Prejudicar a Estupidez
A reprovação do egoísmo, que se pregou com tamanha convicção casmurra, prejudicou certamente, no conjunto, esse sentimento (em benefício, hei-de repeti-lo milhares e milhares de vezes, dos instintos gregários do homem), e prejudicou-o, nomeadamente no facto de o ter despojado da sua boa consciência e de lhe ter ordenado a procurar em si próprio a verdadeira fonte de todos os males. «O teu egoísmo é a maldição da tua vida», eis o que se pregou durante milénios: esta crença, como eu ia dizendo, fez mal ao egoísmo; tirou-lhe muito espírito, serenidade, engenhosidade e beleza; bestializou-o, tornou-o feio, envenenado.
Os filósofos antigos indicavam, ao contrário, uma fonte completamente diferente para o mar; os pensadores não cessaram de pregar desde Sócrates: «É a vossa irreflexão, são a vossa estupidez, o vosso hábito de vegetar obedecendo à regra e de vos subordinar ao juízo do próximo, que vos impedem tão amiudadamente de serdes felizes; somos nós, pensadores, que o somos mais, porque pensamos». Não nos perguntemos aqui se este sermão contra a estupidez tem mais fundamentos do que o sermão contra o egoísmo; o que é certo é que despojou a estupidez da sua boa consciência: estes filósofos foram prejudiciais à estupidez!
Textos sobre Mar
102 resultadosO Desejo de Ser Sincero é Superficial
O desejo de ser sincero é superficial. Não é por acaso que muitos dos romances entre os últimos aparecidos são escritos na primeira pessoa, de modo a que o eu repetido e disseminado ao longo das páginas produza uma sensação de algo muito próximo a uma lembrança, a uma confissão, a um diário. Não é também por acaso que neles se evita com muito cuidado o enredo ou de certa forma tudo o que possa parecer invenção; e que se narre os factos com garra jornalística, como coisa que realmente tivesse acontecido. A sinceridade, no seu estrito sentido, não suporta a narração objectiva que é um princípio de artifício nem a invenção que em todas as ocasiões pode parecer falsa.
A sinceridade parece-se muito com o mar em certos dias. Há manhãs de tanta bonança que se andamos de barco e nos inclinamos para contemplar a água debaixo de nós, tem-se a impressão de que estamos suspensos sobre transparentes e tangíveis precipícios. A água, por muito profunda que seja, não se opõe a que se olhe a prumo para baixo e se veja, numa claridade esverdeada, o fundo areoso espargido de seixos e de trigueiras céspedes. Nasce então uma espécie de exaltação,
O Fim da Civilização
Quando se extinguirá esta sociedade corrompida por todas as devassidões, devassidões de espírito, de corpo e de alma? Quando morrer esse vampiro mentiroso e hipócrita a que se chama civilização, haverá sem dúvida alegria sobre a terra; abandonar-se-á o manto real, o ceptro, os diamantes, o palácio em ruínas, a cidade a desmoronar-se, para se ir ao encontro da égua e da loba.
Depois de ter passado a vida nos palácios e gasto os pés nas lajes das grandes cidades, o homem irá morrer nos bosques. A terra estará ressequida pelos incêncios que a devastaram e coberta pela poeira dos combates; o sopro da desolação que passou sobre os homens terá passado sobre ela e só dará frutos amargos e rosas com espinhos, e as raças extinguir-se-ão no berço, como as plantas fustigadas pelos ventos, que morrem antes de ter florido.
Porque tudo tem de acabar e a terra, de tanto ser pisada, tem de gastar-se; porque a imensidão deve acabar por cansar-se desse grão de poeira que faz tanto alarido e perturba a majestade do nada. De tanto passar de mãos e de corromper, o outro esgotar-se-á; este vapor de sangue abrandará, o palácio desmoronar-se-á sob o peso das riquezas que oculta,
Estado Frenético de Tagarelice
Assola o país uma pulsão coloquial que põe toda a gente em estado frenético de tagarelice, numa multiplicação ansiosa de duos, trios, ensembles, coros. Desde os píncaros de Castro Laboreiro ao Ilhéu de Monchique fervem rumorejos, conversas, vozeios, brados que abafam e escamoteiam a paciência de alguns, os vagares de muitos e o bom senso de todos. O falatório é causa de inúmeros despautérios, frouxas produtividades e más-criações.
Fala-se, fala-se, fala-se, em todos os sotaques, em todos os tons e décibeis, em todos os azimutes. O país fala, fala, desunha-se a falar, e pouco do que diz tem o menor interesse. O país não tem nada a dizer, a ensinar, a comunicar. O país quer é aturdir-se. E a tagarelice é o meio de aturdimento mais à mão.
