Textos Longos de Pedro Chagas Freitas

19 resultados
Textos longos de Pedro Chagas Freitas. Leia e compartilhe textos de Pedro Chagas Freitas em Poetris.

A Mulher Inteligente

Sou doente pela mulher inteligente.

Sou fanático pela mulher inteligente. Sou viciado na inteligência da mulher inteligente. Preciso dela, exijo-a a toda a hora, persigo-a como um cão com fome persegue o osso. Sou obcecado pela mulher inteligente. A mulher inteligente é a criação suprema de Deus. A mulher inteligente é o próprio Deus. A mulher inteligente, suspeito, deve ser mesmo uma forma superior do próprio Deus. Até Deus tem inveja da mulher inteligente. Meu Deus.

A mulher inteligente despreza o que a mulher não-inteligente ama.

A mulher inteligente não quer saber da conta bancária, não quer saber da marca do carro, da maquilhagem na cara. A mulher inteligente veste Prada a cada vez que fala, a cada vez que pensa. A mulher inteligente faz do que é um estilo, do que defende uma lei, do que parece uma moda. A mulher inteligente faz do tesão um estado de alma. A mulher inteligente dá-me tesão. Mmmm.

Partilhar a vida com uma mulher inteligente é a única forma de partilha possível.
Só com ela consigo partilhar, só a ela consigo dizer tudo o que sinto, tudo o que sou. Só ela saberá como eu sei – e depois de pensar um pouco saberá muito melhor do que eu sei – aquilo que eu quero dizer com aquilo que eu estou a dizer.

Continue lendo…

A Lamechalândia

Acabo de perceber que estou a escrever mais uma obra lamechas, vivo na Lamechalândia desde que te conheço, e é bom que dói, tão bom que só escrevo só ela, a lamechice é boa mas nunca sozinha, exige que aqui e ali surja o lado negro, a lua existe para valorizar o sol, e o contrário também é verdadeiro, não percebo patavina de astronomia mas de amor percebo, que é o mesmo que dizer que percebo de ti, tento, vá, às vezes consigo,
a Lamechalândia não é só lamechice, não é só cor de rosa, Deus me livre de ser assim, adormecia antes de viver, a Lamechalândia é a capacidade de ser lamechas quando é preciso ser lamechas, quando ser lamechas tem de ser, agora que estamos aqui deitados nesta cama tem de ser, abraço-te a cada letra que escrevo, procuro com as minhas mãos cada centímetro da tua pele sempre que me lembro de que somos assim, ser lamechas é conseguir não pensar em como se vai amar, não pensar no que se vai dizer, olhar o outro e dizer-lhe “procuro-te como se procurasse sobreviver”, e isto não tem nada de mal, a falta de um orgasmo provoca mais conflitos do que a falta de um pão,

Continue lendo…

Intragável é Estar Parado

Intragável é estar parado. Não mudar. Aguentar. Sobreviver. Permanecer. Mesmo que seja pouco, mesmo que seja insuficiente. Manter tudo como está apenas para não correr o risco de ficar pior. Intragável é não perdoar, não ilibar. E só criticar, só apontar, só atacar. E não criar, não refazer, não imaginar. Intragável é não acreditar. Intragável é o que não é maravilhoso, o que não é delicioso, o que não é fantástico, monumental, abençoado, miraculoso, espantoso. Intragável é acordar para o dia a recusar o dia, a não querer o dia, a não apetecer o dia, a não pensar nas mil e uma maneiras de o tornar inesquecível. Deixar estar. Não mexer, não querer a ferida se for através da ferida que se chega à cura. Ser cauteloso, prevenido. Intragável é o que não é exagerado, o que não é desproporcionado, o que não parece incomportável. Se não parece incomportável, é insuportável. Não quero. Não admito. Não me admito. Intragável é repetir. Hoje como réplica exacta de ontem e como réplica exacta de amanhã. As mesmas coisas, as mesmas palavras, os mesmos actos, os mesmos movimentos. Sempre igual. Sempre o mesmo. Intragável é continuar por continuar, andar por andar, viver por viver.

Continue lendo…

A Subfelicidade

O que mais dói não é – desengana-te – a infelicidade. A infelicidade dói. Magoa. Martiriza. É intensa; faz gritar, sofrer, saltar, chorar. Mas a infelicidade não é o que mais dói. A infelicidade é infeliz – mas não é o que mais dói.

