A Má Consciência como Inibição dos Instintos
A má consciência é para mim o estado mórbido em que devia ter caído o homem quando sofreu a transformação mais radical que alguma vez houve, a que nele se produziu quando se viu acorrentado à argola da sociedade e da paz. À maneira dos peixes obrigados a adaptarem-se a viver em terra, estes semianimais, acostumados à vida selvagem, à guerra, às correrias e aventuras, viram-se obrigados de repente a renunciar a todos os seus nobres instintos. Forçavam-nos a irem pelo seu pé, a «levarem-se a si mesmos», quando até então os havia levado a água: esmagava-os um peso enorme. Sentiam-se inaptos para as funções mais simples; neste mundo novo e desconhecido não tinham os seus antigos guias estes instintos reguladores, inconscientemente falíveis; viam-se reduzidos a pensar, a deduzir, a calcular, a combinar causas e efeitos. Infelizes! Viam-se reduzidos à sua «consciência», ao seu órgão mais fraco e mais coxo! Creio que nunca houve na terra desgraça tão grande, mal-estar tão horrível!
Acrescente-se a isto que os antigos instintos não haviam renunciado de vez às suas exigências. Mas era difícil e amiúde impossível satisfazê-las; era preciso procurar satisfações novas e subterrâneas. Os instintos sob a enorme força repressiva, volvem para dentro,
Textos sobre Lugares de Friedrich Nietzsche
10 resultadosA Vantagem do Esquecimento
O esquecimento não é só uma vis inertioe, como crêem os espíritos superfinos; antes é um poder activo, uma faculdade moderadora, à qual devemos o facto de que tudo quanto nos acontece na vida, tudo quanto absorvemos, se apresenta à nossa consciência durante o estado da «digestão» (que poderia chamar-se absorção física), do mesmo modo que o multíplice processo da assimiliação corporal tão pouco fatiga a consciencia. Fechar de quando em quando as portas e janelas da consciência, permanecer insensível às ruidosas lutas do mundo subterrâneo dos nossos orgãos; fazer silêncio e tábua rasa da nossa consciência, a fim de que aí haja lugar para as funções mais nobres para governar, para rever, para pressentir (porque o nosso organismo é uma verdadeira oligarquia): eis aqui, repito, o ofício desta faculdade activa, desta vigilante guarda encarregada de manter a ordem física, a tranquilidade, a etiqueta. Donde se coligue que nenhuma felicidade, nenhuma serenidade, nenhuma esperança, nenhum gozo presente poderiam existir sem a faculdade do esquecimento.
A Mentira
Porque é que, na maior parte das vezes, os homens na vida quotidiana dizem a verdade? Certamente, não porque um deus proibiu mentir. Mas sim, em primeiro lugar, porque é mais cómodo, pois a mentira exige invenção, dissimulação e memória. Por isso Swift diz: «Quem conta uma mentira raramente se apercebe do pesado fardo que toma sobre si; é que, para manter uma mentira, tem de inventar outras vinte». Em seguida, porque, em circunstâncias simples, é vantajoso dizer directamente: quero isto, fiz aquilo, e outras coisas parecidas; portanto, porque a via da obrigação e da autoridade é mais segura que a do ardil. Se uma criança, porém, tiver sido educada em circunstâncias domésticas complicadas, então maneja a mentira com a mesma naturalidade e diz, involuntariamente, sempre aquilo que corresponde ao seu interesse; um sentido da verdade, uma repugnância ante a mentira em si, são-lhe completamente estranhos e inacessíveis, e, portanto, ela mente com toda a inocência.
Espíritos Dirigentes e seus Instrumentos
Vemos grandes estadistas e, em geral, todos aqueles, que devem servir-se de muitas pessoas para a execução dos seus planos, comportarem-se ora de uma maneira, ora de outra: ou seleccionam muito apurada e cuidadosamente as pessoas que convêm aos seus projectos e lhes deixam, depois, uma liberdade relativamente grande, porque sabem que a natureza desses indivíduos escolhidos os impele precisamente para onde eles próprios querem que eles vão; ou, então, escolhem mal, pegam mesmo no que têm à mão, mas formam a partir desse barro algo que serve para os seus fins. Este último género é o mais violento, também o que procura instrumentos mais submissos; o seu conhecimento dos homens é, habitualmente, muito mais escasso, o seu desprezo pelos homens é maior do que no caso dos espíritos mencionados em primeiro lugar, mas a máquina, que eles constroem, trabalha melhor, de maneira geral, que a máquina saída da oficina daqueles.
Os Quatro Erros
A educação do homem foi feita pelos seus erros: em primeiro lugar, ele nunca se viu senão imperfeitamente; em seguida, atribuiu-se qualidades imaginárias; em terceiro, sentiu-se em relações falsas diante da natureza e do reino animal; em quarto, nunca deixou de inventar tábuas do bem sempre novas e tomou cada uma delas durante um certo tempo como eterna e absoluta, de tal maneira que o primeiro lugar foi ocupado sucessivamente por este ou aquele instinto ou este ou aquele estado que enobrece esta apreciação. Ignorar o efeito destes quatro erros é suprimir a humanidade, o humanitarismo e a «dignidade humana».
