A Duração da Vida em Perspectiva
A nossa religião não teve fundamento humano mais seguro do que o desprezo pela vida. Não somente o exercício da razão nos convida a isso, pois por que temeríamos perder uma coisa que perdida não pode ser lamentada; e, já que somos ameaçados por tantas formas de morte, não haverá maior mal em temê-las todas do que em suportar uma?
Que importa quando ela será, pois que é inevitável? A alguém que dizia a Sócrates: «Os trinta tiranos condenaram-te à morte», respondeu ele: «E a natureza a eles». Que tolice nos atormentarmos sobre o momento da passagem para a isenção de todo o tormento!
Assim como o nosso nascimento nos trouxe o nascimento de todas as coisas, assim a nossa morte trará a morte de todas as coisas. Por isso, chorar porque daqui a cem anos não estaremos a viver é loucura igual a chorar porque há cem anos atrás não vivíamos. A morte é origem de uma outra vida. Assim choramos nós; assim nos custou entrar nesta aqui; assim nos despojamos do nosso antigo véu quando entramos naquela.
Não pode ser penoso algo que o é apenas uma vez. Será certo temer por tão longo tempo uma coisa de tão breve duração?
Textos sobre Horas
224 resultadosA Vantagem dum Longo Treino
A vantagem de um longo treino e duma escrupulosa concentração no futuro: na hora das realizações estabelece-se um estado sonambúlico intermediário entre o fazer e o deixar fazer, entre o agir e o ser objecto de acção. Isso requer tanto menos atenção quanto é certo que, a maior parte das vezes, a realidade exige de nós muito menos do que imaginamos e, assim, encontramo-nos um pouco na situação do homem que, armado até aos dentes, ao travar uma luta, não tem necessidade, para vencer, senão de manejar ligeiramente uma única peça do seu arsenal. Com efeito, quem liga importância a si mesmo exercita-se no que é mais difícil para se tornar cada vez mais destro no que é fácil e poder ter a satisfação de triunfar, usando dos meios mais delicados e discretos. Ele repele, aliás, os expedientes grosseiros e selvagens, não se resolvendo a usá-los senão em casos de força maior.
Queres Amar, Ama-te
As pessoas devem relacionar-se porque se amam e não porque se vão amar, devem trabalhar porque gostam daquilo que fazem e não porque um dia podem começar a gostar. Então, perguntas tu, o melhor é sermos todos descomprometidos com tudo? Ao que eu te respondo: claro. O descompromisso é a liberdade eterna, é a possibilidade que tu te dás de alterar o curso da tua vida a qualquer momento, sem recurso a qualquer emoção negativa. O único compromisso que deves ter é contigo. O resto passa-te ao lado, não controlas, não tens como gerir, sequer. Aliás, qualquer relacionamento, seja com uma pessoa ou com uma profissão, é mais verdadeiro quando não existe esse compromisso, é mais intenso, mais real, mais «Agora», mais tudo. A possibilidade de a pessoa se dar a liberdade de apenas viver o que sente é todo o caminho andado para a felicidade. Quem é mais feliz, a pessoa que não ama e ainda se encontra num casamento ou aquela que deixou de amar e saiu do casamento? Quem é mais feliz, a pessoa que arriscou fazer o que a apaixona ou aquela que todos os dias passa oito horas enfiada seja onde for e a fazer o que não gosta?
Viver o Hoje
Nunca a vida foi tão actual como hoje: por um triz é o futuro. Tempo para mim significa a desagregação da matéria. O apodrecimento do que é orgânico como se o tempo tivesse como um verme dentro de um fruto e fosse roubando a este fruto toda a sua polpa. O tempo não existe. O que chamamos de tempo é o movimento de evolução das coisas, mas o tempo em si não existe. Ou existe imutável e nele nos transladamos. O tempo passa depressa demais e a vida é tão curta. Então — para que eu não seja engolido pela voracidade das horas e pelas novidades que fazem o tempo passar depressa — eu cultivo um certo tédio. Degusto assim cada detestável minuto. E cultivo também o vazio silêncio da eternidade da espécie. Quero viver muitos minutos num só minuto. Quero me multiplicar para poder abranger até áreas desérticas que dão a idéia de imobilidade eterna. Na eternidade não existe o tempo. Noite e dia são contrários porque são o tempo e o tempo não se divide. De agora em diante o tempo vai ser sempre atual. Hoje é hoje. Espanto-me ao mesmo tempo desconfiado por tanto me ser dado.
