Não se Ama Alguém Senão pelas Qualidades Aparentes
Um homem que se põe à janela para ver quem passa, se eu passar, poderei dizer que ele se pôs lá para me ver? Não, pois ele não pensa em mim em particular. Mas aquele que ama alguém por causa da sua beleza, ama-o? Não; porque a varíola, que matará a beleza sem matar a pessoa, fará com que ele deixe de a amar.
E se me adiam pelo meu juízo, pela minha memória, amam-me, a mim? Não; porque eu posso perder estas qualidades sem me perder a mim mesmo. Onde está pois este eu, se não está nem no corpo nem na alma? E como amar o corpo ou a alma, senão por essas qualidades que não são o que faz o eu, visto que podem perecer? Pois, amar-se-á a substância da alma de uma pessoa abstractamente e as qualidades que lá estiverem? Isso não pode ser e seria injusto. Logo não se ama nunca a pessoa, mas somente as qualidades. Portanto, que não se riam mais daqueles que se fazem honrar pelos cargos e ofícios, pois não se ama ninguém senão pelas qualidades aparentes.
Textos sobre Juízo
117 resultadosO Juízo no seu Ponto Natural
Como é difícil propor uma coisa ao juízo alheio, sem lhe corromper o juízo pela maneira de lha propor! Se se diz: acho-o belo, acho-o obscuro, ou outra coisa semelhante, arrasta-se a imaginação a este juízo, ou, pelo contrário, afastamo-la dele. Vale mais não dizer nada; e então ele julga conforme o que é, quer dizer, conforme o que é então e o que as outras circunstâncias de que não somos autores lhe tenham sugerido. Mas ao menos não teremos insinuado nada; a não ser que este silêncio também produza o seu efeito, conforme a volta e a interpretação que estiver de humor a dar-lhe, ou conforme o que conjecturar dos movimentos de expressão da cara ou do tom da voz, conforme for fisionomista: tão difícil é manter um juízo no seu ponto natural, ou antes, tão pouca firmeza e estabilidade há!
Ser Injusto é Necessário
Todos os juízos acerca do valor da vida se desenvolveram ilogicamente e são, por isso, injustos. A impureza do juízo encontra-se, em primeiro lugar, na maneira como o material se apresenta, isto é, muito incompleto; em segundo lugar, na maneira como é efectuada a respectiva soma; e, em terceiro lugar, no facto de cada um dos fragmentos do material ser, por seu lado, resultado de um conhecimento impuro e isto, na verdade, de forma absolutamente necessária. Nenhum conhecimento obtido pela experiência acerca, por exemplo, de uma pessoa, por muito perto que esta esteja de nós, pode ser completo, de modo que nós tenhamos um direito lógico a uma avaliação global da mesma. Todas as estimativas são precipitadas e têm de o ser.
No fim de contas, a medida, com a qual nós medimos, ou seja, o nosso ser, não é uma grandeza invariável; nós temos estados de espírito e oscilações, e, não obstante, deveríamos conhecer-nos a nós próprios como uma medida fixa para podermos avaliar justamente a relação de qualquer coisa connosco. Talvez se conclua de tudo isto que não se deveria julgar de todo em todo; mas se se pudesse sequer viver sem avaliar, sem ter antipatia nem simpatia!…
Narcisimo Passado e Futuro
Ninguém se trocaria por um dos seus semelhantes, mas todos se trocariam pelo seu sonho. Porque o homem quer conquistar, mas sem deixar de se possuir. Deseja a continuidade do eu e, juntamente, a sua metamorfose – pretensão contraditória que constitui um dos episódios do eterno automatismo.
O homem ama-se e desama-se. Diante dos outros, mostra-se quase sempre satisfeito consigo – com medo de ser ultrapassado ou emulado -, mas quando está só com o seu eu, experimenta um tédio, uma repulsa, uma repugnância, que em regra se transformam em desejo de transformação. Nem todos são capazes de se contemplar sem adulação até às últimas raízes e reconhecer, ainda que no sigilo da alma, a sua miséria, mas quase todos têm a sua sensação e, com frequência, a certeza – o tédio de si pode notar-se mesmo sem as formas do juízo. E os outros instintos – soberba, gula do mais e do novo – ajudam a desejar a mudança. Existe com frequência em nós o narcisismo, mas o espelho é sempre colocado no passado e no futuro – no presente, nunca.
