Textos Interrogativos

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Textos interrogativos sobre diversos assuntos para ler e compartilhar. Conheça estes e outros temas em Poetris.

Quantos Séculos Precisa um Espírito para Ser Compreendido?

Os maiores acontecimentos e os maiores pensamentos – mas os maiores pensamentos são os maiores acontecimentos – são os que mais tarde se compreendem: as gerações que lhes são contemporâneas não vivem esses acontecimentos, – passam por eles. Acontece aqui algo de análogo ao que se observa no domínio dos astros. A luz das estrelas mais distantes chega mais tarde aos homens; e antes da sua chegada, os homens negam que ali – existam estrelas. “Quantos séculos precisa um espírito para ser compreendido?” – aí está também uma medida, um meio de criar uma hierarquia e uma etiqueta necessárias: para o espírito e para a estrela.

Dostoievski Mais Moderno Que Tolstoi

Qual a razão porque sentimos que o romance de Dostoievski é mais moderno, por exemplo, que o de Tolstoi? Porque os personagens de Tolstoi quase nunca são o próprio Tolstoi, enquanto os personagens de Dostoievski são quase sempre o próprio Dostoievski. Por outras palavras, interessamo-nos mais pelo escritor que pelas suas criaturas. Procurar-se-ia inútilmente em Dostoievski a descrição completa duma sociedade como em Guerra e Paz. O grande problema para ele é o de dar consistência humana aos seus mais misteriosos e contraditórios instintos. É um facto que recentemente tem havido um grande falatório acerca do subconsciente a propósito de Dostoievski. Mas não acreditamos que a psicanálise tenha alguma coisa a ver com a arte, todavia a tentativa de exegese psicanalítica indica a validade de elementos puramente subjectivos perante os quais cai qualquer hipótese de verosimilhança.

A História é um Criar e Desfazer de Ilusões

A História é um criar e desfazer de ilusões. Em todos os domínios, sobretudo no do pensar. Admitamos que é antes um desfazer de ilusões até à verdade final. Cercados do nada, antes e depois, o indivíduo, a espécie, a própria terra, o sistema solar, o universo com a degradação da energia, que é que quer dizer uma «ilusão»? É o acordar de um sonho num sonho. Que significa o entusiasmo com o desfazer do que nos iludiu? Mas continuar a sonhar num sonho de segundo grau é não saber que se continua. Com essa ignorância se faz a grandeza do homem. Ou com o ignorar, mas como se não. A verdade perfeita é o nada que nos cerca. Mas no nada nem sequer se sabe que não há nada. Só portanto na ilusão pode haver tudo. E, nesse caso, continuemos.

As Verdadeiras Necessidades não Têm Gostos

Nenhum conselho me parece mais útil para te dar do que este (e que nunca é demais repetir!): limita sempre tudo aos desejos naturais que tu podes satisfazer com pouca ou nenhuma despesa, evitando, contudo, confundir vícios com desejos. Porventura te interessa saber em que tipo de mesa, em que baixela de prata te é servida a refeição, ou se os escravos te servem com bom ritmo e solicitude? A natureza só necessita de uma coisa: a comida. (…) A fome dispensa pretensões, apenas reclama ser saciada, sem cuidar grandemente com quê. O triste prazer da gula vive atormentado na ânsia de continuar com vontade de comer mesmo quando saciado, de buscar o modo como atulhar, e não apenas encher o estômago, de achar maneira de excitar a sede extinta logo à primeira golada! Tem, por isso toda a razão Horácio quando diz que a sede não se interessa pela espécie de copo ou pela elegância da mão que o serve.
Se achas que têm para ti muita importância os cabelos encaracolados do escravo, ou a transparência do copo que te põe à frente, é porque não estás com sede. Entre outros benefícios que devemos à natureza conta-se este,

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Viver é não Saber que se Vive

Ponho-me, às vezes, a olhar para o espelho e a examinar-me, feição por feição: os olhos, a boca, o modelado da fronte, a curva das pálpebras, a linha da face… E esta amálgama grosseira e feia, grotesca e miserável, saberia fazer versos? Ah, não! Existe outra coisa… mas o quê? Afinal, para que pensar? Viver é não saber que se vive. Procurar o sentido da vida, sem mesmo saber se algum sentido tem, é tarefa de poetas e de neurasténicos. Só uma visão de conjunto pode aproximar-se da verdade. Examinar em detalhe é criar novos detalhes. Por debaixo da cor está o desenho firme e só se encontra o que se não procura. Porque me não esqueço eu de viver… para viver?