(…) Telefones móveis! Soturna apoquentação! Um país tagarela tem, de um momento para o outro, dez milhões de íncolas a querer saber onde é que os outros param, e a transmitir pensamentos à distância.
Afortunados ventos que batem todas as altitudes e pontos cardeais e levam as mais das palavras, às vezes frases inteiras, parágrafos, grosas deleas, para as afogar no mar, embeber nos lameiros de Espanha, gelar nos confins da Sibéria,
A Minha única Felicidade és Tu
Até agora ainda nada te disse da nossa vida de família. Devo dizer-te algumas palavras para que saibas com que contar. Temos uma vida muito tranquila, vida que sempre desejei e a que estou realmente habituado. A música ou o teatro vêm por vezes interromper a monotonia desta vida quase monástica. Quando vieres faremos mais ou menos a mesma vida interrompendo no entanto a monotonia pelo teatro, pequenos serões musicais e mesmo dançantes se isso te agradar. Sem isso passaremos os nossos serões ao lado um do outro a conversar e a dar graças ao bom Deus pela nossa felicidade. Devo também falar-te dos meus gostos e das minhas qualidades tanto quanto posso conhecê-los. Sou um grande fumador, um caçador bastante bom, apaixonado pela música e dançarino medíocre. Quanto às qualidades e aos defeitos, já que todos os temos, tenho mais dificuldade em falar deles, já que ninguém é bom juiz em causa própria. Contudo todas as minhas qualidades se fundirão numa só, a de te adorar e não amar a mais ninguém no mundo, anjo da minha vida. Quando estivermos unidos, só viveremos juntos, onde um irá, o outro seguirá, o que um quiser o outro também há-de querer.
Resgatar o Prazer de Viver
É possível resgatar o prazer de viver, é possível treinar a emoção para ser jovem, desprendida, livre, feliz.
Primeiro: Contemple o belo nos pequenos eventos da vida.
Tenha sempre atividades programadas fora da sua agenda pelo menos uma vez por semana. Valorize aquilo que o dinheiro não compra e que não dá prestígio.
Treine dez minutos por dia a contemplar a anatomia das flores, a gastar tempo a ver o brilho das estrelas, a experimentar o prazer de penetrar no mundo das pessoas.
Não viva em função de grandes eventos, aprenda a extrair o prazer dos pequenos estímulos da rotina diária.Segundo: Irrigue o palco da mente com pensamentos agradáveis.
Treine trazer diariamente à sua memória aquilo que lhe traz esperança, serenidade e encanto pela vida. Pense em conquistar pessoas e em superar os seus obstáculos. Pense em ser íntimo do Autor da vida e conhecer os mistérios da existência.
Os seus maiores inimigos estão dentro de si. Não se deixe derrotar ou perturbar por pensamentos que lhe roubam a tranquilidade e o prazer de viver.
Treine ver o lado positivo de todas as coisas negativas. Os negativistas veem os raios,
Caminho da Manhã
Vais pela estrada que é de terra amarela e quase sem nenhuma sombra. As cigarras cantarão o silêncio de bronze. À tua direita irá primeiro um muro caiado que desenha a curva da estrada. Depois encontrarás as figueiras transparentes e enroladas; mas os seus ramos não dão nenhuma sombra. E assim irás sempre em frente com a pesada mão do Sol pousada nos teus ombros, mas conduzida por uma luz levíssima e fresca. Até chegares às muralhas antigas da cidade que estão em ruínas. Passa debaixo da porta e vai pelas pequenas ruas estreitas, direitas e brancas, até encontrares em frente do mar uma grande praça quadrada e clara que tem no centro uma estátua. Segue entre as casas e o mar até ao mercado que fica depois de uma alta parede amarela. Aí deves parar e olhar um instante para o largo pois ali o visível se vê até ao fim. E olha bem o branco, o puro branco, o branco da cal onde a luz cai a direito. Também ali entre a cidade e a água não encontrarás nenhuma sombra; abriga-te por isso no sopro corrido e fresco do mar. Entra no mercado e vira à tua direita e ao terceiro homem que encontrares em frente da terceira banca de pedra compra peixes.
O Amor Nunca Salva, mas alguém Tem uma Ideia Melhor?
