disparidade contínua dos factos os lance de um canto para o outro e do ocidente para o oriente, não deixam entretanto de persistir no que é seu e com o mesmo lápis pintar o preto e o branco.

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Lucidez sem Ignorância nem Sobranceria

Possivelmente não é sem razão que atribuímos à ingenuidade e ignorância a facilidade de crer e de se deixar persuadir: pois parece-me haver aprendido outrora que a crença era como uma impressão que se fazia na nossa alma; e, na medida em que esta se encontrava mais mole e com menor resistência, era mais fácil imprimir-lhe algo. Assim como, necessariamente, os pesos que nele colocamos fazem pender o prato da balança, assim a evidência arrasta a mente (Cícero). Quanto mais vazia e sem contrapeso está a alma, mais facilmente ela cede sob a carga da primeira persuasão. Eis porque as crianças, o vulgo, (…) e os doentes estão mais sujeitos a ser conduzidos pelas orelhas (ou seja, pelo que ouvem). Mas também, por outro lado, é uma tola presunção ir desdenhando e condenando como falso o que não nos parece verossímil; esse é um vício habitual nos que pensam ter algum discernimento além do comum. Outrora eu agia assim, e, se ouvia falar de espíritos que retornam, ou do prognóstico das coisas futuras, de encantamentos, de feitiçarias, ou contarem alguma outra história que eu não conseguisse compreender, vinha-me compaixão pelo pobre povo logrado por essas loucuras. Mas actualmente acho que eu próprio era no mínimo igualmente digno de pena;

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A Incomodidade da Grandeza

Já que não a podemos alcançar, vinguemo-nos falando mal dela. No entanto, não é inteiramente falar mal de alguma coisa encontrar-lhe defeitos; estes encontram-se em todas as coisas, por belas e desejáveis que sejam. Em geral, ela possui esta vantagem evidente de se rebaixar quando lhe apraz, e de mais ou menos ter a opção entre uma situação e a outra; pois não se cai de todas as alturas; são mais numerosas aquelas das quais se pode descer sem cair. Bem me parece que a valorizamos demais, e valorizamos demais também a decisão dos que vimos ou ouvimos dizer que a menosprezaram ou que renunciaram a ela por sua própria intenção. A sua essência não é tão evidentemente cómoda que não a possamos rejeitar sem milagre. Acho muito difícil o esforço de suportar os males; mas em contentar-se com uma medida mediana de fortuna e em fugir da grandeza acho pouca dificuldade. É uma virtude, parece-me, a que eu, que não passo de um patinho, chegaria sem muito esforço. Que devem fazer aqueles que ainda levassem em consideração a glória que acompanha tal rejeição, na qual pode caber mais ambição do que no próprio desejo e gozo da grandeza, porquanto a ambição nunca se conduz mais à vontade do que por um caminho desgarrado e inusitado?

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