O que mais dói é a subfelicidade. A felicidade mais ou menos, a felicidade que não se faz felicidade, que fica sempre a meio de se ser. A quase felicidade. A subfelicidade não magoa – vai magoando; a subfelicidade não martiriza – vai martirizando. Não é intensa – mas é imensa; faz gritar, sofrer, saltar, chorar – mas em silêncio, em surdina, em anonimato. Como se não fosse. Mas é: a subfelicidade é. A subfelicidade faz-te ficar refém do que tens – mas nem assim te impede de te sentires apeado do que não tens e gostarias de ter. Do que está ali, sempre ali, sempre à mão de semear – e que, mesmo assim, nunca consegues tocar. A subfelicidade é o piso -1 da felicidade. E não há elevador algum que te leve a subir de piso. Tens de ser tu a pegar nas tuas perninhas e a subir as escadas. Anda daí.

Continue lendo…

Os Ses Importantes da Vida

Hoje escrevo-te sobre os ses importantes da vida. Agarra-te bem a eles, e depois, quando te sentires assustada em algum momento, volta a agarrar-te a eles. Vais ver que nunca te vai faltar nada. Prometo.

Se amares com toda a segurança, desiste de amar, porque, ficas agora a saber, quando se ama com toda a segurança não se ama coisa nenhuma.
Se não tiveres medo de dizer que amas, como se sentisses que estavas a expor o mais imenso lado de ti, desiste de amar, porque, ficas agora a saber, é só o que nos faz ter medo que vale a pena ter medo perder.

Se não adormeceres todos os dias com uma inexplicável vontade de voltar a acordar só para estares nos braços da pessoa com quem adormeceste, desiste de amar, porque, ficas agora a saber, só o que nos faz adormecer felizes sem deixar de nos fazer ter vontade de acordar felizes é que é mesmo amor.

Se não acordares todos os dias com uma vontade inexplicável de voltar a adormecer só para poderes adormecer em paz ao lado de quem amas, desiste de amar, porque, ficas agora a saber, só o que nos faz acordar felizes sem deixar de nos fazer ter vontade de adormecermos felizes é que é mesmo amor.

Continue lendo…

O Drama de Amar

O drama de amar é não haver sucedâneos.
E tudo o resto sabe a merda. Porque houve o teu abraço, porque existe o teu cheiro. Amei-te para sempre mesmo que já não te ame. Ficou em mim a tarde em que pela primeira vez o nosso corpo (o teu arfar a mostrar-me que língua se fala no cėu, a tua boca a mostrar-me o tamanho de um beijo), e a partir daí fiquei órfão de um corpo sempre que não fosse o teu corpo. E quando chegou o dia da despedida eu soube que tinha chegado o dia de para sempre.
O drama de amar é não admitir a morte.
Há uma mulher a mais sempre que amo um corpo que não é o teu. E um homem a menos. Deito-me, aperto, espremo (o encaixe perfeito das tuas costas nos meus braços, o cheiro dos teus lábios no suor do meu pescoço). E até um orgasmo comprova a hipocrisia da carne. Despedi-me de orgasmos quando me despedi de ti. Já me deitei com tantas e é sempre o teu boa-noite que me adormece.
O drama de amar é só criar réplicas.
Tudo o que amo és tu.

Continue lendo…

O Problema em Amar

O problema em amar quem te ama é o de quem te ama te amar como tu amas quem te ama. E depois o encadeamento é simples: quem te ama quer-te presente por dentro dele a toda a hora, por todo o lado do teu lado; e tu queres quem te ama presente em ti a toda a hora, por todo o lado do teu lado. Mas os corpos – por mais que a alma não seja palpável também ela tem um corpo – têm um limite de dilatação. A partir de uma certa altura: pára. E já não alarga mais. E tu queres enfiar o espaço que quem ama ocupa em ti mesmo ao lado do espaço do que te amas. E não dá. Não dá para te amares como amas quem amas. E depois quem te ama como tu amas quem te ama vai querer fazer o mesmo contigo. E não dá. Os corpos – repito – têm um limite de dilatação. E chega uma altura em que uma parte de ti não cabe na parte toda de quem amas; e chega uma altura em que uma parte de quem amas não cabe na parte toda de ti.

