A Doutrina da Humanidade
Ter suficiente domínio sobre si mesmo para julgar os outros em comparação consigo e agir em relação a eles como nós quereríamos que eles agissem para connosco é o que se pode chamar a doutrina da humanidade; nada há mais para além disso.
Se não se tem um coração misericordioso e compassivo, não se é um homem; se não se têm os sentimentos da vergonha e da aversão, não se é um homem; se não se têm os sentimentos da abnegação e da cortesia, não se é um homem; se não se tem o sentimento da verdade e do falso ou do justo e do injusto, não se é um homem. Um coração misericordioso e compassivo é o princípio da humanidade; o sentimento da vergonha e da aversão é o princípio da equidade e da justiça; o sentimento da abnegação e da cortesia é o princípio do convívio social; o sentimento do verdadeiro e do falso ou do justo e injusto é o princípio da sabedoria. Os homens têm estes quatro princípios, do mesmo modo que têm quatro membros.
Textos sobre Humanidade
203 resultadosA Luta para a Supressão Radical das Guerras
A minha participação na produção da bomba atómica consistiu numa única acção: assinei uma carta dirigida ao presidente Roosevelt, na qual se sublinhava a necessidade de levar a cabo experiências em grande escala, para investigação das possibilidades de produção duma bomba atómica.
Tive bem consciência do grande perigo que significava para a Humanidade o êxito desse empreendimento. Mas a probabilidade de que os Alemães trabalhassem no mesmo problema e fossem bem sucedidos, obrigou-me a dar este passo. Não tinha outra solução, embora tivesse sido sempre um pacifista convicto. Foi, portanto, uma reacção de legítima defesa.
Enquanto, porém, as nações não estiverem resolvidas a trabalhar em comum para suprimir a guerra, a resolverem os seus conflitos por decisão pacífica e a protegerem os seus interesses de maneira legal, vêem-se obrigadas a preparar-se para a guerra. Vêem-se, mais, obrigadas a preparar todos os meios, mesmo os mais detestáveis, para não se deixarem ficar para trás, na corrida geral aos armamentos. Este caminho conduz fatalmente à guerra que, nas condições actuais, significa destruição geral.
Nestas condições, a luta contra os meios não tem probabilidades de êxito. Só ainda pode valer a supressão radical das guerras e do perigo de guerra.
A Autoridade
Autoridade: sem ela o homem não pode existir e, contudo, é coisa que traz consigo tanto de erro como de verdade. Perpetua no individual o que devia ser individualmente transitório, nega e desactualiza o que devia ser retido, e sobretudo constitui uma das causas da estagnação da humanidade. Em nosso entender cada um deve permanecer no caminho que encetou e não se deixar submeter, limitar ou seduzir pela autoridade, pela concordância geral ou pela moda.
A Necessidade do Próximo
Nós só sentimos agrado para com os semelhantes – ou seja pelas imagens de nós próprios – quando sentimos comprazimento connosco. E quanto mais estamos contentes connosco, mais detestamos o que nos é estranho: a aversão pelo que nos é estranho está na proporção da estima que temos por nós. É em consequência dessa aversão que nós destruímos tudo o que é estranho, ao qual assim mostramos o nosso distanciamento.
Mas o menosprezo por nós próprios pode levar-nos a uma compaixão geral para com a humanidade e pode ser utilizado, intencionalmente, para uma aproximação com os demais.
Temos necessidade do próximo para nos esquecermos de nós mesmos: o que leva à sociabilidade com muita gente.
Somos dados a supor que também os outros têm desgosto com o que são; quando isto se verifica, então receberemos uma grande alegria: afinal, estamos na mesma situação.
E, talqualmente nos vemos forçados a suportar-nos, apesar do desgosto que temos com aquilo que somos, assim nos habituamos a suportar os nossos semelhantes.
Assim, nós deixamos de desprezar os outros; a aversão para com eles diminui, e dá-se a reaproximação.
Eis porque, em virtude da doutrina do pecado e da condenação universal,
O Maior Amor e as Coisas que Se Amam
Tomara poder desempenhar-me, sem hesitações nem ansiedades, deste mandato subjectivo cuja execução por demorada ou imperfeita me tortura e dormir descansadamente, fosse onde fosse, plátano ou cedro que me cobrisse, levando na alma como uma parcela do mundo, entre uma saudade e uma aspiração, a consciência de um dever cumprido.