A Força da Intuição

Para adquirirmos o bilhete de ida ao amor que somos basta estarmos atentos e confiarmos nos sinais que recebemos de dentro e de fora. São pistas, são oportunidades, autênticos tesouros que nos devolvem a casa. Será que estás desperto para isto? Será que consegues reconhecer-te enquanto sabedoria superior? Repito, todos os dias te surgem novas oportunidades. Todos os dias! Se existe força que nunca desiste é a nossa intuição. Todos os dias se faz ouvir e pode manifestar-se nas mais simples sensações.
Desde cedo que aprendi a escutar-me e a interpretar os sinais que a vida me dava. Não me sinto superior a ninguém, mas a consciencialização desta verdade coloca-nos num patamar distinto, de visibilidade maior e certezas absolutas. Certezas próprias, a nosso respeito, claro está. Convicções que nos catapultam para estados prolongados de felicidade e que nos permitem antecipar acontecimentos, habilitando-nos com um apurado leque de escolhas acertadas e condizentes com aquilo que verdadeiramente somos. Ou seja, já não vamos a todas, só vamos onde sentimos que devemos ir e onde sabemos que se encontram fragmentos nossos. Isto é ser espiritual.

Alegria e Tranquilidade

A alegria pode sofrer interrupções no caso de pessoas ainda insuficientemente avançadas, enquanto, no caso do sábio, o bem estar é um tecido contínuo que nenhuma ocorrência, nenhum acidente pode romper; em todo o tempo, em todo o lugar o sábio goza de tranquilidade! Porquê? Porque o sábio não depende de factores externos, não está à espera dos favores da fortuna ou dos outros homens. A sua felicidade está dentro dele; fazê-la vir de fora seria expulsá-la da alma, que é onde, de facto, a felicidade nasce! Pode uma vez por outra surgir qualquer ocorrência que lembre ao sábio a sua condição de mortal, mas ocorrências deste tipo são de somenos importância e não o atingem mais do que à flor da pele. O sábio, insisto, pode ser tocado ao de leve por um ou outro contratempo, mas para ele o sumo bem permanece inalterável. Volto a dizer que lhe podem ocorrer contratempos provindos do exterior, tal como um homem de físico robusto não está livre de um furúnculo ou de uma ferida superficial; em profundidade, porém, não há mal que o atinja.
A diferença existente, insisto ainda outra vez, entre o homem que atingiu a plenitude da sabedoria e aquele que ainda lá não chegou é a mesma que se verifica entre um homem são e um convalescente de doença grave e prolongada.

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A Leitura é a Maior das Amizades

A amizade, a amizade que diz respeito aos indivíduos, é sem dúvida uma coisa frívola, e a leitura é uma amizade. Mas pelo menos é uma amizade sincera, e o facto de ela se dirigir a um morto, a uma pessoa ausente, confere-lhe algo de desinteressado, de quase tocante. E além disso uma amizade liberta de tudo quanto constitui a fealdade dos outros. Como não passamos todos, nós os vivos, de mortos que ainda não entraram em funções, todas essas delicadezas, todos esses cumprimentos no vestíbulo a que chamamos deferência, gratidão, dedicação e a que misturamos tantas mentiras, são estéreis e cansativas. Além disso, — desde as primeiras relações de simpatia, de admiração, de reconhecimento, as primeiras palavras que escrevemos, tecem à nossa volta os primeiros fios de uma teia de hábitos, de uma verdadeira maneira de ser, da qual já não conseguimos desembaraçar-nos nas amizades seguintes; sem contar que durante esse tempo as palavras excessivas que pronunciámos ficam como letras de câmbio que temos que pagar, ou que pagaremos mais caro ainda toda a nossa vida com os remorsos de as termos deixado protestar. Na leitura, a amizade é subitamente reduzida à sua primeira pureza.
Com os livros,