É Preciso Aprender a Amar
Que se passa para nós no domínio musical? Devemos em primeiro lugar aprender a ouvir um motivo, uma ária, de uma maneira geral, a percebê-lo, a distingui-lo, a limitá-lo e isolá-lo na sua vida própria; devemos em seguida fazer um esforço de boa vontade — para o suportar, mau-grado a sua novidade — para admitir o seu aspecto, a sua expressão fisionómica — e de caridade — para tolerar a sua estranheza; chega enfim o momento em que já estamos afeitos, em que o esperamos, em que pressentimos que nos faltaria se não viesse; a partir de então continua sem cessar a exercer sobre nós a sua pressão e o seu encanto e, entretanto, tornamo-nos os seus humildes adoradores, os seus fiéis encantados que não pedem mais nada ao mundo, senão ele, ainda ele, sempre ele.
Não sucede assim só com a música: foi da mesma maneira que aprendemos a amar tudo o que amamos. A nossa boa vontade, a nossa paciência, a nossa equanimidade, a nossa suavidade com as coisas que nos são novas acabam sempre por ser pagas, porque as coisas, pouco a pouco, se despojam para nós do seu véu e apresentam-se a nossos olhos como indizíveis belezas: é o agradecimento da nossa hospitalidade.
Ser Injusto é Necessário
Todos os juízos acerca do valor da vida se desenvolveram ilogicamente e são, por isso, injustos. A impureza do juízo encontra-se, em primeiro lugar, na maneira como o material se apresenta, isto é, muito incompleto; em segundo lugar, na maneira como é efectuada a respectiva soma; e, em terceiro lugar, no facto de cada um dos fragmentos do material ser, por seu lado, resultado de um conhecimento impuro e isto, na verdade, de forma absolutamente necessária. Nenhum conhecimento obtido pela experiência acerca, por exemplo, de uma pessoa, por muito perto que esta esteja de nós, pode ser completo, de modo que nós tenhamos um direito lógico a uma avaliação global da mesma. Todas as estimativas são precipitadas e têm de o ser.
No fim de contas, a medida, com a qual nós medimos, ou seja, o nosso ser, não é uma grandeza invariável; nós temos estados de espírito e oscilações, e, não obstante, deveríamos conhecer-nos a nós próprios como uma medida fixa para podermos avaliar justamente a relação de qualquer coisa connosco. Talvez se conclua de tudo isto que não se deveria julgar de todo em todo; mas se se pudesse sequer viver sem avaliar, sem ter antipatia nem simpatia!…
Instinto de Rebanho
Em toda a parte onde encontramos uma moral encontramos uma avaliação e uma classificação hierárquica dos instintos e dos actos humanos. Essas classificações e essas avaliações são sempre a expressão das necessidades de uma comunidade, de um rebanho: é aquilo que aproveita ao rebanho, aquilo que lhe é útil em primeiro lugar – e em segundo e em terceiro -, que serve também de medida suprema do valor de qualquer indivíduo. A moral ensina a este a ser função do rebanho, a só atribuir valor em função deste rebanho. Variando muito as condições de conservação de uma comunidade para outra, daí resultam morais muito diferentes; e, se considerarmos todas as transformações essenciais que os rebanhos e as comunidades, os Estados e as sociedades são ainda chamados a sofrer, pode-se profetizar que haverá ainda morais muito divergentes. A moralidade é o instinto gregário no indivíduo.
Dar Estilo ao Seu Carácter
«Dar estilo» ao seu carácter… é uma arte deveras considerável que raramente se encontra! Para a exercer é necessário que o nosso olhar possa abranger tudo o que há de forças e de fraquezas na nossa natureza, e que as adaptemos em seguida a um plano concebido com gosto, até que cada uma apareça na sua razão e na sua beleza e que as próprias fraquezas seduzam os olhos. Aqui ter-se-á acrescentado uma grande massa de segunda natureza, nos pontos onde se terá tirado um pedaço da primeira, à custa, nos dois casos, de um paciente exercício e de um trabalho de todos os dias. Neste lugar disfarçou-se uma fealdade que se não podia fazer desaparecer, noutro ela foi transmudada, fez-se dela uma beleza sublime. Grande número de elementos, que se recusavam a tomar forma, foram reservados para ser utilizados nos efeitos de perspectiva: darão os longes, o apelo do infinito. Foi a unidade, a pressão de um mesmo gosto que dominou e afeiçoou no grande e no pequeno: a que ponto, vemo-lo por fim, uma vez terminada a obra; que esse gosto seja bom ou mau, importa menos do que se pensa, basta que tenha havido um.
Serão as naturezas fortes e dominadoras que apreciarão as alegrias mais subtis nesta opressão,
A Felicidade e a Virtude Não São Argumentos
Ninguém tomará facilmente por verdadeira uma doutrina somente porque ela torna felizes ou virtuosos os homens: exceptuando, talvez, os amáveis «idealistas» que se entusiasmam pelo Bom, o Verdadeiro, o Belo e fazem nadar, no seu charco, toda a espécie de variegadas, pesadonas e bonacheironas idealidades. A felicidade e a virtude não são argumentos. Mas de bom grado se esquece, mesmo os espíritos ponderados, que tornar infeliz e tornar mau não são tão-pouco contra-argumentos. Uma coisa deveria ser certa, embora fosse muitíssimo prejudicial e perigosa; seria até possível fazer parte da estrutura básica da existência o perecermos por causa do nosso conhecimento total, – de forma que a força de um espírito se mediria justamente pela quantidade de «verdade» que era capaz de suportar ou, mais claramente, pelo grau em que necessitasse de a diluir, velar, adocicar, embotar, falsificar. Mas está fora de dúvida o facto de os maus e infelizes serem mais favorecidos e terem maior possibilidade de êxito na descoberta certas partes da verdade; para não falar dos maus que são felizes, – espécie que os moralistas passam em silêncio.
É possível que a dureza e a astúcia forneçam, para o desenvolvimento do espírito e do filósofo firmes e independentes,