Memória vs Recordação – As Armas da Juventude e da Velhice
Recordar-se não é o mesmo que lembrar-se; não são de maneira nenhuma idênticos. A gente pode muito bem lembrar-se de um evento, rememorá-lo com todos os pormenores, sem por isso dele ter a recordação. A memória não é mais do que uma condição transitória da recordação: ela permite ao vivido que se apresente para consagrar a recordação. Esta distinção torna-se manifesta ao exame das diversas idades da vida. O velho perde a memória, que geralmente é de todas as faculdades a primeira a desaparecer. No entanto, o velho tem algo de poeta; a imaginação popular vê no velho um profeta, animado pelo espírito divino. Mas a recordação é a sua melhor força, a consolação que os sustenta, porque lhe dá a visão distante, a visão de poeta. Ao invés, o moço possui a memória em alto grau, usa dela com facilidade, mas falta-lhe o mínimo dom de se recordar. Em vez de dizer: «aprendido na mocidade, conservado na velhice», poderíamos propor: «memória na mocidade, recordação na velhice». Os óculos dos velhos são graduados para ver ao perto; mas o moço que tem de usar óculos, usa-os para ver ao longe; porque lhe falta o poder da recordação, que tem por efeito afastar,
Textos sobre Língua
67 resultadosO Casamento é a Mais Rica Aventura Humana
Meu caro leitor!
Se não tens tempo nem oportunidade para consagrar uma dezena de anos da tua vida a uma viagem em volta do mundo para observar tudo o que um circunavegador pode aprender; se te falta, por não teres estudado por muito tempo as línguas estrangeiras, os dons e os meios de te iniciar nas mentalidades diversas dos povos que se revelam aos cientistas; se não pensas em descobrir um novo sistema astronómico que suprima o de Copérnico, bem como o de Ptolomeu – então, casa-te; e mesmo que tenhas tempo para viajar, dons para os estudos e a esperança de fazer descobertas, casa-te do mesmo modo. Tu não te arrependerás, ainda que isso te impeça de conheceres todo o Globo terrestre, de te exprimires em muitas línguas e de compreenderes o espaço celeste; pois o casamento é e continuará a ser a viagem da descoberta mais importante que o homem pode empreender; qualquer outro conhecimento da vida, comparado ao de um homem casado, é superficial, pois ele e só ele penetrou verdadeiramente na existência.
A Devida Educação
Das coisas que mais custa ver é uma pessoa inteligente e criativa, quando nos está a contar uma opinião ou um acontecimento, ser diminuída pela falta de vocabulário – ou de outra coisa facilmente aprendida pela educação.
A distribuição humana de inteligência, graça, sensibilidade, sentido de humor, originalidade de pensamento e capacidade de expressão é independente da educação ou do grau de instrução. Em Portugal e, ainda mais, no mundo, onde as oportunidades de educação são muito mais desiguais, logo injustamente, distribuídas, é não só uma tragédia como um roubo.
Rouba-se mais aos que não falam nem escrevem com os meios técnicos de que precisam. Mas também são roubados aqueles, adequadamente educados, que não podem ouvir ou ler os milhões de pessoas que só não conseguem dizer plenamente o que querem, porque não têm as ferramentas que têm as pessoas mais novas, com mais sorte.
Mete nojo a ideia de a educação ser uma coisa que se dá. Que o Estado ou o patrão oferece. Não é assim. A educação, de Platão para a frente, é mais uma coisa que se tira. Não educar é negativamente positivo: é como vendar os olhos ou cortar a língua.
O meu pai,
O Talento na Juventude e na Velhice
Nada menos exacto do que supor que o talento constitui privilégio da mocidade. Não. Nem da mocidade, nem da velhice. Não se é talentoso por se ser moço, nem genial por se ser velho. A certidão de idade não confere superioridade de espírito a ninguém. Nunca compreendi a hostilidade tradicional entre velhos e moços (que aliás enche a história das literaturas); e não percebo a razão por que os homens se lançam tantas vezes recíprocamente em rosto, como um agravo, a sua velhice ou a sua juventude.
Ser idoso não quer dizer que se seja necessáriamente intolerante e retrógado; e engana-se quem supuser que a mocidade, por si só, constitui garantia de progresso ou de renovação mental. As grandes descobertas que ilustram a história da ciência e contribuiram para o progresso humano são, em geral, obra dos velhos sábios; e a mocidade literária, negando embora sistemáticamente o passado, é nele que se inspira, até que o escritor adquire (quando adquire) personalidade própria.
