MiserĂĄveis Macabros
Ă que nĂŁo foram tĂŁo poucas como isso as vezes que vi a piedade enganar-se. NĂłs, que governamos os homens, aprendemos a sondar-lhes os coraçÔes, para sĂł ao objecto digno de estima dispensarmos a nossa solicitude. Mais nĂŁo faço do que negar essa piedade Ă s feridas de exibição que comovem o coração das mulheres. Assim como tambĂ©m a nego aos moribundos, e alĂ©m disso aos mortos. E sei bem porquĂȘ.
Houve uma altura da minha mocidade em que senti piedade pelos mendigos e pelas suas Ășlceras. AtĂ© chegava a apalavrar curandeiros e a comprar bĂĄlsamos por causa deles. As caravanas traziam-me de uma ilha longĂnqua unguentos derivados do ouro, que tĂȘm a virtude de voltar a compor a pele ao cimo da carne. Procedi assim atĂ© descobrir que eles tinham como artigo de luxo aquele insuportĂĄvel fedor. Surpreendi-os a coçar e a regar com bosta aquelas pĂșstulas, como quem estruma uma terra para dela extrair a flor cor de pĂșrpura. Mostravam orgulhosamente uns aos outros a sua podridĂŁo e gabavam-se das esmolas recebidas.
Aquele que mais ganhara comparava-se a si prĂłprio ao sumo sacerdote que expĂ”e o Ădolo mais prendado. Se consentiam em consultar o meu mĂ©dico, era na esperança de que o cancro deles o surpreendesse pela pestilĂȘncia e pelas proporçÔes.
Textos sobre Ilha de Antoine de Saint-Exupéry
2 resultadosFelicidade com Poucos Bens
Embora a experiĂȘncia me tenha ensinado que se descobrem homens felizes em maior proporção nos desertos, nos mosteiros e no sacrifĂcio do que entre os sedentĂĄrios dos oĂĄsis fĂ©rteis ou das ilhas ditas afortunadas, nem por isso cometi a asneira de concluir que a qualidade do alimento se opusesse Ă natureza da felicidade. Acontece simplesmente que, onde os bens sĂŁo em maior nĂșmero, oferecem-se aos homens mais possibilidades de se enganarem quanto Ă natureza das suas alegrias: elas, efectivamente, parecem provir das coisas, quando eles as recebem do sentido que essas coisas assumem em tal impĂ©rio ou em tal morada ou em tal propriedade. Para jĂĄ, pode acontecer que eles, na abastança, se enganem com maior facilidade e façam circular mais vezes riquezas vĂŁs. Como os homens do deserto ou do mosteiro nĂŁo possuem nada, sabem muito bem donde lhes vĂȘm as alegrias e Ă©-lhes assim mais fĂĄcil salvarem a prĂłpria fonte do seu fervor.