Do Livre Arbítrio
A ideia de livre arbítrio, na minha opinião, tem o seu princípio na aplicação ao mundo moral da ideia primitiva e natural de liberdade física. Esta aplicação, esta analogia é inconsciente; e é também falsa. É, repito, um daqueles erros inconscientes que nós cometemos; um daqueles falsos raciocínios nos quais tantas vezes e tão naturalmente caímos. Schopenhauer mostrou que a primitiva noção de liberdade é a “ausência de obstáculos”, uma noção puramente física. E na nossa concepção humana de liberdade a noção persiste. Ninguém toma um idiota, ou louco por responsável. Porquê? Porque ele concebe uma coisa no cérebro como um obstáculo a um verdadeiro juízo.
A ideia de liberdade é uma ideia puramente metafísica.
A ideia primária é a ideia de responsabilidade que é somente a aplicação da ideia de causa, pela referência de um efeito à sua Causa. “Uma pessoa bate-me; eu bato àquela em defesa.” A primeira atingiu a segunda e matou-a. Eu vi tudo. Essa pessoa é a Causa da morte da outra.” Tudo isto é inteiramente verdade.
Assim se vê que a ideia de livre arbítrio não é de modo algum primitiva; essa responsabilidade, fundada numa legítima mas ignorante aplicação do princípio de Causalidade é a ideia realmente primitiva.
A Hipocrisia do Ser
Para que servem esses píncaros elevados da filosofia, em cima dos quais nenhum ser humano se pode colocar, e essas regras que excedem a nossa prática e as nossas forças? Vejo frequentes vezes proporem-nos modelos de vida que nem quem os propõe nem os seus auditores têm alguma esperança de seguir ou, o que é pior, desejo de o fazer. Da mesma folha de papel onde acabou de escrever uma sentença de condenação de um adultério, o juiz rasga um pedaço para enviar um bilhetinho amoroso à mulher de um colega. Aquela com quem acabais de ilicitamente dar uma cambalhota, pouco depois e na vossa própria presença, bradará contra uma similar transgressão de uma sua amiga com mais severidade que o faria Pórcia.
E há quem condene homens à morte por crimes que nem sequer considera transgressões. Quando jovem, vi um gentil-homem apresentar ao povo, com uma mão, versos de notável beleza e licenciosidade, e com outra, a mais belicosa reforma teológica de que o mundo, de há muito àquela parte, teve notícia.
Assim vão os homens. Deixa-se que as leis e os preceitos sigam o seu caminho: nós tomamos outro, não só por desregramento de costumes, mas também frequentemente por termos opiniões e juízos que lhes são contrários.
O Preço da Pressa
O castigo de ser feliz é o tempo passar depressa. O castigo de ser triste é o tempo não passar. A recompensa de não conseguir ser nem triste nem feliz, permanecendo indiferente, é o tempo passar devagar. Se todos os dias nascemos – os que temos a sorte de amar, mais a suspeita de sermos, talvez, amados – todos os dias morremos cedo de mais.
Se me perguntassem quanto tempo passei com a Maria João, nos últimos 15 anos, eu teria muitas dificuldades em não responder 15 dias ou até 15 minutos, por não saber mostrar e justificar até esse pouco tempo que passámos.
Ainda ontem acordámos às oito da manhã. Mas, às sete da tarde, apesar de termos passado o dia juntos, pareceu-nos que nos tinham roubado o dia inteiro; que tínhamos acabado de nos conhecermos.
Passo do amor à política, por amor ao meu país. A despedida do conhecido e comprovado José Sócrates deveria ter sido tão generosamente saudada como foi recebida a vitória do simpático mas inexperiente Passos Coelho.
O tempo, a ocasião e a sorte parecem ser coisas parecidas – mas são coisas muito diferentes. O ponto de vista,
Subtilezas Enganadoras
Há subtilezas frívolas por meio das quais, algumas vezes, os homens procuram alcançar reputação: é o caso dos poetas que fazem inteiras obras começando cada verso por uma letra. Similarmente vemos ovos, bolas, asas e machados formados por poetas gregos da Antiguidade com a medida dos seus versos, ora alongados ora encurtados de maneira a virem a representar esta ou aquela figura.
(…) É um maravilhoso testemunho da fraqueza do nosso juízo que ele dê preço às coisas pela raridade ou pela novidade, ou ainda pela dificuldade, quando a estas não se juntam a bondade e a utilidade.