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Ouvir a Voz Interior

Não preste atenção ao que os outros dizem, ao que eles lhe dizem para ser. Escute sempre a sua voz interior, aquilo que gostaria de ser; de outro modo desperdiçará toda a sua vida. A sua mãe quer que seja engenheiro, o seu pai quer que seja médico e você quer ser poeta. Que fazer? É evidente que a mãe tem razão, porque ser engenheiro é mais interessante do ponto de vista económico e financeiro. O pai também tem razão; ser médico é uma boa mercadoria, tem um valor de mercado. Um poeta? Enlouqueceste? És doido? Os poetas são uma raça maldita. Ninguém os quer. Não há necessidade nenhuma deles; o mundo pode existir sem poesia — não haverá qualquer problema lá por não haver poesia. O mundo não pode existir sem engenheiros; o mundo precisa de engenheiros. Quando se é necessário, tem-se um valor. Quando não se é necessário, não se tem qualquer valor.

Mas se você quiser ser poeta, seja poeta. Poderá ser um pedinte – óptimo. Poderá não vir a ser muito rico, mas não se preocupe – porque de outro modo poderá vir a ser um grande engenheiro e poderá ganhar muito dinheiro, mas nunca se sentirá realizado.

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A História e o Progresso ao Sabor do Vento

Na sua maior parte a história faz-se sem autores. Não acontece a partir de um centro, mas da periferia. De pequenas causas. Talvez não seja tão difícil como se pensa fazer do homem gótico ou do grego antigo o homem da civilização moderna. Porque a natureza humana é tão capaz do canibalismo como da crítica da razão pura; é capaz de realizar as duas coisas com as mesmas convicções e as mesmas qualidades, se as circunstâncias forem propícias, e nesses processos a grandes diferenças externas correspondem diferenças internas mínimas.
(…) O caminho da história não é o de uma bola de bilhar que, uma vez jogada, percorre uma determinada trajectória; assemelha-se antes ao caminho das nuvens, ou ao de um vagabundo a deambular pelas vielas, que se distrai a observar, aqui uma sombra, ali um magote de gente, mais adiante o recorte curioso das fachadas, até que por fim chega a um ponto que não conhece e por onde nem tencionava passar. Há no decurso da história universal um certo erro de percurso. O presente é sempre como a última casa de uma cidade, que de certo modo já não faz bem parte do casario dessa cidade. Cada geração pergunta,

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Vim para os Teus Braços Chicoteada pela Vida

Então tu pensas que há muitos casais como nós por esse mundo? Os nossos mimos, a nossa intimidade, as nossas carícias são só nossas; no nosso amor não há cansaços, não há fastios, meu pequenito adorado! Como o meu desequilibrado e inconstante coração d’artista se prendeu a ti! Como um raminho de hera que criou raízes e que se agarra cada vez mais. Vim para os teus braços chicoteada pela vida e quando às vezes deito a cabeça no teu peito, passa nos meus olhos, como uma visão de horror, a minha solidão tamanha no meio de tanta gente! A minha imensa solidão de dantes que me pôs frio na alma. Eu era um pequenino inverno que tremia sempre; era como essa roseira que temos na varanda do Castelo que está quase sempre cheia de botões mas que nunca dá rosas! Na vida, agora há só tu e eu, mais ninguém. De mim não sei que mais te dizer: como bem mas durmo mal; falta-me todas as manhãs o primeiro olhar duns lindos olhos claros que são todo o meu bem.

Gosto das Belas Coisas Claras e Simples

Para quê alcançar os astros?! Para quê?! Para os desfolhar, por exemplo, como grandes flores de luz! Vê-los, vê-os toda a gente. De que serve então ser poeta se se é igual à outra gente toda, ao rebanho?… Eu não peço à Vida nada que ela me não tivesse prometido, e detesto-a e desdenho-a porque não soube cumprir nem uma das suas promessas em que, ingenuamente, acreditei, porque me mentiu, porque me traiu sempre. Mas não choro, não, como os portugueses chorões, não tenho nada de Jere­mias, pareço-me antes com Job, revoltado, gritando impreca­ções no seu monte de estrume. Não gosto de lágrimas, de fados nem de guitarras, gosto das belas coisas claras e sim­ples, das grandes ternuras perfeitas, das doces compreensões silenciosas, gosto de tudo, enfim, onde encontro um pouco de Beleza e de Verdade, de tudo menos do bípede humano, em geral, é claro, porque há ainda no mundo, graças a Deus, almas-astros onde eu gosto de me reflectir, almas de sinceri­dade e de pureza sobre as quais adoro debruçar a minha.