Descobri, um pouco tarde, que afinal todos os meus livros são histórias de amor. Só que as daninhas estavam tão bem disfarçadas que eu próprio não tinha reparado. Às vezes, amo entre duas pessoas, outras de amor entre uma pessoa e uma ideia. Idalina enamora-se por «uma dança sem música». Sam Espinosa apaixona-se por uma mulher uns anitos mais velha (duzentos, coisa pouca), Greg quase é salvo da perdição por uma sósia de Angelina Jolie. O amor está no ar e também, como diria um poeta, o amor está no mar. O amor não salva, nunca salva, mas alguém tem uma ideia melhor?
Tão sensacional descoberta levou-me a cogitar no seguinte: e qual será a melhor forma de amar? Carente de modelos reais na vida humana, decidi procurá-los na natureza. Com a ajuda da televisão, claro, Canal Odisseia, National Geographic, Canal Panda, essas coisas. Pode-se lá chegar à natureza, nos dias que correm, senão pela televisão! Três rolos modelos logo me saltaram à vista: o Amor do Louva-a-deus; o Amor do Cisne; o Amor do Urso Polar.
Após alguma esmiuçação, concluí que qualquer um me parece bem, e tem as suas vantagens e desvantagens.
No romance do louva-a-deus,
Amo-te Por Todas as Razões e Mais Uma
Por todas as razões e mais uma. Esta é a resposta que costumo dar-te quando me perguntas por que razão te amo. Porque nunca existe apenas uma razão para amar alguém. Porque não pode haver nem há só uma razão para te amar.
Amo-te porque me fascinas e porque me libertas e porque fazes sentir-me bem. E porque me surpreendes e porque me sufocas e porque enches a minha alma de mar e o meu espírito de sol e o meu corpo de fadiga. E porque me confundes e porque me enfureces e porque me iluminas e porque me deslumbras.
Amo-te porque quero amar-te e porque tenho necessidade de te amar e porque amar-te é uma aventura. Amo-te porque sim mas também porque não e, quem sabe, porque talvez. E por todas as razões que sei e pelas que não sei e por aquelas que nunca virei a conhecer. E porque te conheço e porque me conheço. E porque te adivinho. Estas são todas as razões.
Mas há mais uma: porque não pode existir outra como tu.
Intragável é Estar Parado
Intragável é estar parado. Não mudar. Aguentar. Sobreviver. Permanecer. Mesmo que seja pouco, mesmo que seja insuficiente. Manter tudo como está apenas para não correr o risco de ficar pior. Intragável é não perdoar, não ilibar. E só criticar, só apontar, só atacar. E não criar, não refazer, não imaginar. Intragável é não acreditar. Intragável é o que não é maravilhoso, o que não é delicioso, o que não é fantástico, monumental, abençoado, miraculoso, espantoso. Intragável é acordar para o dia a recusar o dia, a não querer o dia, a não apetecer o dia, a não pensar nas mil e uma maneiras de o tornar inesquecível. Deixar estar. Não mexer, não querer a ferida se for através da ferida que se chega à cura. Ser cauteloso, prevenido. Intragável é o que não é exagerado, o que não é desproporcionado, o que não parece incomportável. Se não parece incomportável, é insuportável. Não quero. Não admito. Não me admito. Intragável é repetir. Hoje como réplica exacta de ontem e como réplica exacta de amanhã. As mesmas coisas, as mesmas palavras, os mesmos actos, os mesmos movimentos. Sempre igual. Sempre o mesmo. Intragável é continuar por continuar, andar por andar, viver por viver.
A Lusitânia
A terra mais ocidental de todas é a Lusitânia. E porque se chama Ocidente aquela parte do mundo? Porventura porque vivem ali menos, ou morrem mais os homens? Não; senão porque ali vão morrer, ali acabam, ali se sepultam e se escondem todas as luzes do firmamento. Sai no Oriente o Sol com o dia coroado de raios, como Rei e fonte da Luz: sai a Lua e as Estrelas com a noite, como tochas acesas e cintilantes contra a escuridade das trevas, sobem por sua ordem ao Zénite, dão volta ao globo do mundo resplandecendo sempre e alumiando terras e mares; mas em chegando aos Horizontes da Lusitânia, ali se afogam os raios, ali se sepultam os resplendores, ali desaparece e perece toda aquela pompa de luzes.
E se isto sucede aos lumes celestes e imortais; que nos lastimamos, Senhores, de ler os mesmos exemplos nas nossas Histórias? Que foi um Afonso de Albuquerque no Oriente? Que foi um Duarte Pacheco? Que foi um D. João de Castro? Que foi um Nuno da Cunha, e tantos outros Heróis famosos, senão uns Astros e Planetas lucidíssimos, que assim como alumiaram com estupendo resplendor aquele glorioso século, assim escurecerão todos os passados?