A Diferença entre Ficção e Crença
Não há nada mais livre do que a imaginação humana; embora não possa ultrapassar o stock primitivo de ideias fornecidas pelos sentidos externos e internos, ela tem poder ilimitado para misturar, combinar, separar e dividir estas ideias em todas as variedades da ficção e da fantasia imaginativa e novelesca. Ela pode inventar uma série de eventos com toda a aparência de realidade, pode atribuir-lhes um tempo e um lugar particulares, concebê-los como existentes e descrevê-los com todos os pormenores que correspondem a um facto histórico, no qual ela acredita com a máxima certeza. Em que consiste, pois, a diferença entre tal ficção e a crença?
Ela não se localiza simplesmente numa ideia particular anexada a uma concepção que obtém o nosso assentimento, e que não se encontra em nenhuma ficção conhecida. Pois, como o espírito tem autoridade sobre todas as suas ideias, poderia voluntariamente anexar esta ideia particular a uma ficção e, por conseguinte, seria capaz de acreditar no que lhe agradasse, embora se opondo a tudo que encontramos na experiência diária. Podemos, quando pensamos, juntar a cabeça de um homem ao corpo de um cavalo, mas não está em nosso poder acreditar que semelhante animal tenha alguma vez existido.
Regras para a Conversação
– Da minha parte, disse Amithone, confesso que gostaria muito que existissem regras para a conversação, assim como há para muitas outras coisas. – A regra principal, retomou Valérie, é jamais dizer alguma coisa que fira o juízo. – Mas ainda, acrescentou Nicanor, desejaria saber mais precisamente como vós concebeis que deva ser a conversação. – Concebo, retomou ela, que no falar em geral, ela deva versar com mais frequência sobre coisas comuns e galantes do que sobre grandes coisas.
Mas concebo, entretanto, que não há nada que não possa caber ali; que ela deve ser livre e diversificada, segundo os momentos, os lugares, e as pessoas com quem se está; e que o segredo é falar sempre nobremente das coisas baixas, e bastante simplesmente das coisas elevadas, e muito galantemente das coisas galantes, sem ansiedade, e sem afectação. Assim, embora a conversação deva ser sempre igualmente natural e ponderada, não deixo de dizer que há ocasiões nas quais mesmo as ciências podem entrar de bom grado ali e nas quais os agradáveis desatinos também podem encontrar o seu lugar, contanto que sejam engenhosos, modestos e galantes. De modo que, para falar ponderadamente, pode-se assegurar, sem mentira, que não há nada que não se possa dizer na conversação,
Da Conversa
Há quem, na conversa, prefira mostrar espírito brilhante, e ser capaz de sustentar todos os argumentos, a exercer o juízo no discernimento da verdade, como se houvesse maior mérito em saber o que pode ser dito, do que em conhecer o que deve ser pensado, alguns têm certos lugares comuns e certos temas em que se mostram bons conversadores, mas são falhos na variedade; esta espécie de indigência é quase sempre aborrecida, e de vez em quando ridícula; a parte mais honrosa do colóquio consiste em dar ocasião a novo tema, e também em moderar ou acelerar a transição para assunto diferente; é bom variar, mesclando o assunto de que se está a conversar com argumentos, narrativas com discussões, perguntas com respostas, jocosidades com seriedades; há, porém, assuntos que não permitem brincadeira, nomeadamente a religião, os negócios do Estado, as altas personalidades, todas as questões de importância para as pessoas presentes, enfim, todos os casos dignos de dó.
Aquele que muito interrogar muito aprenderá também, muito contentará também, especialmente se adaptar as suas perguntas aos conhecimentos daqueles que lhe podem responder, pois assim lhes dará ocasião de se comprazerem a falar, e ele próprio continuará a ganhar conhecimentos; se por vezes fingirdes ignorar o que consta que sabeis,
Visitar e Ser Visitado
Parece-me quase natural o facto de vermos muitos defeitos nas nossas visitas e de fazermos juízos pouco agradáveis mal elas saem. Porque temos, digamos assim, o direito de as avaliar segundo os nossos padrões e, em tais situações, mesmo as pessoas compreensivas e moderadas dificilmente se abstêm de fazer uma crítica rigorosa.
Pelo contrário, quando se foi a casa de alguém e se viu essa pessoa no seu ambiente, no meio daquilo que lhe é habitual, numa situação que não pode ser outra, quando se viu como essas circunstâncias influem na pessoa ou como ela se lhes adapta, só por má vontade ou por manifesta incompreensão se pode ridicularizar aquilo que, enquanto lá estávamos, não pôde deixar de nos parecer, por mais que uma razão, digno de ser respeitado.
