O Deserto num Mundo Abastado
TenderĂamos ilusoriamente a crer que uma vida nascida num mundo abastado seria melhor, mais vida e de superior qualidade Ă que consiste, precisamente, em lutar com a escassez. Mas nĂŁo Ă© verdade. Por razões muito rigorosas e arquifundamentais que agora nĂŁo Ă© oportuno enunciar. Agora, em vez dessas razões, basta recordar o facto sempre repetido que constitui a tragĂ©dia de toda a aristocracia hereditária. O aristocrata herda, quer dizer, encontra atribuĂdas Ă sua pessoa umas condições de vida que ele nĂŁo criou, portanto, que nĂŁo se produzem organicamente unidas Ă sua vida pessoal e prĂłpria. Acha-se ao nascer instalado, de repente e sem saber como, no meio da sua riqueza e das suas prerrogativas. Ele nĂŁo tem, intimamente, nada que ver com elas, porque nĂŁo vĂŞm dele. SĂŁo a carapaça gigantesca de outra pessoa, de outro ser vivente, seu antepassado. E tem de viver como herdeiro, isto Ă©, tem de usar a carapaça de outra vida. Em que ficamos? Que vida vai viver o «aristocrata» de herança, a sua ou a do prĂłcer inicial? Nem uma nem outra. Está condenado a representar o outro, portanto, a nĂŁo ser nem o outro nem ele mesmo.
A sua vida perde inexoravelmente autenticidade,
Textos sobre Melhor de José Ortega y Gasset
3 resultadosInteligĂŞncia e Conhecimento nĂŁo Definem o Homem
NĂŁo se pode definir o homem pelos dotes ou meios com que conta, já que nĂŁo está dito que esses dotes, esses meios, logrem o que os seus nomes pretendem, ou melhor, que sejam adequados Ă pavorosa lide em que, queira ou nĂŁo, está. Dito de outro modo: o homem nĂŁo se ocupa em conhecer, em saber, simplesmente porque tenha dons cognoscitivos, inteligĂŞncia, etc. – mas ao contrário porque nĂŁo tem outro remĂ©dio que intentar conhecer, saber, mobilizando os meios de que dispõe, embora estes sirvam muito mal para aquele mister. Se a inteligĂŞncia humana fosse de verdade o que a palavra indica – capacidade de entender – o homem teria imediatamente entendido tudo e estaria sem nenhum problema, sem lide penosa pela frente.
NĂŁo está, pois, dito que a inteligĂŞncia do homem seja, com efeito, inteligĂŞncia; em troca, a lide em que o homem anda irremediavelmente metido, isso sim Ă© que Ă© indubitável – e, portanto, isso sim Ă© o que o define! Essa lide – segundo dissemos – chama-se «viver» e o viver consiste em que o homem está sempre em alguma circunstância, onde se acha de imediato e sem saber como, submerso, projectado num orbe ou contorno insubstituĂvel,
Disponibilidade Vazia
O cigano foi-se confessar; mas o padre, precavido, começou por interrogá-lo sobre os mandamentos de Deus. Ao que o cigano respondeu: «Olhe, senhor padre, eu ia aprender isso, mas depois ouvi um zum-zum de que tinha perdido o valor». (…) Todo o mundo – nações, indivĂduos – está desmoralizado. Durante uma temporada, esta desmoralização diverte e atĂ© vagamente ilude. Os inferiores pensam que lhes tiraram um peso de cima. Os decálogos conservam do tempo em que eram inscritos sobre pedra ou bronze oseu carácter de pesadume. A etimologia de mandar significa carregar, pĂ´r em alguĂ©m algo nas mĂŁos. Quem manda Ă©, sem remissĂŁo, quem tem o encargo. Os inferiores do mundo inteiro já estĂŁo fartos de que os encarreguem e sobrecarreguem, e aproveitam com ar festivo este tempo de pesados imperativos. Mas a festa dura pouco. Sem mandamentos que nos obriguem a viver de um certo modo, fica a nossa vida em pura disponibilidade. Esta Ă© a horrĂvel situação Ăntima em que se encontram já as melhores juventudes do mundo. De puro sentir-se livres, isentas de entraves, sentem-se vazias. Uma vida em disponibilidade Ă© maior negação que a morte. Porque viver Ă© ter que fazer algo determinado – Ă© cumprir um encargo –,