O Espírito em Transe
O prazer profundo, inefável, que é andar por estes campos desertos e varridos pela ventania, subir uma encosta difícil e olhar lá de cima a paisagem negra, escalvada, despir a camisa para sentir directamente na pele a agitação furiosa do ar, e depois compreender que não se pode fazer mais nada, as ervas secas, rente ao chão, estremecem, as nuvens roçam por um instante os cumes dos montes e afastam-se em direcção ao mar, e o espírito entra numa espécie de transe, cresce, dilata-se, não tarda que estale de felicidade.
Carta
(digo dos que se ditam:
a minha defesa
são os vossos punhais)Quando me disseram «não se vem à vida para sonhar» passei a odiar-vos. Para vos matar escolhi materiais inacessíveis ao meu ódio. Em mim fizestes despertar a irreparável urgência de ferir.
Descobri a vossa intenção: decepar as minhas raízes mais profundas, obrigar-me à cerimónia das palavras mortas. Preferi reiniciar-me: na solidão me apaguei. Estava só para me encher de gente, para me povoar de ternura. Eu queria simplesmente olhar de frente a verdade das pequenas coisas: esta água vem de onde, quem teceu este linho, que mãos fizeram este pão?
Desloquei-me para tudo ver de um outro lado: levei o meu olhar, o desejo de um princípio infinitamente retomado. Ganhei sonoridade nas vozes que me habitavam silenciosamente. Entre mar e terra eu preferia ser espuma, ter raiz e poente entre oceano e continente.
O tempo, por vezes, morria de o não semear. Terras que golpeava com ternura eram feridas que em mim se abriam para me curar. Eram terras suspeitas, acusadas de futuro. Outras vezes eram mãos de um corpo que ainda me não nascera. Surgiam da obscuridade para afastar a água e nela me deixar tombar.
O Uivo
Quando um cão uiva é como se o fizesse do interior dos nossos ossos e os pusesse à mostra, os confundisse com aquilo que nos cerca, de algum modo então o nosso esqueleto integra o pátio, a roupa branca pendurada, a pilha de tijolos, há entre tudo isso e os nossos ossos uma afinidade a que somente o cão, como se o mar todo lhe pesasse na garganta, empresta nitidez.
O Gosto pela Cultura
É mais difícil encontrar um gentleman que um génio. A marca mais distintiva de um homem culto é a possibilidade de aceitar um ponto de vista diferente do seu; pôr-se no lugar de outra pessoa e ver a vida e os seus problemas dessa perspectiva diferente. Estar disposto a experimentar uma ideia nova; poder viver nos limites das divergências intelectuais; examinar sem calor os problemas escaldantes do dia; ter simpatia imaginativa, largueza e flexibilidade de espírito, estabilidade e equilíbrio de sentimentos, calma ponderada para decidir – é ter cultura.
(…) A cultura vem da contemplação da natureza; do estudo da Literatura, Arte e Arquitectura com letras grandes; e do conhecimento pessoal das realidades emocionais da existência. É uma escala de valores, ou méritos, diferente da usada nas esferas dominadas pela ciência e pelo comércio. Vivemos numa cultura onde o sucesso é medido pelos bens materiais. É importante alcançar objectivos materiais, mas ainda é mais importante ser-se cidadão amadurecido, bem equilibrado e culto.A cultura (…) está em nós e não sepultada em estranhas galerias. Significa bondade de espírito e é a base de um bom carácter. A plenitude da vida não vem das coisas exteriores a nós;
Ter Razão é uma Questão de Explicações
Havia que ser um fanático para querer ter sempre razão. Ter razão era sobretudo uma questão de explicações. O homem intelectual tornara-se uma criatura explicativa. Toda a gente explicava, os pais aos filhos, os maridos às mulheres, os conferencistas ao seu público, os especialistas aos leigos, os colegas aos colegas, os médicos aos pacientes, o homem à sua alma. A génese disto, a causa daquilo, as origens dos acontecimentos, a história, a estrutura, as razões pelas quais. Na maior parte dos casos, a explicação entrava por um ouvido e saía pelo outro. A alma desejava o que desejava. Tinha o seu próprio saber natural. A infeliz poisava, pobre avezinha, sobre superstruturas de explicação, sem saber para onde levantar voo.