Mas dia a dia o que vejo em torno meu me aponta novos deveres, novas responsabilidades da minha inteligência para com o meu senso moral. Hora a hora a (…) que escreve as sátiras surge colérica em mim. Hora a hora a expressão me falha. Hora a hora a vontade fraqueja. Hora a hora sinto avançar sobre mim o tempo. Hora a hora me conheço, mãos inúteis e olhar amargurado, levando para a terra fria uma alma que não soube contar, um coração já apodrecido, morto já e na estagnação da aspiração indefinida, inutilizada.
Nem choro. Como chorar? Eu desejaria poder querer (desejar) trabalhar, febrilmente trabalhar para que esta pátria que vós não conheceis fosse grande como o sentimento que eu sinto quando n’ela penso. Nada faço. Nem a mim mesmo ouso dizer: amo a pátria, amo a humanidade. Parece um cinismo supremo. Para comigo mesmo tenho um pudor em dizê-lo.
O Progresso Aumenta a Vida e a Morte
Não desconheço que a velhice constitui, em grande parte, um preconceito aritmético, e que o nosso maior erro consiste em contar os anos que vivemos. Com efeito, tudo nos leva a supor que a Natureza dotou o homem (não falo já nas longevidades da Bíblia) de vida média mais longa do que aquela que as estatísticas demográficas acusam, e que, se morremos antes do termo normal da existência, é porque sucumbimos, não a «morte natural» (a «morte fisiológica», de Metchnickoff), mas a «morte violenta», que é a morte por acção destrutiva dos germes patogénicos. Como quer que seja, porém, parece-me incontestável que o homem envelhece antes do tempo e morre, em geral, quando ainda não chegou a meio do caminho da vida.
Será o engenho humano capaz de opôr uma barreira à marcha inexorável da decrepitude? Talvez. O nosso organismo é uma máquina; gasta-se, como todas as máquinas; e, por milagre da Natureza, ainda é aquela que, funcionando permanentemente, consegue durar mais tempo. Contentemo-nos com a ideia de que o homem de hoje vive mais do que vivia na Antiguidade clássica e na época medieval, mercê do progresso das técnicas, do conforto moderno da existência, da observação dos preceitos que a higiene,
Amor e Intimidade
Toda a gente tem medo da intimidade — ter ou não ter consciência desse medo é outra história. A intimidade significa expor-se perante um estranho — e todos nós somos estranhos; ninguém conhece ninguém. Somos mesmo estranhos a nós próprios, porque não sabemos quem somos.
A intimidade aproxima-o de um estranho. Tem de deixar cair todas as suas defesas; só assim a intimidade é possível. E o seu medo é que se deixar cair todas as suas defesas, todas as suas máscaras, quem sabe o que o estranho lhe poderá fazer. Todos nós andamos a esconder mil e uma coisas, não só dos outros mas de nós próprios, porque fomos criados por uma humanidade doente com toda a espécie de repressões, inibições e tabus. E o medo é que, com alguém que seja um estranho — e não importa se se viveu com a pessoa durante trinta ou quarenta anos; a estranheza nunca desaparece —, parece mais seguro manter uma ligeira defesa, uma pequena distância, porque alguém se poderá aproveitar das suas fraquezas, da sua fragilidade, da sua vulnerabilidade.
Toda a gente tem medo da intimidade. O problema torna-se mais complicado porque toda a gente quer intimidade. Toda a gente quer intimidade porque,
Ser Livre
Eu não nasci com fome de ser livre. Eu nasci livre – livre em todos os aspectos que conhecia. Livre de correr pelos campos perto da palhota da minha mãe, livre de nadar num regato transparente que atravessava a minha aldeia, livre de assar maçarocas sob as estrelas e montar os largos dorsos de bois vagarosos. Contanto que obedecesse ao meu pai e observasse os costumes da minha tribo, eu não era incomodado pelas leis do homem nem de Deus. (…) Só quando comecei a aprender que a minha liberdade de menino era uma ilusão, quando descobri, em jovem, que a minha liberdade já me fora roubada, é que comecei a sentir fome dela. (…) Calcorreei esse longo caminho para a liberdade. Tentei não vacilar; dei maus passos durante o percurso. Mas descobri o segredo: depois de subir uma alta montanha apenas se encontram outras montanhas para subir. Parei aqui um momento para descansar, para gozar a vista da gloriosa paisagem que me rodeia, para voltar os olhos para a distância percorrida. Mas só posso descansar um momento, porque, com a liberdade, vem a responsabilidade, e não me atrevo a demorar, pois a minha caminhada ainda não terminou. (…) Ser livre não é apenas livrar-se das próprias grilhetas,
Glória Efémera ou Eterna
Via de regra, a glória será tanto mais tardia quanto mais for durável, pois tudo aquilo que é excelente amadurece de maneira lenta. A glória que se tornará póstera assemelha-se a um carvalho que cresce bem lentamente a partir da sua semente; a glória fácil, efémera, assemelha-se às plantas anuais, que crescem rapidamente, e a glória falsa parece-se com erva daninha, que nasce num piscar de olhos e que nos apressamos em arrancar. Esse desenrolar das coisas relaciona-se com o facto de que, quanto mais alguém pertence à posteridade, ou seja, à humanidade geral e inteira, tanto mais estranho será à sua época, pois o que ele produz não é especialmente dedicado a ela como tal, mas só na medida em que a mesma é uma parte da humanidade; logo, as suas obras não são tingidas com a cor local do seu tempo; todavia, em consequência disso, pode acontecer que tal indivíduo passe facilmente como um estranho pela sua época.