Continue lendo…

Aperta-me para Sempre

O dia adormece-me debaixo dos olhos, e as tuas mãos são a pele que Deus escolheu para tocar o mundo; não existe nenhum lugar mais divino do que o teu beijo, e quando quero voar deito-me a teus pés.
Peço-te que não vás, que fiques apenas para eu ficar, que permaneças no teu lado da cama, e eu no meu, a sentirmos que o tempo corre, e podes até adormecer, podes ler a revista das mulheres das passadeiras vermelhas e os homens com os abdominais que ninguém tem, ou simplesmente olhar o tecto e pensar em ti; eu fico aqui, a olhar-te para saber que existo, a pensar no quanto te quero e no tamanho que tem o teu corpo dentro do meu. Saber que há a curva das tuas costas para encontrar a curva da vida, percorrer com os olhos o cair do teu suor, e perceber a eternidade possível.
A imortalidade é um orgasmo contigo.
Gemes até ao fim do mundo por dentro dos meus ouvidos, todo o meu corpo se vem quando estás a chegar, e a verdade do universo é a física exígua do espaço entre nós. Aperta-me para sempre até ao princípio dos ossos,

Continue lendo…

Sou os Sonhos que não Realizei

A tristeza de não ser mais do que aquilo que deixei de ser. De não fazer mais do que aquilo que deixei por fazer. Sou os sonhos que não realizei, os passos que não dei. Sou a vida, sim, que não vivi. E é assim que vivo, entre pensamentos de que sou e a lucidez, sempre temporária mas sempre triste, de que não sou. De que não consigo ser. Os dias, lentos e parcimoniosos, são leves brisas de tempo, folhas que o vento, sem esforço, carrega para o destino final. Escrevo porque só sei escrever. Escrevo porque nada sei fazer. E aguardo que, letra a letra, se vá, imagem a imagem, o sonho prometido. E aguardo que, sonho a sonho, se vá, promessa a promessa, o destino ansiado. Sou, mais do que o que sou, o que não sou: o que não fui capaz de ser. Fiquei a meio, sempre a meio, do que desejei finalizar. Meio escritor, meio humano, meio poeta e meio insano, meio senhor, meio criança, meio sorriso na meia infância. Fiquei a meio, sempre a meio, do que desejei finalizar. Fui o quase génio, o quase artista, o quase pedinte, o quase louco. Fui quase feliz,

Continue lendo…

A Forma como me Amas, Mãe

Há qualquer coisa de Deus na forma como me amas, mãe.
As pessoas não são tão grandes como tu, as pessoas não aguentam tanto a vida como tu. As pessoas choram, as pessoas sofrem, as pessoas passam pela vida à procura da melhor maneira de viver. Mas tu amas-me, mãe. Tu amas-me assim, sem condições, e parece que quando me amas nem sequer existes. Apenas ficas ali, a ver-me existir, e é assim que descobres e me ensinas que a vida se resume a ver quem amas viver.

Há qualquer coisa de impossível na forma como me amas, mãe.
O possível teria de exigir que parasses quando te dói, que parasses quando o mundo, filho da puta do mundo, te obriga a inventares novas maneiras de me dares tudo o que eu preciso. O possível iria dizer-te que não, que uma só pessoa, tão pequena e tão grande como tu, não pode suportar todo o peso de duas vidas. E tu ainda aí estás, tão forte como só tu, tão impossível como só tu, a sorrir quando me vês de caderno na mão a dizer que sou o melhor aluno da turma. É claro que é bom ser bom aluno,

Continue lendo…

Preciso de Ti

O amor é bem capaz de ser a melhor maneira de nos encontrarmos connosco.
Preciso de ti para saber de mim.
Sei-o sempre que por minutos parece que vou perder-te, numa discussão das que vamos tendo. Discutir é abrir a válvula do amor, deixá-lo respirar, sangrá-lo para poder regressar à estrada. Nenhum amor aguenta sem sangrar.
Preciso de ti para pensar em mim.
Sei-o porque quando parece que vais eu vou também, deixo de saber quem sou, como sou. Para onde vou.
Preciso de ti para precisar de mim.
E os que não me entendem que vão para o raio que os parta. Os que dizem que isto não é nada recomendável, que isto não devia ser assim, que eu devia ser capaz de ser o que sou sem precisar de ti. Infelizes.
Preciso de ti para cuidar de mim.
O amor é bem capaz de ser precisar do outro para cuidarmos de nós.
E eu cuido-me. Quero estar viva para te poder amar. Conheces melhor motivo do que esse? É claro que amo os meus pais, a minha família toda, os meus gatos, aquilo que a vida me tem dado.

Continue lendo…

A Morte Está atrás do Teu Beijo

A morte está atrás do teu beijo,
e não me interessa nada que não me possa matar.