(…) Era um afã holandês, pensou Sammler, sempre a dar à bomba para manter enxutos alguns hectares de terra. O mar invasor era uma metáfora da multiplicação dos factos e das sensações; quanto à terra, era uma terra de ideias.
. Sammler’
O Amor Indómito
Há casos de alucinação, extasis incendiados de fantasia, em que o homem subjuga ao seu transporte as férreas considerações sociais, fazendo-as reflexivas de todo o brilho da sua alegria. É por isso que as grandes paixões estão em divórcio com o juízo prudencial. No mar da vida o fanal do amor é o que mais resplende. Cegam-se os olhos e entendimento ao que mais ansiosamente o fita. Com a mente fixa nesse clarão esperançoso, que tão frouxas résteas de luz nos dá em paga de tremendos trabalhos, transcuram-se vagas e baixios que nos assaltam o pobre baixel. O amor indómito, fremente e tempestuoso é um naufrágio que se ama, uma dor com que se brinca, e, enfim, um delírio honroso em qualquer criatura.
Depois de Chorar
Não é a tristeza que nos faz chorar, mas o amor que enfrenta os vazios. As angústias e desesperos são expressões de falta.
As lágrimas que de nós brotam e caem longe do olhar dos outros são as que mais força trazem em si, as que fazem concreto e objetivo o sentir mais íntimo.
Por vezes, o coração cai nas armadilhas das tristezas antigas… outras, sentimos os espinhos das novas adversidades cravarem-se-nos na carne. Há sempre tristezas, há sempre sofrimento, haverá sempre dor enquanto houver amor.
As lágrimas não choradas não deixam de ser amargas, mas essas, ao contrário das que nascem, corroem o interior de quem com elas não chega a regar a terra que lhe segura os pés.A vida faz-se também com as nossas lágrimas e vence-se, muitas vezes, de olhos carregados de mar. O esforço que nos é exigido chega quase a ser impossível sem lágrimas. Chorar não é sinal de derrota, antes sim de um amor que busca a paz merecida.
O sentido da vida cabe dentro de uma gota de água salgada… a verdadeira paixão é a dor máxima do amor mais profundo. Aquele que faz germinar em nós o melhor…
O Futuro de Portugal
O que calcula que seja o futuro da raça portuguesa?
— O Quinto Império. O futuro de Portugal — que não calculo, mas sei — está escrito já, para quem saiba lê-lo, nas trovas do Bandarra, e também nas quadras de Nostradamus. Esse futuro é sermos tudo. Quem, que seja português, pode viver a estreiteza de uma só personalidade, de uma só nação, de uma só fé? Que português verdadeiro pode, por exemplo, viver a estreiteza estéril do catolicismo, quando fora dele há que viver todos os protestantismos, todos os credos orientais, todos os paganismos mortos e vivos, fundindo-os portuguesmente no Paganismo Superior? Não queiramos que fora de nós fique um único deus! Absorvamos os deuses todos! Conquistamos já o Mar: resta que conquistemos o Céu, ficando a terra para os Outros, os eternamente Outros, os Outros de nascença, os europeus que não são europeus porque não são portugueses. Ser tudo, de todas as maneiras, porque a verdade não pode estar em faltar ainda alguma cousa! Criemos assim o Paganismo Superior, o Politeísmo Supremo! Na eterna mentira de todos os deuses, só os deuses todos são verdade.
Somos para Nós mesmos Objecto de Descontentamento
Se os outros se observassem a si próprios atentamente como eu achar-se-iam, tal como eu, cheios de inanidade e tolice. Não posso livrar-me delas sem me livrar de mim mesmo. Estamos todos impregnados delas, mas os que têm consciência de tal saem-se, tanto quanto eu sei, um pouco melhor.
A ideia e a prática comuns de olhar para outros lados que não para nós mesmos de muito nos tem valido! Somos para nós mesmos objecto de descontentamento: em nós não vemos senão miséria e vaidade. Para não nos desanimar, a natureza muito a propósito nos orientou a visão para o exterior. Avançamos facilmente ao sabor da corrente, mas inverter a nossa marcha contra a corrente, rumo a nós próprios, é um penoso movimento: assim o mar se turva e remoinha quando em refluxo é impelido contra si mesmo.
Cada qual diz: «Olhai os movimentos do céu, olhai para o público, olhai para a querela deste homem, para o puso daquele, para o testamento daqueloutro; em suma, olhai sempre para cima ou para baixo, ou para o lado, ou para a frente, ou para trás de vós.»
O mandamento que na antiguidade nos preceituava aquele deus de Delfos ia contra esta opinião comum: «Olhai para dentro de vós,