O Cúmulo da Felicidade
Não avalies os bens e os males segundo o critério do vulgo: deves verificar, não donde eles provêm, mas sim para que fim tendem. Tudo o que possa contribuir para a obtenção de uma vida feliz será um bem de pleno direito, já que não pode degradar-se até tornar-se um mal.
Toda a gente, contudo, ambiciona ter uma vida feliz; porque sucede então que quase todos falham o alvo? Pelo facto de se tornar por felicidade o que não passa de um meio para atingir; por isso, quanto mais a buscam, mais dela se afastam. O cúmulo da felicidade consiste numa perfeita segurança, numa inabalável confiança no seu valor; ora o que as pessoas fazem é arranjar motivos de preocupação, é percorrer a traiçoeira estrada da vida ajoujadas de pesados fardos. Deste modo vão-se sempre distanciando cada vez mais da meta que procuram alcançar, e quanto mais se esforçam por atingi-la mais se embaraçam e retrocedem. Sucede-lhes como a alguém que corra num labirinto: a própria velocidade faz perder o norte.
Textos sobre Fatos de Séneca
35 resultadosContra a Ansiedade
Sempre que te aconteça alguma coisa contrária à tua expectativa diz a ti mesmo que os deuses tomaram uma decisão superior! Com semelhante disposição de espírito, nada terás a temer. Esta disposição de espírito consegue-se pensando na instabilidade da vida humana antes de a experimentarmos em nós, olhando para os filhos, a mulher, os bens como algo que não possuiremos para sempre, e evitando imaginarmo-nos mais infelizes um dia que deixemos de os possuir. Será a ruína do espírito andarmos ansiosos pelo futuro, desgraçados antes da desgraça, sempre na angústia de não saber se tudo o que nos dá satisfação nos acompanhará até ao último dia; assim, nunca conseguiremos repouso e, na expectativa do que há-de vir, deixaremos de aproveitar o presente. Situam-se, de facto, ao mesmo nível a dor por algo perdido e o receio de o perder. Isto não quer dizer que te esteja incitando à apatia! Pelo contrário, procura evitar as situações perigosas; procura prever tudo quanto seja previsível; procura conjecturar tudo o que pode ser-te nocivo muito antes de que te suceda, para assim o evitares. Para tanto, ser-te-á da maior utilidade a autoconfiança, a firmeza de ânimo apta a tudo enfrentar. Quem tem ânimo para suportar a fortuna é capaz de precaver-se contra ela;
A Felicidade não Tem Medida
Não duvidas de que a vida feliz seja o supremo bem; logo, se a vida possui o supremo bem, então é sumamente feliz. E tal como o supremo bem não pode receber qualquer acréscimo (o que haveria acima do supremo?!), também a vida feliz o não pode, pois a felicidade não existe sem o supremo bem. Repara: se disseres que alguém é “mais” feliz, tornarás possível que se diga também “muito mais”; e assim irás fazendo inúmeras gradações no supremo bem, quando por “sumo bem” eu entendo tudo o que não tem valor algum acima de si. Se alguém é menos feliz do que um outro, segue-se que preferirá a vida desse outro (por ser mais feliz) à sua própria; ora, um homem feliz não considera nada preferível à sua vida.
Qualquer destas duas situações é inaceitável: existir algo que o homem feliz preferiria ter em lugar daquilo que tem, ou não preferir ter algo que seja melhor do que aquilo que tem. De facto, quanto mais um homem é avisado, tanto mais se procurará chegar ao que há de melhor, e ambicionará alcançá-lo seja de que modo for. Ora, como pode ser feliz alguém que pode, que deve mesmo,
Ira Induzida
O melhor remédio para a ira é fazer uma pausa. Pede-a não para perdoares, mas para reflectires: os primeiros impulsos da ira são os mais graves; ela desaparece se tiver que esperar. Não tentes afastá-la por inteiro: conseguirás vencê-la por completo se a arrancares por partes.
Entre os actos que nos ofendem, uns são-nos narrados, outros são vistos ou ouvidos por nós mesmos. Não devemos acreditar prontamente naqueles que nos são narrados: muitos homens mentem para enganar, outros tantos mentem porque foram enganados; outros ganham favores com incriminações e inventam uma ofensa para se mostrarem indignados; outro é um homem maldoso e quer destruir amizades sólidas; outro não merece confiança e gosta de observar ao longe e em segurança as desavenças que cria.