(…) A mocidade, em geral, não cria; utiliza, transformando-o, o legado que recebeu. Juventude e velhice não se opõem; completam-se na harmonia universal dos seres e das coisas. A vida não é só o entusiasmo dos moços;
A Religião e o Jornalismo São as Únicas Forças Verdadeiras
Todas as artes são uma futilidade perante a literatura. As artes que se dirigem à visualidade, além de serem únicos os seus produtos, e perecíveis, podendo portanto, de um momento para o outro, deixar de existir, não existem senão para criar ambiente agradável, para distrair ou entreter — exactamente como as artes de representar, de cantar, de dançar, que todos reconhecem como sendo inferiores em relação às outras. A própria música não existe senão enquanto executada, participando portanto da futilidade das artes de representação. Tem a vantagem de durar, em partituras; mas essa não é como a dos livros, ou coisas escritas, cuja valia está em que são partituras acessíveis a todos os que sabem ler, existindo ali para a interpretação imediata de quem lê, e não para a interpretação do executante, transmitida depois ao ouvinte.
As literaturas, porém, são escritas em línguas diferentes, e, como não há possibilidades de haver uma língua universal, nem, se vier a havê-la, será o grego antigo, onde tantas obras de arte se escreveram, ou o latim, ou o inglês ou outra qualquer, e se for uma delas não será as outras, segue que a literatura, sendo escrita para a posteridade, não a atinge senão,
Estranheza e Novidade
A novidade, em si mesma, nada significa, se não houver nela uma relação com o que a precedeu. Nem, propriamente, há novidade sem que haja essa relação. Saibamos distinguir o novo do estranho – o que, conhecendo o conhecido, o transforma e varia, e o que aparece de fora, sem conhecimento de coisa nenhuma. Entre os escritores que descendem com novidade da velha estirpe e os que aparecem por novos por pertencer a uma estirpe incógnita há a mesma diferença que há entre o homem que nos dá uma sensação de novidade por frases novas que diz e o que nos dá uma sensação de novidade, por, falando mal nossa língua, nos dizer estropiadamente qualquer frase dela.
Não amemos de palavras nem de língua, mas por acções e em verdade
Não amemos de palavras nem de língua, mas por acções e em verdade.
Aprende a Ser como os Outros
Não precisamos de ler, estudar ou conhecer ninguém, quando produzimos nós próprios. Pois não basta que produzamos nós próprios? E gostemos de nós próprios? Que nos pode dar o espírito alheio, quando sobre o próprio nosso desceu em línguas de fogo a sabedoria de tudo? Melhor: A verdade é que nem precisamos nós próprios de produzir (toda a produção é uma limitação), ou mal precisamos de produzir, para usufruirmos as vantagens do criador e produtor. (…) Aprende a contar uma anedota; duas anedotas; três anedotas; quatro anedotas… uma anedota diverte muita gente; quatro anedotas divertem muito mais… aprende a polvilhar de blague todas essas ideias sérias, pesadas, profundas, obscuras, – ao cabo simplesmente maçadoras – com que pretendes sufocar (…); aprende a cultivar aquele subtil espírito de futilidade que ligeiramente embriaga como um champanhe, e a toda a gente agrada, lisonjeia todos, por a todos nos dar a reconfortante impressão de pertencermos ao mesmo meio… estarmos ao mesmo nível; não queiras ser nem sobretudo sejas mais inteligente ou mais sensível, mais honesto ou mais sincero, mais trabalhador ou mais culto, mais profundo ou mais agudo… numa palavra: superior. Sim, homem! aprende a ser como os outros, dizendo bem ou mal de tudo e todos –
Ser Turista é Fugir da Responsabilidade
Ser turista é fugir da responsabilidade. Os erros e os defeitos não se colam em nós como em casa. Somos capazes de vaguear por continentes e línguas, suspendendo a actividade do pensamento lógico. O turismo é a marcha da imbecilidade. Contam que sejamos imbecis. Todo o mecanismo do país hospedeiro está adaptado aos viajantes que se comportam de um modo imbecil. Andamos às voltas, aturdidos, olhando de esguelha para mapas desdobrados. Não sabemos falar com as pessoas, ir a lado nenhum, quanto vale o dinheiro, que horas são, o que comer ou como o comer. Ser-se imbecil é o padrão, o nível e a norma. Podemos continuar a viver nestas condições durante semanas e meses, sem censuras nem consequências terríveis. Tal como a outros milhares, são-nos concedidas imunidades e amplas liberdades. Somos um exército de loucos, usando roupas de poliester de cores vivas, montando camelos, tirando fotografias uns aos outros, fatigados, desintéricos, sedentos. Não temos mais nada em que pensar senão no próximo acontecimento informe.