Esta prefere apreciar aqueles que tratam os assuntos do seu dia-a-dia ou que servem ao humor do momento, portanto, os factos que pertencem integralmente a ela, que com ela vivem e com ela morrem. Por isso, a história da arte e da literatura ensina geralmente que as mais elevadas realizações do espírito humano,
O Fim da Personagem
Hoje, após tantas experiências, a personagem está ameaçada de ser suprimida exclusivamente a favor do escritor. A arborescência de memória, sombras de fantasia, suspeitas de sensibilidade ou a conversas fúteis, monólogos e solilóquios, parece estar reduzido a única personagem ainda hoje possível, isto é, aquela que diz «eu». É significativo que esta redução coincida com a procura atenta duma linguagem narrativa que satisfaça as ampliadas exigências estéticas do tempo. Em conclusão, depois do romance ter sido durante tanto tempo uma questão de conteúdo parece agora resolver-se por um compromisso formal. Teremos depois da lírica pura o romance puro? Como se vê estamos bem longe do romance oitocentista.
Evidentemente que a crise da personagem corresponde a uma crise semelhante do conceito do homem. O homem moderno não passaria duma entidade numérica dentro da colectividade entre as mais formidáveis que a humanidade já conheceu. Não existiria por si só mas como parte de qualquer outra coisa, de um organismo, de um sentimento, de um conceito colectivo. Com um tal homem é bastante difícil fazer uma personagem, pelo menos no sentido tradicional da palavra.
Mas neste ponto há necessidade de acentuar que muito mais do que a personagem conta a experiência metafísica e moral a partir da qual nasce a personagem mesmo.
Os Caminhos Insondáveis do Progresso da Humanidade
O progresso não é necessário por uma necessidade metafísica: pode-se dizer apenas que muito provavelmente a experiência acabará por eliminar as falsas soluções e por se livrar dos impasses. Mas a que preço, por quantos meandros? Não se pode nem mesmo excluir, em princípio, que a humanidade, como uma frase que não se consegue concluir, fracasse no meio do caminho.
Decerto o conjunto dos seres conhecidos pelo nome de homens e definidos pelas características físicas que se conhecem tem também em comum uma luz natural, uma abertura ao ser que torna as aquisições da cultura comunicáveis a todos eles e somente a eles. Mas esse lampejo que encontramos em todo o olhar dito humano é visto tanto nas formas mais cruéis do sadismo quanto na pintura italiana. É justamente ele que faz com que tudo seja possível da parte do homem, e até o fim.
Preciso de Ti
O amor é bem capaz de ser a melhor maneira de nos encontrarmos connosco.
Preciso de ti para saber de mim.
Sei-o sempre que por minutos parece que vou perder-te, numa discussão das que vamos tendo. Discutir é abrir a válvula do amor, deixá-lo respirar, sangrá-lo para poder regressar à estrada. Nenhum amor aguenta sem sangrar.
Preciso de ti para pensar em mim.
Sei-o porque quando parece que vais eu vou também, deixo de saber quem sou, como sou. Para onde vou.
Preciso de ti para precisar de mim.
E os que não me entendem que vão para o raio que os parta. Os que dizem que isto não é nada recomendável, que isto não devia ser assim, que eu devia ser capaz de ser o que sou sem precisar de ti. Infelizes.
Preciso de ti para cuidar de mim.
O amor é bem capaz de ser precisar do outro para cuidarmos de nós.
E eu cuido-me. Quero estar viva para te poder amar. Conheces melhor motivo do que esse? É claro que amo os meus pais, a minha família toda, os meus gatos, aquilo que a vida me tem dado.