Quando tens que emitir um juízo sobre um qualquer assunto, não poderás admitir os factos sem que deles haja uma testemunha, e a testemunha não tem validade se não houver um juramento; darás a palavra às duas partes, farás um intervalo, não as ouvirás uma vez apenas (a verdade manifesta-se àquele que mais vezes a toma em mãos): e condenas prontamente um amigo? Ficas irado antes de o ouvir, antes de interrogares, antes de permitires-lhe conhecer o acusador ou o crime?
Os Homens são como as Crianças
A atitude que nós temos para com as crianças é a atitude que o sábio tem para com todos os homens, que são pueris mesmo após a idade madura e os cabelos brancos. O que terão progredido estes homens, cujos males da sua alma apenas se tornaram em maiores males, que em forma e grandeza corporais tanto diferem das crianças, mas que em tudo o resto não são menos ligeiros e inconstantes, correndo atrás dos desejos sem reflectirem, agitados e que quando se aquietam é por medo, não por engenho seu?
Diria que aquilo que distingue as crianças dos homens é que a avidez das crianças é por dados, nozes e pequenas moedas de ouro, enquanto que a dos homens é pelo ouro e pela prata das cidades; uns imaginam magistrados entre eles mesmos e imitam a toga, o facho e o tribunal, os outros jogam os mesmos jogos, mas a sério, no Campo de Marte, no Fórum e na Cúria; uns, amontoando areia à beira-mar, constroem simulacros de casas, os outros, como quem executa uma grande obra, trabalhando a pedra na construção de paredes e tectos, fazem aquilo que os devia abrigar um verdadeiro perigo. Por isso, entre crianças e homens-feitos o erro é igual,
A Justiça em Estado Puro
Quero que me ensinem também o valor sagrado da justiça — da justiça que apenas tem em vista o bem dos outros, e para si mesma nada reclama senão o direito de ser posta em prática. A justiça nada tem a ver com a ambição ou a cobiça da fama, apenas pretende merecer aos seus próprios olhos. Acima de tudo, cada um de nós deve convencer-se de que temos de ser justos sem buscar recompensa. Mais ainda: cada um de nós deve convencer-se de que por esta inestimável virtude devemos estar prontos a arriscar a vida, abstendo-nos o mais possível de quaisquer considerações de comodidade pessoal. Não há que pensar qual virá a ser o prémio de um acto justo; o maior prémio está no facto de ele ser praticado. Mete também na tua ideia aquilo que há pouco te dizia: não interessa para nada saber quantas pessoas estão a par do teu espírito de justiça. Fazer publicidade da nossa virtude significa que nos preocupamos com a fama, e não com a virtude em si.
A Gratidão não é Coisa de Pouca Monta
Ninguém poderá ser grato se não desprezar tudo aquilo que excita a atenção do vulgo: se quiseres, de facto, retribuir um favor terás que estar disposto a enfrentar o exílio, a derramar o teu sangue, a resignar-te à indigência, a consentir mesmo que a tua inocência seja posta em causa e se sujeite a infames boatos. Um homem grato não é coisa de pouca monta. Habitualmente, a nada se dá mais valor do que a um benefício enquanto o solicitamos, mas a nada se dá menos valor depois de obtê-lo. Sabes o que ocasiona em nós o esquecimento dos favores recebidos? É o desejo daqueles que procuramos obter! Não pensamos no que já conseguimos, mas só no que ainda procuramos alcançar. Somos desviados do caminho recto pelas riquezas, as honras, o poder e outras coisas mais que a opinião comum considera valiosas mas que em si mesmas nada valem.