As línguas dos bajuladores são mais macias do que seda na nossa presença, mas são como punhais na nossa ausência.
Quanto mais profunda é a tristeza, menos língua tem.
Há dois géneros de inimigos: os que perseguem e os que adulam
Há dois géneros de inimigos: os que perseguem e os que adulam. Mas é mais para temer a língua do lisonjeiro do que as mãos do perseguidor.
A Moda
As variações da sensibilidade sob a influência das modificações do meio, das necessidades, das preocupações, etc., criam um espírito público que varia de uma geração para outra e mesmo muitas vezes no espaço de uma geração. Esse espírito publico, rapidamente dilatado por contacto mental, determina o que se chama a moda. Ela é um possante factor de propagação da maior parte dos elementos da vida social, das nossas opiniões e das nossas crenças.
Não é só o vestuário que se submete às suas vontades. O teatro, a literatura, a política, a arte, as próprias idéias científicas lhe obedecem, e é por isso que certas obras apresentam um fundo de semelhança que permite falar do estilo de uma época.
Em virtude da sua acção inconsciente, submetemo-nos à moda sem que o percebamos. Os espíritos mais independentes a ela não se podem subtrair. São muito raros os artistas, os escritores que ousam produzir uma obra muito diferente das ideias do dia.
A influência da moda é tão pujante que ela obriga-nos, por vezes, a admirar coisas sem interesse e que parecerão mesmo de uma fealdade extrema, alguns anos mais tarde. O que nos impressiona numa obra de arte é muito raramente a obra em si mesma,
É natural que no exercício do magistério a língua se confunda quando ensina uma coisa que
É natural que no exercício do magistério a língua se confunda quando ensina uma coisa que não aprendeu.
O Outro como Motivo da nossa Infelicidade
Pergunta-se por que todos os homens juntos não compõem uma única nação e não quiseram falar uma única língua, viver sob as mesmas leis, combinar entre eles os mesmos costumes e um mesmo culto; e eu, pensando na contrariedade dos espíritos, dos gostos e dos sentimentos, surpreendo-me ao ver até sete ou oito pessoas reunirem-se sob um mesmo tecto, num mesmo recinto e compor uma única família.
(…) Buscamos a nossa felicidade fora de nós mesmos e na opinião de homens que sabemos aduladores, pouco sinceros, sem equidade, cheios de inveja, de caprichos e preconceitos.
Da Duração das Obras
Algumas obras morrem porque nada valem; estas, por morrerem logo, são natimortas. Outras têm o dia breve que lhes confere a sua expressão de um estado de espírito passageiro ou de uma moda da sociedade; morrem na infância. Outras, de maior escopo, coexistem com uma época inteira do país, em cuja língua foram escritas, e, passada essa época, elas também passam; morrem na puberdade da fama e não alcançam mais do que a adolescência na vida perene da glória. Outras ainda, como exprimem coisas fundamentais da mentalidade do seu país, ou da civilização, a que ele pertence, duram tanto quanto dura aquela civilização; essas alcançam a idade adulta da glória universal. Mas outras duram além da civilização, cujos sentimentos expressam. Essas atingem aquela maturidade de vida que é tão mortal como os Deuses, que começam mas não acabam, como acontece com o Tempo; e estão sujeitas apenas ao mistério final que o Destino encobre para todo o sempre (…)
Suporte Real para a Emoção
Um fidalgo dos nossos, extremamente sujeito à gota, sendo pressionado pelos médicos a abandonar totalmente o uso das carnes salgadas, acostumara-se a responder muito espirituosamente que desejava ter o que culpar pelos ataques e tormentos do mal e que vituperando e maldizendo ora o salsichão, ora a língua de boi e o presunto, sentia-se proporcionalmente aliviado. Mas, seriamente, assim como o braço que é erguido para bater nos dói se o golpe falhar e ele for ao vento; e assim como para tornar agradável uma vista é preciso que ela não esteja perdida e isolada no vazio do ar, mas tenha uma proeminência para apoiá-la a razoável distância,
Assim como o vento, se espessas florestas não lhe opõem resistência, perde as forças e se dissipa no espaço vazio… (Lucano)
Da mesma forma parece que a alma estimulada e posta em movimento se perde em si mesma se não lhe dermos uma presa: é preciso sempre fornecer-lhe um objecto sobre o qual ela se lance e actue.