Nada Pode Haver de mais Belo
Amigo Bernardo, dos desertos do Roncão d’el-Rei, na mais bela poética noite de luar que ver se possa, te escreve este teu amigo. Nada pode haver de mais belo; os rouxinóis cantam à desgarrada, o ar rescende dos milhares de loendros (laurier-rose) que cobrem as encostas alcantiladas do Guadiana. Que maravilha, que encanto, que tristeza (tu, com certeza, aqui choravas)! Neste momento, houve-se o sinistro roncar da coruja e o longínquo uivar dos lobos, misturado com o forte ladrar dos rafeiros e os nossos cavalos relincham inquietos nas quadras… É à luz dum prosaico castiçal (uma garrafa com uma vela) que te escrevo estas sentidas regras, que espraio sobre este branco papel as ondas da minha melancolia. E como não estar melancólico se acabamos de fazer dezasseis léguas a cavalo em oito horas e não descansámos e não dormimos a noite passada senão uma mísera hora e vemos apenas diante de nós umas velhas esteiras, as nossas mantas, e os aparelhos dos nossos cavalos como travesseiros, para passarmos umas noites.
Ninguém Morre Antes da Hora
Ninguém morre antes da hora. O que deixais de tempo não era mais vosso do que o tempo que se passou antes do vosso nascimento; e tampouco vos importa, Com efeito, considerai como a eternidade do tempo passado nada é para nós (Lucrécio). Termine a vossa vida quando terminar, ela aí está inteira. A utilidade do viver não está no espaço de tempo, está no uso. Uma pessoa viveu longo tempo e no entanto pouco viveu; atentai para isso enquanto estais aqui. Terdes vivido o bastante depende da vossa vontade, não do número de anos. Pensáveis nunca chegar aonde estáveis indo incessantemente? E no entanto não há caminho que não tenha o seu fim. E, se a companhia vos pode consolar, não vai o mundo no mesmo passo em que ides? Todas as coisas seguir-vos-ão na morte (Lucrécio). Tudo não dança a vossa dança? Há coisa que não envelheça convosco? Mil homens, mil animais e mil outras criaturas morrem nesse mesmo instante em que morreis: Pois nunca a noite sucedeu ao dia, nem a aurora à noite, sem ouvir, mesclados aos vagidos da criança, os gritos de dor que acompanham a morte e os negros funerais (Lucrécio).
Só o Presente é Verdadeiro e Real
Um ponto importante da sabedoria de vida consiste na proporção correcta com a qual dedicamos a nossa atenção em parte ao presente, em parte ao futuro, para que um não estrague o outro. Muitos vivem em demasia no presente: são os levianos; outros vivem em demasia no futuro: são os medrosos e os preocupados. É raro alguém manter com exactidão a justa medida. Aqueles que, por intermédio de esforços e esperanças, vivem apenas no futuro e olham sempre para a frente, indo impacientes ao encontro das coisas que hão-de vir, como se estas fossem portadoras da felicidade verdadeira, deixando entrementes de observar e desfrutar o presente, são, apesar dos seus ares petualentes, comparáveis àqueles asnos da Itália, cujos passos são apressados por um feixe de feno que, preso por um bastão, pende diante da sua cabeça. Desse modo, os asnos vêem sempre o feixe de feno bem próximo, diante de si, e esperam sempre alcançá-lo.