Não quero trajectos sem calhaus, pessoas sem problemas, muito menos glórias sem lágrimas. Não quero o tédio de só continuar, a obrigação de suportar, andar na rotina só por andar. Não quero o vai-se andando, o é a vida, o tem de ser, nada que não me ponha a gemer. Não quero o prato sempre saudável, a saladinha impoluta, a cama casta, o sexo virgem. Não quero o sol o dia todo, a recta sem a mínima curva, não quero o preto liso nem o branco imaculado, não quero o poema perfeito nem a ortografia ilesa. Não quero aprender apenas com o professor, a palmadinha nas costas, o vá lá que isso passa, a microssatisfação, a minúscula euforia. Não quero os lábios sem língua, a língua sem prazer, fugir do que mete medo, e até acomodar-me ao que me faz doer. Quero o que não cabe no regular, o que não se entende nos manuais, o que não acontece nos guiões. Quero a ruga esquisita, a mão descuidada, a estrada arriscada, a chuva, o vento, as unhas cravadas, o animal do instante.

Continue lendo…

O Abraço

O abraço. O abraço que parece estar a acabar. O abraço raro, o abraço verdadeiro. Da mãe que recebe o filho, da mulher que recebe o marido, do amigo que recebe o amigo. O abraço que não se pensa, que não se imagina. O abraço que não é; o abraço que tem de ser. O abraço que serve para viver. O abraço que acontece – e que não se esquece. Um dia hei-de passar todo o dia a ensinar o abraço. A visitar as escolas e a explicar que abraçar não é dois corpos unidos e apertados pelos braços. Abraçar é dois instantes que se fundem por dentro do que une dois corpos. Abraçar é um orgasmo de vida, um clímax de partilha – uma orgia de gente. Abraçar é fechar os olhos e abrir a alma, apertar os músculos e libertar o sonho. Abraçar é fazer de conta que se é herói – e sê-lo mesmo. Porque nada é mais heróico do que um abraço que se deixa ser. Porque nada é mais heróico do que ter a coragem de abraçar, em frente do mundo, em frente da dor, em frente do fim, em frente da derrota. Abraçar é a vitória do homem sobre o homem,

Continue lendo…

Há lá Coisa Melhor?

Há lá coisa melhor do que duas mãos que se beijam?

A mão dela tinha Deus dentro. Apertava-a, beijava-a com a minha mão apressada, com a minha mão urgente, a minha mão como se numa ambulância, e percorríamos as ruas mesmo que fossem as ruas que nos percorressem a nós, simples corpos sorridentes

Há lá coisa melhor do que dois corpos que se sorriem?

Sabia, com cada um dos meus dedos, com cada uma das minhas mãos, todos os riscos e ranhuras da mão dela; era ali, no por dentro das mãos que tocava, que ouvia as novidades, que lia os títulos das notícias, de todas as notícias que me importavam

Há lá coisa melhor do que ler as notícias na mão que se ama?

Não havia, nos passos que dávamos, qualquer distância andada, nem sequer um caminho a andar; éramos caminhantes de andar, viajantes do nosso tempo. E acreditávamos, todos os dias, em todas as respirações que respirávamos no espaço das nossas mãos, que o tempo era apenas o instante em que, juntos, parávamos o tempo

Há lá coisa melhor do que o instante em que se pára o tempo?

Continue lendo…

O Teu Céu

É em vida que tens o teu céu. Mas não é um céu prometido. Um céu prometido é um céu precavido, um céu prevenido – um céu invertido. O que já sabes que vai ser céu é um martírio. Se sabes que vai ser céu: então é porque não é céu. És tu que, todos os dias, tens de agarrar nas tuas perninhas e no monte de antíteses de que és feito. És tu que tens de rezar pelo teu céu. Mas rezar não é de joelhos. Rezar nem sequer é cruzar os dedos e olhar para o céu à espera de que de lá caia alguma coisa. O mais inusitado que podes esperar que caia do céu são perdigotos de quem, como tu, pensa que rezar é dizer meia dúzia de palavras com os joelhos dobrados e as mãos unidas em forma de impotência. Mas rezar não é nada disso. Vou-te explicar o que é rezar. Oremos, irmão.

Rezar não é ajoelhar nem é falar nem é esperar. Rezar é lutar. Não é por acaso que depois de morrer alguém de quem se gosta se faz o luto. Luto. Ouve bem, lê bem: sente bem. Luto. Luto.