Diz Plutarco, a propósito dos que se afeiçoam a macacos e cachorrinhos, que a parte amorosa que existe em nós, na falta de um alvo legítimo, em vez de ficar inútil forja assim para si um alvo falso e fútil.
Depravação e Génio
Uma vez que a maior parte das pessoas encara a santidade como qualquer coisa insulsa e conforme a uma pureza legal, é provável que a depravação represente uma maneira do génio dos sentidos, quer dizer, de desvio até ao extremo de uma vertente descida em liberdade e exterior às regras. Disto resulta que o génio, tal como é aceite, ou antes, tal como é tolerado, constitua uma depravação espiritual análoga a uma depravação dos sentidos. Muitas vezes uma arrasta a outra, e é raro um génio das letras, da escultura ou da pintura não se denunciar e, mesmo que lá não meta a sua carne, fazer prova de uma liberdade de ver, sentir e admirar que ultrapassa os limites consentidos.
(…) Acontece que nos interrogamos com estupefacção sobre as inúmeras depravações de bairro limítrofe que a polícia e os hospitais testemunham. Só poderemos ver nelas o meandro onde os medíocres se perdem quando decidem deixar-se arrastar e sair das regras que lhes foram destinadas.
Traduzam-se estas depravações noutra língua, dê-se-lhes elevação, transcendência, sejam elas revestidas de inteligência, e obter-se-à uma imagem em ponto pequeno das altas depravações que as obras-primas da arte nos valem.
Tal como Picasso apanha o que encontra no lixo e o eleva à dignidade de servir,
A Alma e o Génio
O que faz de um homem um homem de génio – ou melhor o que eles fazem – não são as ideias novas mas essa ideia, que nunca os larga, que o que já foi dito não o foi nunca suficientemente.
(…) O que tortura a minha alma é a sua solidão. Quanto mais ela se dispersa pelos amigos e os prazeres comezinhos, mais esta me foge e se esconde na sua fortaleza. A novidade encontra-se no espírito que cria e não na nautreza reproduzida.Tu que sabes que o novo existe sempre, mostra-o aos outros – no que eles nunca souberam ver. Faz-lhes compreender que nunca tinham ouvido falar do rouxinol, do espectáculo do mar imenso ou de tudo aquilo que os seus grosseiros órgãos só se encontram em condições de desfrutar depois de se ter tido o trabalho de sentir por eles.
E não faças da língua um empecilho, porque se cuidares da tua alma ela arranjará forma de se dar a entender. Criará uma nova linguagem que valerá os hemistíquios deste ou a prosa daquele. O quê?, diz-me que se considera uma pessoa original e fica insensível à leitura de Byron ou de Dante?
O Paradoxo da Liberdade
É porque eu sou a minha voz, é porque ela existe minha no instante em que a estou erguendo, que me escapa a sua intelecção. E todo o equívoco do problema da liberdade está aí. Porque a liberdade experimenta-se e nada a pode demonstrar. Demonstrá-la exigiria que estivéssemos fora de nós, porque na própria demonstração estamos sendo o homem livre cuja liberdade desejávamos provar. Assim essa tentativa, como disse, é tão absurda como pretender a intelecção de uma língua fora de uma qualquer língua. Porque enquanto entendo uma língua, estou sendo aquela língua dentro da qual estou entendendo a outra. Quanto estou tentando entender a minha liberdade estou sendo quem sou na intelecção disso que sou. Eis-nos pois remetidos para o limiar de nós próprios, para o absoluto da escolha antes da escolha, para a identidade incompreensível entre o ser que é o nosso e a escolha desse ser.
Que tem que fazer aqui a razão? Somos livres, como sabemos na consciente vivência do acto de ser consciente. Somos livres, como o sabemos da possibilidade de se ser e de se saber que se é, da infinita e infinitesimal diferença entre mim e mim, entre ser-se o que se é e o saber-se que se é esse ser,