Uma Grande parte da Arte é para Morrer

A pasmaceira dum domingo português, que até mesmo em Lisboa é de desiludir um pícnico (quanto mais um asténico!), levou-me ao abismo onde todo o provinciano que aqui chega tem de cair, se não quer esperar no café pelo comboio do regresso. Refiro-me, claro, à inevitável revista. E fez-me bem, porque assentei ideias sobre alguns problemas de literatura e arte.
Os risos desarticulados que pelo mundo a cabo desaguam nos muitos parques Meyer, o que são em verdade senão o prolongamento protoplásmico de certas farsas medievais? Revistas também daqueles atribulados tempos, as peças primitivas que até nós chegaram não têm outro mérito senão mostrar-nos que já então se dizia mal dos tiranos em trocadilhescas palavras e significativos gestos, ficando-nos ao cabo da sua penosa leitura a humana consolação de sabermos que o povo ria a bandeiras despregadas da própria miséria, e aliviava assim as suas penas.
Uma grande parte da arte é para morrer, e a pedra de toque da sua caducidade está em ela falar apaixonadamente de pessoas e acontecimentos inteiramente esquecidos da lembrança da História. Poder-se-á dizer que não se trata de beleza pura, a qual tem uma perenidade que transcende o circunstancial. Não é verdade.

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O Dom da Simpatia

Ter o dom da simpatia. É das coisas que mais se invejam. Tem, como tudo, a sua técnica, mas os efeitos são sempre problemáticos. Há o sujeito amável, como o distante, o inteligente como o mediano, o modesto ou o vaidoso, o convincente como o retraído, o irónico ou o sério e assim por diante, com todas as qualidades que se quiserem e o seu contrário. Num caso e noutro pode-se ser «simpático» ou «antipático», captarmos os favores dos outros ou a sua repulsa. Não é fácil determinar o que realmente decide de uma adesão. E se fosse simplesmente o ter-se «personalidade»? O assumir-se verticalmente aquilo que se é? Isso ao menos imporia uma deferência ou «respeito». Lembra-se uma frase de um antigo tragediógrafo latino (Ácio) – que nos odeiem desde que nos temam. Não é evidentemente o caso aqui. Mas é qualquer coisa de parecido: que se seja o que se for, desde que se assuma isso em responsabilidade. O resto são apenas formas de «simpatia», ou seja, do «sentir-se com». E de todas elas, a base delas – ou seja, a admiração. Porque se não tem simpatia se não houver seja o que for de admiração: tem-se apenas tolerância ou piedade.

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O Mundo Só se Dá para os Simples

Minha gula pelo mundo: eu quis comer o mundo e a fome com que nasci pelo leite — esta fome quis se estender pelo mundo e o mundo não se queria comível. Ele se queria comível sim — mas para isso exigia que eu fosse comê-lo com a humildade com que ele se dava. Mas fome violenta é exigente e orgulhosa. E quando se vai com orgulho e exigência o mundo se transmuta em duro aos dentes e à alma. O mundo só se dá para os simples e eu fui comê-lo com o meu poder e já com esta cólera que hoje me resume. E quando o pão se virou em pedra e ouro aos meus dentes eu fingi por orgulho que não doía eu pensava que fingir força era o caminho nobre de um homem e o caminho da própria força. Eu pensava que a força é o material de que o mundo é feito e era com o mesmo material que eu iria a ele. E depois foi quando o amor pelo mundo me tomou: e isso já não era a fome pequena, era a fome ampliada. Era a grande alegria de viver — e eu pensava que esta sim,

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A Busca das Coisas

Só o combate nos apraz, mas não a vitória: gostamos de ver os combates de animais, não o vencedor a encarniçar-se sobre o vencido; que desejámos ver, senão o fim da vitória? E logo que ela é alcançada, ficamos saciados. Assim no jogo, assim na busca da verdade. Gostamos de ver, nas disputas, a luta de opiniões; mas não de contemplar a verdade encontrada: para a saudarmos gostosamente temos de vê-la nascer da disputa. Do mesmo modo, nas paixões, o que dá prazer é assistir ao combate de duas contrárias; mas quando uma delas domina, tudo se reduz a brutalidade. Nunca buscamos as coisas, mas sim a busca das coisas.