Tais indivíduos enganam-se a si mesmos em relação a toda a sua existência, na medida em que vivem ad interim [interinamente], até morrer. Portanto, em vez de estarmos sempre e exclusivamente ocupados com planos e cuidados para o futuro, ou de nos entregarmos à nostalgia do passado,
O Assombro da Incoerência do Nosso Ser
Sou um mero espectador da vida, que não tenta explicá-la. Não afirmo nem nego. Há muito que fujo de julgar os homens, e, a cada hora que passa, a vida me parece ou muito complicada e misteriosa ou muito simples e profunda. Não aprendo até morrer – desaprendo até morrer. Não sei nada, não sei nada, e saio deste mundo com a convicção de que não é a razão nem a verdade que nos guiam: só a paixão e a quimera nos levam a resoluções definitivas.
O papel dos doidos é de primeira importância neste triste planeta, embora depois os outros tentem corrigi-lo e canalizá-lo… Também entendo que é tão difícil asseverar a exactidão dum facto como julgar um homem com justiça.
Todos os dias mudamos de opinião. Todos os dias somos empurrados para léguas de distância por uma coisa frenética, que nos leva não sei para onde. Sucede sempre que, passados meses sobre o que escrevo – eu próprio duvido e hesito. Sinto que não me pertenço…
É por isso que não condeno nem explico nada, e fujo até de descer dentro de mim próprio, para não reconhecer com espanto que sou absurdo – para não ter de discriminar até que ponto creio ou não creio,
Sociedade Cíclica
Um dos primeiros erros do mundo moderno é presumir, profunda e tacitamente, que as coisas passadas se tornaram impossíveis. Eis uma metáfora pela qual os modernos são apaixonados; sempre dizem: «Não se pode atrasar o pêndulo». A resposta é clara e simples: «Pode-se sim». Um pêndulo, que é um objecto construído pelo homem, pode ser modificado por um dedo humano a qualquer hora. Assim, a sociedade, que é um objecto de construção humana, pode ser reconstituído sob qualquer forma já experimentada.
Cartas Trocadas para o Marido e para o Amante
Anais,
Uma terrível asneira foi feita. Enviaste a carta para o Hugo, no dia em que chegaste, e mandaste-lhe a minha. O Hugo está freneticamente a tentar entrar em contacto comigo. Mandou a Amélia aqui, que deixou debaixo da porta o bilhete que junto. Ela esteve aqui de manhã e outra vez esta noite. Pensei de manhã que era o próprio Hugo e que ele tinha vindo para me “apanhar”… Por isso, não abri a porta.
Já que eu tinha recebido a carta dele na noite anterior (a tua carta para ele), tive um pressentimento de que as cartas tinham sido postas nos envelopes errados e fiquei apreensivo. Esta noite enviei-lhe a sua carta para o número 18 da Ave. de Versailles, sem dar a minha morada. Não posso dizer nesta carta se chegarei a receber a que me era devida. Espero que sim. Suponho que ele saiba tudo agora. Mas estou a evitá-lo, porque não quero admitir nem negar. Ele deve estar furioso, mas, ao mesmo tempo, num estado terrível. Eu próprio estou exausto de apreensão. Trouxe o Fred para ficar aqui comigo, porque até o Hugo partir vou estar em pulgas. Sei que, se ele me matasse,
Corpo e Espírito
A maior parte das pessoas tem um corpo que, ou é desleixado, formado e deformado pelo acaso, e que parece quase não ter relação com o seu espírito e o seu carácter, ou então é recoberto pela máscara do desporto que lhe dá o aspecto daquelas horas em que ele tirou férias de si próprio. Essas são aquelas horas em que um homem desfia o sonho diurno da sua boa figura, que foi buscar às revistas do grande mundo da elegância e da beleza. Todos esses jogadores de ténis, cavaleiros e corredores de automóveis, bronzeados e musculosos, com ares de baterem todos os recordes, apesar de, em geral, dominarem apenas razoavelmente a sua especialidade, essas damas bem vestidas ou bem despidas, sonham sonhos diurnos, e só se distinguem do comum dos mortais que têm sonhos despertos porque o seu sonho não permanece encerrado no cérebro, mas sai para o ar livre, como projecção da alma das massas, configurada de forma corpórea, dramática, quase apetecia dizer, na linguagem de fenómenos ocultos mais que suspeitos, ideoplástica. Mas têm em comum com os vulgares construtores de fantasias uma certa banalidade dos seus sonhos, tanto no que se refere ao conteúdo como à proximidade do estado de vigília.