Entendimento Influenciado pela Vontade
Na ciência de julgar, alguma vez é desculpável o erro do entendimento, o da vontade nunca; como se o entender mal não fosse crime, erro sim; ou como se houvesse uma grande diferença entre o erro, e o crime: o entendimento pode errar, porém só a vontade pode delinquir. Assim se desculpam comummente os julgadores, mas é porque não vêem, que o que dizem que procedeu do entendimento, se bem se ponderar, procedeu unicamente da vontade. É um parto suposto, cuja origem, não é aquela que se dá. Querem os sábios enobrecer o erro, com o fazer vir do entendimento, e com lhe encobrir o vício que trouxe da vontade; mas quem é que deixa de ver, que o nosso entendimento quási sempre se sujeita ao que nós queremos; e que o seu maior empenho, é servir à nossa inclinação; por isso raras vezes se opõe, e o mais em que se ocupa, é em conformar-se de tal sorte ao nosso gosto, que ainda a nós mesmos fique parecendo, que foi resolução do entendimento aquilo que não foi senão acto da vontade.
O entendimento é a parte que temos em nós mais lisonjeira; daqui vem que nem sempre segue a razão,
Não te Deixes Ludibriar pela Opinião
Considera que não são as acções dos outros que nos perturbam, pois que pertencem ao domínio das suas vontades, mas a opinião que sobre ela formamos. Suprime-a, pois: trata de anular o juízo que te deixa indignado e a tua cólera se desvanecerá. Como suprimi-la? Meditando em que não há nisso nada de vergonhoso para ti, porquanto se houvesse outra coisa, além do mal moral, que fosse vergonhosa, tu também cometerias necessariamente muitas faltas; tu te tornarias um bandido, de qualquer maneira.
Acredita no Teu Próprio Pensamento
Acredita no teu próprio pensamento; crer que o que é certo para ti, no teu coração, o é também para todos os homens – isso é o génio. Expressa a tua convicção latente e ela será o juízo universal; pois sempre o mais íntimo se converte no mais externo, e o nosso primeiro pensamento é-nos devolvido pelas trombetas do Juízo Final. A voz da mente é familiar a cada um; o maior mérito que atribuímos a Moisés, Platão e Milton é o de terem reduzido a nada livros e tradições, e dito o que pensavam eles próprios, não o que pensavam os homens. Um homem deveria aprender a distinguir e contemplar esse raio de luz que brilha através da sua mente, vindo do interior, melhor do que o brilho do firmamento de bardos e sábios. E, no entanto, expulsa o seu pensamento, sem lhe dar importância, apenas porque é o seu.
Em toda a obra de génio, reconhecemos os nossos próprios pensamentos rejeitados; são-nos devolvidos com uma certa majestade alienada. As grandes obras de arte não nos oferecem lição mais impressionante do que essa. Elas ensinam-nos a aceitar, com bem humorada inflexibilidade, as nossas impressões espontâneas, especialmente quando todo o clamor das vozes esteja do lado oposto.
Aprender a Ver
Aprender a ver – habituar os olhos à calma, à paciência, ao deixar-que-as-coisas-se-aproximem-de-nós; aprender a adiar o juízo, a rodear e a abarcar o caso particular a partir de todos os lados. Este é o primeiro ensino preliminar para o espírito: não reagir imediatamente a um estímulo, mas sim controlar os instintos que põem obstáculos, que isolam. Aprender a ver, tal como eu o entendo, é já quase o que o modo afilosófico de falar denomina vontade forte: o essencial nisto é, precisamente, o poder não «querer», o poder diferir a decisão. Toda a não-espiritualidade, toda a vulgaridade descansa na incapacidade de opor resistência a um estímulo — tem que se reagir, seguem-se todos os impulsos. Em muitos casos esse ter que é já doença, decadência, sintoma de esgotamento, — quase tudo o que a rudeza afilosófica designa com o nome de «vício» é apenas essa incapacidade fisiológica de não reagir. — Uma aplicação prática do ter-aprendido-a-ver: enquanto discente em geral, chegar-se-á a ser lento, desconfiado, teimoso. Ao estranho, ao novo de qualquer espécie deixar-se-o-á aproximar-se com uma tranquilidade hostil, — afasta-se dele a mão. O ter abertas todas as portas, o servil abrir a boca perante todo o facto pequeno,
A Necessidade de Juízos de Valor
Qualquer que seja a sua situação, um homem tem necessidade de juízos de valor, mercê dos quais justifica – aos seus próprios olhos, e sobretudo aos dos que o cercam – os seus actos, as suas intenções e os seus estados; melhor dizendo: a maneira de se glorificar a si próprio.