Mentimos para Proteger o nosso Prazer
A mentira é essencial à humanidade. Nela desempenha porventura um papel tão importante como a procura do prazer, e de resto é comandada por essa mesma procura. Mentimos para proteger o nosso prazer, ou a nossa honra se a divulgação do prazer for contrária à honra. Mentimos ao longo de toda a nossa vida, até, e sobretudo, e talvez apenas, àqueles que nos amam. Só estes, com efeito, nos fazem temer pelo nosso prazer e desejar a sua estima.
O Homem é o Animal Menos Preparado
A capacidade do homem para o pensamento abstracto, que parece faltar à maioria dos outros mamíferos, conferiu-lhe sem dúvida o seu actual domínio sobre a superfície da Terra – um domínio disputado apenas por centenas de milhares de tipos de insectos e organismos microscópicos. Este pensamento abstracto é o responsável pela sua sensação de superioridade e pelo que, sob esta sensação, corresponde a uma certa medida de realidade, pelo menos dentro de estreitos limites. Mas o que é frequentemente subestimado é o facto de que a capacidade de desempenhar um acto não é, de forma alguma, sinónima de seu exercício salubre. É fácil observar que a maior parte do pensamento do homem é estúpida, sem sentido e injuriosa para ele. Na realidade, de todos os animais, ele parece o menos preparado para tirar conclusões apropriadas nas questões que afectam mais desesperadamente o seu bem-estar.
Tente imaginar um rato, no universo das ideias dos ratos, chegando a noções tão ocas de plausibilidade como, por exemplo, o Swedenborgianismo, a homeopatia ou a telepatia mental. O instinto natural do homem, de facto, nunca se dirige para o que é sólido e verdadeiro; prefere tudo que é especioso e falso. Se uma grande nação moderna se confrontar com dois problemas antagónicos – um deles baseado em argumentos prováveis e racionais,
O Provincianismo Português (II)
Se fosse preciso usar de uma só palavra para com ela definir o estado presente da mentalidade portuguesa, a palavra seria “provincianismo”. Como todas as definições simples esta, que é muito simples, precisa, depois de feita, de uma explicação complexa. Darei essa explicação em dois tempos: direi, primeiro, a que se aplica, isto é, o que deveras se entende por mentalidade de qualquer país, e portanto de Portugal; direi, depois, em que modo se aplica a essa mentalidade.
Por mentalidade de qualquer país entende-se, sem dúvida, a mentalidade das três camadas, organicamente distintas, que constituem a sua vida mental — a camada baixa, a que é uso chamar povo; a camada média, a que não é uso chamar nada, excepto, neste caso por engano, burguesia; e a camada alta, que vulgarmente se designa por escol, ou, traduzindo para estrangeiro, para melhor compreensão, por elite.
O que caracteriza a primeira camada mental é, aqui e em toda a parte, a incapacidade de reflectir. O povo, saiba ou não saiba ler, é incapaz de criticar o que lê ou lhe dizem. As suas ideias não são actos críticos, mas actos de fé ou de descrença, o que não implica, aliás,
A Inteligência e o Carácter das Massas
O nosso tempo é rico em mentes inventivas, cujas invenções podem facilitar consideravelmente as nossas vidas. Estamos a atravessar os mares com potência e a utilizar a potência também para libertar a humanidade de todo o trabalho muscular cansativo. Aprendemos a voar e somos capazes de enviar mensagens e notícias sem qualquer dificuldade para todo o mundo através de ondas eléctricas.
Contudo, a produção e a distribuição de bens estão completamente desorganizadas, de tal forma que toda a gente vive com medo de ser completamente eliminada do ciclo económico, sofrendo deste modo do querer tudo. Para além disso, as pessoas que vivem em países diferentes matam-se umas às outras com intervalos de tempo irregulares, de tal modo que, também por esta razão, todo aquele que pensa no futuro vive no medo e no terror. Isto deve-se ao facto de a inteligência e o carácter das massas serem incomparavelmente menores do que a inteligência e o carácter dos poucos que produzem algo de verdadeiramente válido para a comunidade.
Tenho confiança em que a posteridade lerá estas afirmações com um sentimento de orgulho e superioridade justificada.
Façam a Barba, Meus Senhores!
A barba, por ser quase uma máscara, deveria ser proibida pela polícia. Além disso, enquanto distintivo do sexo no meio do rosto, ela é obscena: por isso é apreciada pelas mulheres.