Saberei Conquistá-la Através de Todos os Sacrifícios
Perdoe-me se me apaixonei a este ponto de si. Mas não passarei daqui, nem ninguém me verá! Fechado num quarto da pousada, espero a sua resposta. Esperarei seis horas por umas linhas suas e depois volto para Paris. Já nem sei viver, vagueio por aí, ferido de morte. Prefiro cansar-me em longos passeios a cavalo, a consumir-me na solidão, ou no meio de pessoas que deixaram de me entender… Ordene-me que parta e não tornará a ser atormentada por um homem a quem um mês bastou para perder a razão.
Muito gostaria de surpreender o seu primeiro pensamento ao acordar; não posso descrever-lhe o reconhecimento que me enche o coração, este coração que reclama apenas a sua amizade, que saberá conquistá-la através de todos os sacrifícios, que é completamente vosso até ao seu último alento.
Não me conformo com a ideia de ser abandonado. O seu interesse é-me mil vezes mais preciso do que a própria vida, mas saberei moderar a expressão dos meus sentimentos e não terei outras aspirações do que as que me forem permitidas; também saberei esconder-lhe os meus temores; respeitarei o seu repouso – mas vê-la-ei, e nunca mais haverá felicidade na minha vida se não puder consagrar-lha inteiramente.
Controlar a Ansiedade
Quando receamos algum mal, o próprio facto de o recearmos atormenta-nos enquanto o aguardamos: teme-se vir a sofrer alguma coisa e sofre-se com o medo que se sente! Tal como nas doenças físicas há certos sintomas que pressagiam a moléstia – incapacidade de movimento, lassidão completa mesmo quando se não faz nenhum esforço, sonolência, calafrios por todo o corpo -, também um espírito débil se sente abalado, mesmo antes de qualquer mal se abater sobre ele: como que adivinha o mal futuro, e deixa-se vencer antes do tempo. Há coisa mais insensata do que nos angustiarmos com o futuro em vez de deixarmos chegar a hora da aflição, e atrairmos sobre nós todo um cúmulo de tormentos? Quando não é possível livrarmo-nos por completo da angústia, pelo menos adiemo-la tanto quanto pudermos. Queres ver como é verdade que ninguém deve atormentar-se com o futuro?
Imagina um homem a quem tenha sido dito que depois dos cinquenta anos será submetido a graves suplícios: ele permanece imperturbável enquanto não passa a metade desse espaço de tempo, altura em que começa a aproximar-se da angústia prometida para a segunda metade da sua vida. Por um processo semelhante sucede também que certos espíritos doentes sempre em busca de motivos para sofrer se deixam tomar de tristeza por factos já remotos e esquecidos.
O Socorro
Ele foi cavando, foi cavando, cavando, pois sua profissão – coveiro – era cavar. Mas, de repente, na distracção do ofício que amava, percebeu que cavara de mais. Tentou sair da cova e não conseguiu. Levantou o olhar para cima e viu que, sozinho, não conseguiria sair. Gritou. Ninguém atendeu. Gritou mais forte. Ninguém veio. Enlouqueceu de gritar, cansou de esbravejar, desistiu com a noite. Sentou-se no fundo da cova, desesperado. A noite chegou, subiu, fez-se o silêncio das horas tardas. Bateu o frio da madrugada e, na noite escura, não se ouvia mais um som humano, embora o cemitério estivesse cheio dos pipilos e coaxares naturais dos matos. Só pouco depois da meia-noite é que lá vieram uns passos. Deitado no fundo da cova o coveiro gritou. Os passos se aproximaram. Uma cabeça ébria apareceu lá em cima, perguntou o que havia: «O que é que há?»