A Sabedoria na Riqueza
Haverá dúvidas de que um homem de sabedoria tem mais condições para desenvolver as suas qualidades no meio das riquezas do que na pobreza? Na pobreza, só há um género de virtude: não se curvar nem se abater; na riqueza, a temperança, a liberalidade, a frugalidade, a ordem e a magnificência têm um campo aberto. O sábio não se desprezará a si próprio, mesmo que seja de baixa estatura; desejará porém ser elegante. Com um corpo frágil ou com um olho a menos, ele sentir-se-á bem, mas preferirá, contudo, que o seu corpo seja robusto, apesar de saber que, em si, há algo mais forte. Ele tolerará uma saúde má, procurando ter uma saúde boa. De facto, algumas coisas, ainda que sejam pequenas em relação ao conjunto, quando são aproveitadas sem que se arruíne o bem principal, contribuem para a perpétua alegria, que nasce da virtude: as riquezas causam ao sábio a mesma impressão e o mesmo gáudio que causa o vento favorável ao navegador, ou que um belo dia causa num lugar enregelado pelo frio do Inverno. Quem, entre os sábios (falo dos nossos, aqueles para os quais a virtude é um bem) nega que mesmo estas coisas, que consideramos indiferentes,
Prazer não Significa Felicidade
Aqueles que disseram ser o prazer o sumo bem, viram bem a posição vergonhosa em que o colocaram. Negam eles também que a virtude possa ser separada do prazer e dizem que ninguém pode viver honestamente sem viver agradavelmente, tal como ninguém pode viver agradavelmente sem viver honestamente. Não vejo como elementos tão diversos podem ser postos lado a lado. Porque não se poderá, pergunto-vos, separar a virtude do prazer? Visto que o princípio de todo o bem é a virtude, será ela também a raiz de tudo o que vós amais e desejais? Todavia, se a virtude e o prazer não fossem coisas distintas, não se compreenderia por que razão há umas coisas que são agradáveis, mas desonestas, e outras que são honestíssimas, mas penosas e causadoras de sofrimento.
Acrescenta ainda que, enquanto o prazer se coaduna com uma vida vergonhosa, a virtude não admite uma má vida, e quantos há que são infelizes não por não terem prazer, mas precisamente por causa do prazer, o que não aconteceria se conjugassem o prazer com a virtude, a qual existe muitas vezes sem ele, sem nunca precisar dele para existir.
Porquê confundir coisas tão diversas ou mesmo opostas?
A Adversidade é Essencial
Porquê espantar-nos que possa ser vantajoso, por vezes mesmo desejável, expor-nos ao fogo, às feridas, à morte, à prisão? Para o homem esbanjador a austeridade é um castigo, para o preguiçoso o trabalho equivale a um suplício; ao efeminado toda a labuta causa dó, para o indolente qualquer esforço é uma tortura: pela mesma ordem de ideias toda a actividade de que nos sentimos incapazes se nos afigura dura e intolerável, esquecendo-nos de que para muitos é uma autêntica tortura passar sem vinho ou acordar de madrugada! Qualquer destas situações não é difícil por natureza, os homens é que são moles e efeminados!
Para formar juízos de valor sobre as grandes questões há que ter uma grande alma, pois de outro modo atribuiremos às coisas um defeito que é apenas nosso, tal como objectos perfeitamente direitos nos parecem tortos e partidos ao meio quando os vemos metidos dentro de água. O que interessa não é o que vemos, mas o modo como o vemos; e no geral o espírito humano mostra-se cego para a verdade!
Indica-me um jovem ainda incorrupto e de espírito alerta, e ele não hesitará em julgar mais afortunado o homem capaz de suportar todo o peso da adversidade sem dobrar os ombros,
A Justa Medida, sem Grandezas nem Excessos
Uma grande alma distingue-se por desprezar a grandeza, e por preferir a justa medida aos excessos, já que a primeira se limita ao que é útil e indispensável à vida, enquanto os últimos se tornam nocivos pelo próprio facto de serem supérfluos. É assim que a fertilidade excessiva prejudica as searas, os colmos partem-se com o peso e a demasiada abundância de grão não chega a amadurecer. O mesmo ocorre com as almas corroídas por um bem estar desmesurado, do qual usam em prejuízo não só dos outros como de si próprias. Nenhum inimigo inflingiu a alguém golpes tão duros como aqueles que certas pessoas sofrem ocasionados pelos próprios prazeres. Só uma coisa pode desculpar a imoderação, a louca voluptuosidade de tal gente: é que sofrem a consequência dos seus actos.
Não é sem razão, aliás, que uma tal loucura se apodera delas: o desejo de ultrapassar os limites naturais descamba necessariamente na desmesura. A necessidade natural tem o seu termo próprio, enquanto as necessidades artificiais derivadas do prazer nunca conhecem limitações. A utilidade serve de medida ao que é indispensável; mas por que padrão aferir o que é supérfluo? Por conseguinte, muitos afundam-se em prazeres sem os quais,
Não Peças o que na Realidade não Pretendes Obter
“Não te ponhas a pedir o que não pretendes obter!” É que sucede muitas vezes nós pedirmos com empenho coisas que recusaríamos se alguém no-las oferecesse. Por ligeireza? Por excesso de gentileza? Seja qual for a razão, apliquemos-lhe um castigo: acedamos largamente ao pedido. Muitas coisas nós desejamos parecer querer quando de facto as não queremos. Numa leitura pública, um autor levou uma vez uma obra histórica enorme, escrita em letra miudinha, num volume densíssimo, e, depois de ler a maior parte, disse: “Se querem, fico por aqui.” Ora os auditores, embora o seu único desejo fosse que o homem se calasse imediatamente, gritaram em coro: “Continua a leitura, continua!” Muitas vezes, também, queremos uma coisa mas escolhemos outra, e nem sequer aos deuses confessamos a verdade; o que vale é que os deuses ou não nos atendem ou têm pena de nós!