Continue lendo…

Tudo o que Somos é Ficção

Há que entender que tudo o que somos é ficção.
Pessoas atrás de pessoas pedem-me conselhos. Acreditam que o que escrevo me torna em alguém especial, capaz de lhes entender o que fazem, o que sentem, até o que escrevem. Fico perdido, sem saber o que fazer, sem saber o que dizer. E é por isso que escrevo. Escrever é estar perdido e procurar, a cada frase, um caminho. Ou um simples sinal de que pode haver um caminho, de que pode haver uma esperança. Escrever é procurar a esperança, todos os dias, no que não existe, no que se escreve para ver se existe. Não sou escritor, nunca fui escritor, não quero ser escritor. Sou apenas o gajo que escreve porque tem de escrever, porque os dias exigem que escreva, porque uma urgência qualquer o obriga a escrever. Escrevo como necessidade biológica, e às vezes custa tanto ter de escrever. Não dói mas custa, é uma dor de fora para dentro, como se as letras saíssem da pele, do por dentro dos ossos. E a literatura. O que raios é a literatura? Estou-me nas tintas para a literatura. Não quero escrever literatura, não quero os intelectuais do meu lado.

Continue lendo…

No Teu Colo

No teu colo cabem todos os meus medos.
E se Deus existir, é a calma do teus ombros, o sossego divino que vai do teu pescoço ao teu peito. E eu ali, tão pequeno que nem meço os centímetros que tenho, e ainda assim tão grande que nem o céu teria espaço para me guardar assim. Somos criaturas para além do mundo, pares únicos de uma viagem que nem o final dos corpos conseguirá parar.
Até o pior da vida se acalma quando estou nos teus olhos.
Há pessoas más, mãe. Pessoas que não imaginam o que é resistir por dentro deste corpo, por trás destes ossos, sob os escombros de uma idade por descobrir. Há pessoas que não sabem que sou uma criança com medo como todas as crianças (uma pessoa com medo como todas as pessoas: os adultos também têm medo, não têm, mãe?, toda a gente tem medo, não tem, mãe?), e ontem um adulto disse-me para crescer e aparecer, e uma criança menos criança do que eu agarrou-me pelos cabelos e atirou-me ao chão, a escola toda a olhar e a rir, e o adulto a dizer «cresce e aparece» e a criança a dizer «toma lá que é para aprenderes».

Continue lendo…

Tu És Deus

Tu, sim, és o Deus que vale a pena: o Deus que quer e consegue ser luz mesmo quando só parecia que conseguiria ser escuridão; o Deus que ama, que atrai, que exalta, que rompe, que geme. O Deus que faz milagres com um sorriso, que cura doenças com um abraço, que ergue pontes com um afago. O Deus que faz da ternura uma prece, da partilha um santuário. É isso, um Deus que faz milagres desde que queira, de verdade, fazer milagres, o que tu és. Oremos, irmão.

Chegou a hora de seres a-teu. A teu. É a teu cargo que está criar o mundo. Todos os dias tens essa possibilidade, todos os dias nasces com essa força dentro de ti. Todos os dias és omnipotente: podes criar o teu mundo. E podes criá-lo exactamente igual ao que era antes e podes criá-lo completamente diferente do que era antes. Todos os dias crias um mundo, todos os dias tens o maior dos poderes nas tuas mãos. Como é que raios ainda não tinhas percebido que eras Deus? A teu. Ouve, recolhe, assimila: a teu. É tudo teu. Tudo o que és é teu. A teu. Sê a-teu.

Continue lendo…

A Grande Vantagem da Vida

– A grande vantagem da vida é ensinar-nos outra vez a chorar. A vida infantiliza. Fica-se maior no que nos faz ser mais pequenos. Cresce-se fora o que se vai perdendo por dentro. Passamos a infância a querer crescer, a adolescência a querer crescer. E depois percebemos que só quer crescer quem ainda se sente pequeno. Um adulto sente-se pequeno mas pensa ao contrário. Sente-se pequeno e quer ficar mais pequeno. Voltar ao tempo em que havia sonhos.
– Onde se perdem os sonhos?
– Todos os sonhos se perdem. Mesmo aqueles que vais ganhar, e vais ganhar muitos, se vão perder. Porque já deixaram de ser sonhos. Sonhaste aquilo, tiveste aquilo. E acabou. Lá se foi o sonho. O segredo é conseguir gerar novos sonhos. Sonhos que consigam ocupar o espaço em branco deixado pelo sonho perdido.
– Mesmo que tenha sido ganho.
– Mesmo que tenha sido ganho.
– Queria ser como tu.
– E eu queria ser como tu. Queria olhar para a frente e ver que o caminho não acaba, o caminho a perder de vista.
– O teu não se perde de vista?
– O meu faz-me perder a vista.

Continue lendo…