O coveiro então gritou, desesperado: «Tire-me daqui, por favor. Estou com um frio terrível!». «Mas coitado!» – condoeu-se o bêbado. – «Tem toda razão de estar com frio.
Alguém tirou a terra toda de cima de você, meu pobre mortinho!». E, pegando na pá, encheu-a de terra e pôs-se a cobri-lo cuidadosamente.
A Companhia do Amor
O que eu sinto não seria para si uma coisa nova de que necessitasse uma clara afirmação; é o mesmo que eu sentia quando passeávamos ambos nas areias da Costa Nova. Ou antes, não é o mesmo sentimento: é outro mais belo, mais completo; porque tendo, apesar de tudo, ficado comigo, desde que nos separámos, e tendo sido o doce e fiel companheiro da minha vida desde então – esse sentimento penetrou-me de um modo mais absoluto e mais absorvente, exaltou-se e idealizou-se, e de tal sorte me invadiu todo que eu cheguei a não ter pensamento, ideia, esperança, plano, a que não estivesse misturada a sua imagem. E na Costa Nova ainda não era assim. Dizer porque é que eu, apesar de tudo, insistia em pensar em si, não sei. O facto de não serem dependentes da vontade os movimentos do coração não é uma suficiente explicação: porque eu podia resistir à importunidade desta ideia, e em lugar disso abandonava-me a ela como à minha única alegria. Devo portanto concluir que havia um pressentimento latente, uma vaga quase certeza, uma fé secreta de que a afinidade que existe entre as nossas naturezas se viria um dia a manifestar apesar de tudo,
Conta Comigo Sempre
Conta comigo sempre. Desde a sílaba inicial até à última gota de sangue. Venho do silêncio incerto do poema e sou, umas vezes constelação e outras vezes árvore, tantas vezes equilíbrio, outras tantas tempestade. A nossa memória é um mistério, recordo-me de uma música maravilhosa que nunca ouvi, na qual consigo distinguir com clareza as flautas, os violinos, o oboé.
O sonho é, e será sempre e apenas, dos vivos, dos que mastigam o pão amadurecido da dúvida e a carne deslumbrada das pupilas. Estou entre vazios e plenitudes, encho as mãos com uma fragilidade que é um pássaro sábio e distraído que se aninha no coração e se alimenta de amor, esse amor acima do desejo, bem acima do sofrimento.
Conta comigo sempre. Piso as mesmas pedras que tu pisas, ergo-me da face da mesma moeda em que te reconheço, contigo quero festejar dias antigos e os dias que hão-de vir, contigo repartirei também a minha fome mas, e sobretudo, repartirei até o que é indivisível. Tu sabes onde estou.
Sabes como me chamo. Estarei presente quando já mais ninguém estiver contigo, quando chegar a hora decisiva e não encontrares mais esperança, quando a tua antiga coragem vacilar.
Esta Prosa Travada
Põe-se a gente a ler estes Gides, estes Munthes, estes Malraux. E é sempre a mesma sensação de plenitude. Sempre a mesma sensação de que, depois daquilo, não vale a pena escrever uma palavra, de mais a mais nesta língua de que o diabo ainda se serve para falar à avó… Mas depois vem a revolta. Esta impotente revolta de todo o verdadeiro escritor português que começou por nascer atrás duma fraga e acaba por gastar a vida em Paio Pires, amanuense de secretaria. Metessem no braço dum Gide uma manga de alpaca, e eu queria ver… Então um homem nasce em Paris ou numa terra lavada da Suécia, tanto faz, mestres logo à beira do berço, todas as civilizações na biblioteca do pai, uma vida inteira pelo mundo além, e aqueles neurónios, e aqueles sentidos não hão-de reagir?! O mais bronco ser humano, quando fala com um Wilde, ouviu pelo menos falar o autor do De Profundis. Evidentemente é preciso mais alguma coisa do que ir à China e ter certa experiência para escrever A Condição Humana. Mas, sem um homem andar de avião, como há-de um homem ganhar perspectivas de pássaro e falar de poços de ar?!