Não há Sabedoria sem Esforço
Certos vícios, temos o hábito de atribuí-los aos condicionalismos do lugar e do tempo, mas o certo é que, para onde quer que vamos, esses vícios nos acompanham. (…) Para quê iludirmo-nos? O nosso mal não vem do exterior, está dentro de nós, enraizado nas nossas vísceras, e, como ignoramos o mal de que sofremos, só com dificuldade recuperamos a saúde. E mesmo que já tenhamos iniciado o tratamento, quando nos será possível levar de vencida a enorme virulência de tão numerosas enfermidades? Nem sequer solicitamos a presença do médico, quando afinal é mais fácil tratar uma doença ainda no início. Almas ainda frescas e inexperientes obedecem sem tardar a quem lhes indique o justo caminho. Só é difícil reconduzir à via da natureza quem deliberadamente dela se apartou. Parece que temos vergonha de aprender a sabedoria! Pelos deuses, se acharmos que é vergonhoso buscar um mestre, então podemos perder a esperança de obter as vantagens da sabedoria por obra do acaso. A sabedoria só se obtém pelo esforço.
Para dizer a verdade, nem sequer é necessário grande esforço se, como disse, começarmos a formar e a corrigir a nossa alma antes que as más tendências cristalizem. Mas mesmo já empedernidas,
O Ingrato e o seu Oposto
O ingrato tortura-se e aflige-se a si mesmo; odeia os benefícios que recebe por ter de retribuí-los, procura reduzir a sua importância e, pelo contrário, agigantar enormemente as ofensas que lhe foram causadas. Há alguém mais miserável do que um homem que se esquece dos benefícios para só se lembrar das ofensas? A sabedoria, pelo contrário, valoriza todos os benefícios, fixa-se na sua consideração, compraz-se em recordá-los continuamente. Os maus só têm um momento de prazer, e mesmo esse breve: o instante em que recebem o benefício; o sábio, pelo seu lado, extrai do benefício recebido uma satisfação grande e perene. O que lhe dá prazer não é o momento de receber, mas sim o facto de ter recebido o benefício; isto é para ele algo de imortal, de permanente. O sábio não tem senão desprezo por aquilo que o lesou; tudo isso ele esquece, não por incúria, mas voluntariamente. Não interpreta tudo pelo pior, não procura descobrir o culpado do que lhe sucedeu, preferindo atribuir os erros dos homens à fortuna.
Não atribui más intenções às palavras ou aos olhares dos outros, antes procura dar do que lhe fazem uma interpretação benevolente. Prefere lembrar-se do bem que lhe fizeram,
Exercitar a Vontade Naquilo que Podemos Ter de Melhor
Ponho-me a pensar na quantidade dos que exercitam o físico, e na escassez dos que ginasticam a inteligência; na afluência que têm os gratuitos espectáculos desportivos, e na ausência de público durante as manifestações culturais; enfim, na debilidade mental desses atletas de quem admiramos as espáduas musculadas. E penso sobreutdo nisto: se o corpo pode, à força de treino, atingir um grau de resistência tal que permite ao atleta suportar a um tempo os murros e pontapés de vários adversários, que o torna apto a aguentar um dia inteiro sob um sol abrasador, numa arena escaldante, todo coberto de sangue – não será mais fácil ainda dar à alma uma tal robustez que a torne capaz de resistir sem ceder aos golpes da fortuna, capaz de erguer-se de novo ainda que derrubada e espezinhada?! De facto, enquanto o corpo, para se tornar vigoroso, depende de muitos factores materiais, a alma encontra em si mesma tudo quanto necessita para se robustecer, alimentar, exercitar. Os atletas precisam de grande quantidade de comida e bebida, de muitos unguentos, sobretudo de um treino intensivo: tu, para atingires a virtude, não precisarás de dispender um tostão em equipamento! Aquilo que pode fazer de ti um homem de bem existe dentro de ti.