Dizem que a barba é natural ao homem: não há dúvida, e por isso ela é perfeitamente adequada ao homem no estado natural; do mesmo modo, porém, no estado civilizado é natural ao homem fazer a barba, uma vez que assim ele demonstra que a brutal violência animalesca – cujo emblema, percebido imediatamente por todos, é aquela excrescência de pêlos, característica do sexo masculino – teve de ceder à lei, à ordem e à civilização.
A barba aumenta a parte animalesca do rosto e ressalta-a. Por essa razão, confere-lhe um aspecto brutal tão evidente. Basta observar um homem barbudo de perfil enquanto ele come! Este pretende que a barba seja um ornamento. No entanto, há duzentos anos era comum ver esse ornamento apenas em judeus, cossacos, capuchinhos, prisioneiros e ladrões. A ferocidade e a atrocidade que a barba confere à fisionomia dependem do facto de que uma massa respectivamente sem vida ocupa metade do rosto, e justamente aquela que expressa a moral. Além disso, todo o tipo de pêlo é animalesco.
As Nossas Possibilidades de Felicidade
É simplesmente o princípio do prazer que traça o programa do objectivo da vida. Este princípio domina a operação do aparelho mental desde o princípio; não pode haver dúvida quanto à sua eficiência, e no entanto o seu programa está em conflito com o mundo inteiro, tanto com o macrocosmo como com o microcosmo. Não pode simplesmente ser executado porque toda a constituição das coisas está contra ele; poderíamos dizer que a intenção de que o homem fosse feliz não estava incluída no esquema da Criação. Aquilo a que se chama felicidade no seu sentido mais restrito vem da satisfação — frequentemente instantânea — de necessidades reprimidas que atingiram uma grande intensidade, e que pela sua natureza só podem ser uma experiência transitória. Quando uma condição desejada pelo princípio do prazer é protelada, tem como resultado uma sensação de consolo moderado; somos constituídos de tal forma que conseguirmos ter prazer intenso em contrastes, e muito menos nos próprios estados intensos. As nossas possibilidades de felicidade são assim limitadas desde o princípio pela nossa formação. É muito mais fácil ser infeliz.
O sofrimento tem três procedências: o nosso corpo, que está destinado à decadência e dissolução e nem sequer pode passar sem a ansiedade e a dor como sinais de perigo;
O Segredo das Mulheres
Como os homens andam sempre atrasados em relação às mulheres (porque só pensam numa coisa de cada vez e acham que falar acerca das coisas é pior do que fazê-las), quem sabe se não é estudando o comportamento feminino de hoje que poderemos vislumbrar o nosso macaquismo masculino de amanhã?
As mulheres de hoje sabem quem lhes pode fazer mal: são as outras mulheres. Os homens, por muito amados e queridos, nem sequer são considerados competidores. São como são, têm a inteligência e o material que têm – e que Deus os abençoe por ser assim, como os pêssegos-rosa e os arcos-íris e todos os outros fenómenos naturais que são difíceis de prever e de controlar.O segredo das mulheres, que nenhum homem pode perceber, a não ser que seja amado por alguma que se sinta suficientemente amada por um para lhe contar mais do que o suficiente para ele continuar a existir tal como é (que mais não se lhe pede) é: os homens não entram na equação. É tudo uma questão entre elas.
Elas são espertas. É por isso que morrem de medo umas das outras. Conhecem o perigo e sabem quem pode emperigá-las.
Ser Português, Ainda
Para ser português, ainda, vive-se entre letras de poemas e esperanças, cantigas e promessas, de passados esquecidos e futuros desejados, sem presente, sem pensamento, sem Portugal. Para ser português, ainda, aprende-se a existir no gume da tristeza, como um equilibrista num andaime de navalhas levantadas, numa obra que se vai construindo sob uma arquitectura de demolição. Tínhamos direito a um Portugal inteiro, com povo e com a terra, mas o povo enlouqueceu e a terra foi arrasada e tudo o que era pátria, doce e atrevida, se afasta à medida que olhamos para ela, tal é a ânsia de apagamento e de perdição. Restam-nos sons e riscos. Portugal encolheu-se. Escondeu-se nos poetas e cantores. Recolheu-se nas vozes fundas de onde nasceu. Portugal abrigou-se em portugueses e portuguesas nos quais uma ideia de Portugal nunca se perdeu.
Para se ser português, ainda, é preciso estreitar os olhos e molhar a garganta com vinho tinto para poder gritar que isto assim não é Portugal, não é país, não é nada. Torna-se cada vez mais difícil que o povo e a terra e a ideia se possam alguma vez reunir.
É preciso defender violentamente as instituições: a Universidade, o Parlamento,