…E a gente não tem outro remédio senão gastar as horas a fabricar esta prosa travada,
A Audácia é Má no Conselho e boa na Execução
A audácia é filha da ignorância e da rudeza, e muito inferior a todos os outros dons. Ela fascina, porém, atando-lhes os pés e as mãos, aos que são débeis de entendimento e falhos de coragem que formam a maioria; e prevalece até sobre os homens sábios nas horas da fraqueza. Por isso vemos que ela fez maravilhas nos Estados populares, menos do que nos governados por Senados ou por Príncipes; e muito mais ao primeiro arranco das pessoas audaciosas, do que depois, porque a audácia é má cumpridora de promessas.
(…) Certamente aos homens de grande entendimento, os audacciosos dão um espectáculo de muito gozo; e até mesmo para o vulgo, a audácia não deixa de ser ridícula. Porque se o absurdo é o fundamento do riso não duvideis de que uma grande audácia raramente existe sem absurdo.
(…) Deve ser bem considerado que a audácia é sempre cega, para não ver os perigos e as inconveniências. Por isso ela é má no conselho e boa na execução; para bem aproveitar e utilizar as pessoas audacciosas é preciso que elas nunca estejam na chefia do comando, mas em segundo lugar, sob a direcção de outros. Porque no conselho é bom ver os perigos,
Os Livros Representam a Essência de um Espírito
As obras são a quintessência de um espírito: por conseguinte, mesmo se este for o espírito mais sublime, elas sempre serão, sem comparação, mais ricas de contúdo do que a sua companhia, e a substituirão também na essência – ou melhor, ultrapassá-la-ão em muito e a deixarão para trás: Até mesmo os escritos de uma cabeça medíocre podem ser instrutivos, dignos de leitura e divertidos, justamente porque são sua quintessência, o resultado, o fruto de todo o seu pensamento e estudo; enquanto a sua companhia não nos consegue satisfazer. Sendo assim, podem-se ler livros de pessoas em cujas companhias não se encontraria nenhum prazer, e é por essa razão que uma cultura intelectual elevada nos induz pouco a pouco a encontrar o nosso prazer quase exclusivamente na leitura dos livros, e não na conversa com as pessoas.
Não há maior refrigério para o espírito do que a leitura dos clássicos antigos: tão logo temos um deles nas mãos, e mesmo que seja por apenas meia hora, sentimo-nos imdediatamente refrescados, aliviados, purificados, elevados e fortalecidos; como se nos tivéssemos deleitado na fonte fresca de uma rocha. Tal facto depende das línguas antigas e da sua perfeição ou da grandeza dos espíritos,
A Importância da Arte
A arte é, provavelmente, uma experiência inútil; como a «paixão inútil» em que cristaliza o homem. Mas inútil apenas como tragédia de que a humanidade beneficie; porque a arte é a menos trágica das ocupações, porque isso não envolve uma moral objectiva. Mas se todos os artistas da terra parassem durante umas horas, deixassem de produzir uma ideia, um quadro, uma nota de música, fazia-se um deserto extraordinário. Acreditem que os teares paravam, também, e as fábricas; as gares ficavam estranhamente vazias, as mulheres emudeciam. A arte é, no entanto, uma coisa explosiva. Houve, e há decerto em qualquer lugar da terra, pessoas que se dedicam à experiência inútil que é a arte, pessoas como Virgílio, por exemplo, e que sabem que o seu silêncio pode ser mortal. Se os poetas se calassem subitamente e só ficasse no ar o ruído dos motores, porque até o vento se calava no fundo dos vales, penso que até as guerras se iam extinguindo, sem derrota e sem vitória, com a mansidão das coisas estéreis. O laço da ficção, que gera a expectativa, é mais forte do que todas as realidades acumuláveis. Se ele se quebra, o equilíbrio entre os seres sofre grave prejuízo.