A Sociedade Destroça o Indivíduo

Trata-se dum conjunto, dum todo, a sociedade, e, podre, uma vez que é preciso contar com ela ao mesmo tempo que se não deve contar. Quer dizer, é como um conjunto estável, composto por elementos instáveis. Ora é impossível viver no interior, sem sofrer essa instabilidade, esse monte de mentiras. Surge então o medo de utilizar o mínimo pormenor que participe dessa instabilidade. É a revolta. Você duvida do valor das palavras, dos gestos, do que representam as palavras, das ideias, das simples associações de ideias, dos sonhos e até da realidade, das sensações mais claras, mais agudas. Você duvida mesmo da sua dúvida, da organização que toma, da forma que adopta. Não lhe fica nada, nada. Já não é nada, é um camaleão, um eco, uma sombra. Isso é obra da sociedade, compreende?

J.-M. G.

A Miséria do Divertimento

Se o homem fosse feliz, sê-lo-ia tanto mais quanto menos divertido, como os Santos e Deus. – Sim; mas não sendo feliz pode animar-se pelo divertimento? – Não; porque vem doutro sítio e de fora; e assim é dependente e, portanto, sujeito a ser perturbado por mil acidentes que tornam as aflições inevitáveis.
(…) A única coisa que nos consola das nossas misérias é o divertimento, e contudo é a maior das nossas misérias. Porque é isto que nos impede principalmente de pensar em nós, e que nos faz perder insensivelmente. Sem isso, estaríamos no tédio, e este tédio levava-nos a procurar um meio mais sólido de sair dele. Mas o divertimento distrai-nos e faz-nos chegar insensivelmente à morte.

Ages Impelido por Mil Coisas

Dizes-te livre e todos os dias ages impelido por mil coisas. Vês uma mulher e ama-la, morres de amor por ela; serás livre de acalmar esse sangue que pulsa, de serenar essa cabeça ardente, de refrear esse coração, de aplacar esses ardores que te devoram? Serás livre de pensar? Mil cadeias te retêm, mil aguilhões te impelem, mil entraves te fazem parar. Vês um homem pela primeira vez, há um dos seus traços que te choca, e durante a tua vida sentes aversão por esse homem, que talvez tivesses amado se tivesse o nariz mais pequeno. Tens mau estômago, e és brutal para com aquele que terias acolhido com benevolência. E de todos estes factos derivam, ou neles se encadeiam, também fatalmente, outras séries de factos, de que outros derivam por sua vez.

A Primeira Palavra que em Toda a Minha Vida me Esgotou o Ser

Uma palavra. Disse-a. Amo-te – uma palavra breve. Quantos milhões de palavras eu disse durante a vida. E ouvi. E pensei. Tudo se desfez. Palavras sem inteira significação em si, o professor devia ter razão. Palavras que remetiam umas para as outras e se encostavam umas às outras para se aguentarem na sua rede aérea de sons. Mas houve uma palavra – meu Deus. Uma palavra que eu disse e repercutiu em ti, palavra cheia, quente de sangue, palavra vinda das vísceras, da minha vida inteira, do universo que nela se conglomerava, palavra total. Todas as outras palavras estavam a mais e dispensavam-se e eram uma articulação ridícula de sons e mobilizavam apenas a parte mecânica de mim, a parte frágil e vã. Palavra absoluta no entendimento profundo do meu olhar no teu, palavra infinita como o verbo divino. Recordo-a agora – onde está? Como se desfez? Ou não desfez mas se alterou e resfriou e absorveu apenas a fracção de mim onde estava a ternura triste, o conforto humilde, a compaixão. Não haverá então uma palavra que perdure e me exprima todo para a vida inteira? E não deixe de mim um recanto oculto que não venha à sua chamada e vibre nela desde os mais finos filamentos de si?

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