Toda a moral natural exprime a satisfação que uma certa espécie de homens experimenta. Mas, tendo nós necessidade de elogios, também a temos de uma tábua concordante de valores, na qual os nossos actos mais fáceis figurem como os que exprimem a nossa verdadeira força e sejam os de mais elevada estima. É naquilo em que somos mais fortes que queremos ser vistos e honrados.
Todas as Nossas Paixões se Justificam a Si Próprias
Existem duas ocasiões distintas em que examinamos a nossa própria conduta e buscamos vê-la sob a luz em que o espectador imparcial a veria: primeiro, quando estamos prestes a agir; e, segundo, depois que agimos. Em ambos os casos os nossos juízos tendem a ser bastante parciais, mas eles tendem a tornar-se ainda mais parciais quando seria da maior importância que não fossem. Quando estamos prestes a agir, a veemência da paixão raramente nos permitirá considerá-la com a isenção de uma pessoa neutra. As violentas emoções que nesse momento nos agitam distorcem os nossos juízos sobre as coisas, mesmo quando buscamos colocar-nos na situação de outra pessoa. (…) Por essa razão, como diz Malebranche, todas as nossas paixões se justificam a si próprias, e parecem razoáveis e proporcionais aos seus objectos enquanto nós estivermos a senti-las. (… ) A opinião que cultivamos do nosso próprio carácter depende inteiramente dos nossos juízos acerca da nossa conduta passada. Mas é tão desagradável pensarmos mal de nós mesmos que amiúde afastamos propositadamente o nosso olhar das circunstâncias que poderiam tornar o julgamento desfavorável. (…) Esse auto-engano, essa fraqueza fatal dos homens, é a fonte de metade das desordens da vida humana. Se pudéssemos ver-nos como os outros nos vêem,
O Que é a Religião ?
De início, portanto, em vez de perguntar o que é religião, eu preferiria indagar o que caracteriza as aspirações de uma pessoa que me dá a impressão de ser religiosa: uma pessoa religiosamente esclarecida parece-me ser aquela que, tanto quanto lhe foi possível, libertou-se dos grilhões, dos seus desejos egoístas e está preocupada com pensamentos, sentimentos e aspirações a que se apega em razão do seu valor suprapessoal. Parece-me que o que importa é a força desse conteúdo suprapessoal, e a profundidade da convicção na superioridade do seu significado, quer se faça ou não alguma tentativa de unir esse conteúdo com um Ser divino, pois, de outro modo, não poderíamos considerar Buda e Espinoza como personalidades religiosas. Assim, uma pessoa religiosa é devota no sentido de não ter nenhuma dúvida quanto ao valor e eminência dos objectivos e metas suprapessoais que não exigem nem admitem fundamentação racional. Eles existem, tão necessária e corriqueiramente quanto ela própria.
Nesse sentido, a religião é o antiquíssimo esforço da humanidade para atingir uma clara e completa consciência desses valores e metas e reforçar e ampliar incessantemente o seu efeito. Quando concebemos a religião e a ciência segundo estas definições, um conflito entre elas parece impossível.
A Maldade como Poderoso Elemento do Progresso Humano
Os sentimentos fixos e de forma constante qualificados de paixões constituem, também, possantes factores de opiniões, de crenças e, por conseguinte, de conduta. Certas paixões contagiosas tornam-se, por esse motivo, facilmente colectivas. A sua acção é, então, irresistível. Elas precipitaram muitos povos uns contra os outros nas diversas fases da história. As paixões podem excitar a nossa actividade, porém, alteram, as mais das vezes, a justeza das opiniões, impedindo de ver as coisas como realmente são e de compreender a sua génese. Se nos livros de história são abundantes os erros, é porque, na maior parte dos casos, as paixões ditam a sua narrativa. Não se citaria, penso eu, um historiador que haja relatado imparcialmente a Revolução.
O papel das paixões é, como vemos, muito considerável nas nossas opiniões e, por conseguinte, na génese dos acontecimentos. Não são, infelizmente, as mais recomendáveis que têm exercido maior acção. Kant reconheceu a grande força social das piores paixões. A maldade é, no seu juízo, um poderoso elemento do progresso humano. Parece, infelizmente, muito certo que, se os homens tivessem seguido o preceito do Evangelho “Amai-vos uns aos outros”, ao invés de obedecerem ao da Natureza, que os incita a se destruírem mutuamente,