Nota para nĂŁo Escrever
Se o conhecimento Ă© uma forma de escrita, mesmo sem palavras, uma respiração calada, a narrativa que o silĂŞncio faz de si mesmo, entĂŁo nĂŁo se deve escrever, nem mesmo admitindo que fazĂŞ-lo seria o reconhecimento do conhecimento. Pode escrever-se acerca do silĂŞncio, porque Ă© um modo de alcançá-lo, embora impertinente. Pode tambĂ©m escrever-se por asfixia, porque essa nĂŁo Ă© maneira de morrer. Pode escrever-se ainda por ilusĂŁo criminal: Ă s vezes imagina-se que uma palavra conseguirá atingir mortalmente o mundo. A alegria de um assassinato enorme Ă© legĂtima, se embebeda o espĂrito, libertando-o da melancolia da fraternidade universal. Mas se apesar de tudo se escrever, escreva-se sempre para estar sĂł. A escrita afasta concretamente o mundo. NĂŁo Ă© o melhor mĂ©todo, mas Ă© um. Os outros requerem uma energia espiritual que suspeita do prĂłprio uso da escrita, como a religiosidade suspeita da religiĂŁo e o demonismo da demonologia. A escrita – inferior na ordem dos actos simbĂłlicos – concilia-se mal com a metamorfose interior – finalidade e sĂmbolo, ela mesma, da energia espiritual. O espĂrito tende a transformar o espĂrito, e transforma-o. O resultado Ă© misterioso. O resultado da escrita, nĂŁo.
Textos sobre Maneiras de Herberto Helder
3 resultadosNada Ă© Suficiente para se Morrer
– Nunca pensou escrever um romance?
– Sou um autor de folhetos, acho que interrogativos, e sobretudo um muito interrogativo leitor de perguntas. Mais nada.
– Basta para uma vida ?
– Nem sei se basta para uma verdadeira morte. Nada Ă© suficiente para se morrer. Ou Ă© suficiente cruzar os olhos com os de uma leoa materna. Ou brandir esse pequeno objecto elĂ©ctrico, embora seja tĂŁo pequeno e a noite por todos os lados do quarto pareça interminável. Conheci um homem, um psiquiatra descontente — sĂŁo raros, os psiquiatras descontentes, conheço-os muito contentes a ganhar para enlouquecer as pessoas, rende tanto como a polĂtica, trata-se de polĂtica, a sinistra polĂtica dos tratamentos —, vivia numa ilha, este, descontente, adorava falar de estrelas, constelações, sabia tudo, mas era, digamos, estelarmente irredutĂvel: estava contra a ordem celeste. Mandou substituir o tecto do quarto de dormir por uma abĂłbada com um sistema electrĂłnico de corpos celestes, deslocados, todos, relativamente Ă estrutura natural, autĂłnomos entre si. Ali era a lua nas suas fases e as Ursas e o Cruzeiro do Sul e a estrela Arcturus: um sistema de teclas permitia acender aquilo que se desejasse. O que vigorava era um cĂ©u dele,
NĂŁo Existe Prosa
NĂŁo existe prosa. A menos que se refiram os escritos, em prosa ou verso, que pretendem ensinar. NĂŁo há nada a ensinar embora haja tudo a aprender. Aquilo que se aprende vem do nosso prĂłprio ensino, vem da pergunta; vĂŁo-se aprendendo, pelas esperas, pela imobilidade Ă s portas, pela invisibilidade dos rostos depois de vistos tĂŁo prometedoramente, pela emenda sucessiva, pela insĂłnia sucessiva dos olhos e das figurações, sempre, vĂŁo-se aprendendo sempre as maneiras da pergunta. Uma pergunta em perguntas, um poema em poemas, uma rebarbativa constelação de objectos ofuscantes. Aprende-se que a pergunta se desloca com a luz inerente; ilumina-se a si mesma, a pergunta constelar; ensina a si mesma, ao longo de si mesma, os estilos de ser dotada dessa luz para fora e para dentro. Leio romances desde que perceba que nĂŁo estĂŁo a responder. Alguns sĂŁo extraordinárias máquinas interrogativas: “Ulisses”, “Filhos e Amantes”, “O Doutor Fausto”, “O Processo”, “A Morte de VirgĂlio”, “O Som e a FĂşria”, “Debaixo do VulcĂŁo”, “A Obra ao Negro”, “Lolita”, “Diário do LadrĂŁo”, todos os romances de CĂ©line como se fossem um sĂł, alguns outros, antes, agora. Os romances de Agustina Bessa-LuĂs, porventura os menos amados, sĂŁo entre nĂłs as quase Ăşnicas máquinas vivas de perguntar.