A Profundidade do Ser
E de vez em quando descer à gravidade de mim, à profundidade do meu ser. E verificar então que tudo se transfigura. Que é que significa este garatujar quase gratuito, este riso superficial, todo este modo de ser menor? A melancolia profunda, tão de dentro que ela se iguala à alegria sem medida. Espaço rarefeito de nós, é o lugar da grandeza do homem, do que é nele fundamental, o lugar do aparecimento de Deus. Mas Deus não me aparece – aparece apenas a inundação que me vem da infinita beatitude, da grandeza e do assombro. Nós vivemos habitualmente à superfície de nós, ligados ao que é da vida imediata, enredados nas mil futilidades com que se nos enchem os dias. Mas de vez em quando, o abismo da natureza, um livro ou uma música que dos abismos vem, abre-nos aos pés um precipício hiante e tudo se dilui num sentir que está antes e abaixo e mais longe que esse tudo. Há uma harmonia que em nós espera por um som, um acorde, uma palavra, para imediatamente se organizar e envolver-nos. E aí somos verdade para a infinidade dos séculos.
Textos sobre Mil de Vergílio Ferreira
6 resultadosViver pela Evidência
Creio que já falei disto. Mas de que é que diabo se não falou já? Se não falámos nós, falaram os outros, que também são gente. E no entanto, de cada vez se fala pela primeira vez, porque o que importa não é o que se sabe mas o que se vê. E ver é ver sempre de outra maneira para aquele que vê. Quantas vezes se falou da morte e da vida e do amor e de mil outras coisas sisudas? Mas volta-se sempre à mesma, porque o saber pela evidência é saber pela primeira vez; e uma dor que nos dói ou uma alegria que nos alegra não doeu nem alegrou senão a nós. De modo que de novo me intriga a extraordinária desproporção entre o complexo de uma vida e a coisa chilra que dela resulta.
Mesmo os grandes homens, que são maiores do que nós, que é que nos deixaram em testamento? Um livro, uma ideia, uma fórmula. E os que nada nos deixaram? Mas uma vida é fantástica pelo que nela aconteceu. Há assim um desperdício extraordinário, uma pura perda do que se amealhou. Relações, sentimentos, projectos, acções correntes que foram desencadear mil efeitos maus ou úteis.
Vive o Instante que Passa
Vive o instante que passa. Vive-o intensamente até à última gota de sangue. É um instante banal, nada há nele que o distinga de mil outros instantes vividos. E no entanto ele é o único por ser irrepetível e isso o distingue de qualquer outro. Porque nunca mais ele será o mesmo nem tu que o estás vivendo. Absorve-o todo em ti, impregna-te dele e que ele não seja pois em vão no dar-se-te todo a ti. Olha o sol difícil entre as nuvens, respira à profundidade de ti, ouve o vento. Escuta as vozes longínquas de crianças, o ruído de um motor que passa na estrada, o silêncio que isso envolve e que fica. E pensa-te a ti que disso te apercebes, sê vivo aí, pensa-te vivo aí, sente-te aí. E que nada se perca infinitesimalmente no mundo que vives e na pessoa que és. Assim o dom estúpido e miraculoso da vida não será a estupidez maior de o não teres cumprido integralmente, de o teres desperdiçado numa vida que terá fim.
Um Mundo de Vidas
Nós vivemos da nossa vida um fragmento tão breve. Não é da vida geral – é da nossa. É em primeiro lugar a restrita porção do que em cada elemento haveria para viver. Porque em cada um desses elementos há a intensidade com o que poderíamos viver, a profundeza, as ramificações. Nós vivemos à superfície de tudo na parte deslizante, a que é facilidade e fuga. O resto prende-se irremediavelmente ao escuro do esquecimento e distracção. Mas há sobretudo a zona incomensurável dos possíveis que não poderemos viver. Porque em cada instante, a cada opção que fazemos, a cada opção que faz o destino por nós, correspondem as inumeráveis opções que nada para nós poderá fazer. Um golpe de sorte ou de azar, o acaso de um encontro, de um lance, de uma falência ou benefício fazem-nos eliminar toda uma rede de caminhos para se percorrer um só. Em cada momento há inúmeros possíveis, favoráveis ou desfavoráveis, diante de nós. Mas é um só o que se escolheu ou nos calhou.
Assim durante a vida vão-nos ficando para trás mil soluções que se abandonaram e não poderão jamais fazer parte da nossa vida. Regresso à minha infância e entonteço com as milhentas possibilidades que se me puseram de parte.
Entender, mais pelo Sentir que pela Razão
Uma verdade só o é quando sentida – não quando apenas entendida. Ficamos gratos a quem no-la demonstra para nos justificarmos como humanos perante os outros homens e entre eles nós mesmos. Mas a força dessa verdade está na força irrecusável com que nos afirmamos quem somos antes de sabermos porquê.
Assim nos é necessário estabelecer a diferença entre o que em nós é centrífugo e o que apenas é centrípeto. Nós somos centrifugamente pela irrupção inexorável de nós com tudo o que reconhecido ou não – e de que serve reconhecê-lo ou não? – como centripetamente provindo de fora, se nos recriou dentro no modo absoluto e original de se ser.
Só assim entenderemos que da «discussão» quase nunca nasça a «luz», porque a luz que nascer é normalmente a de duas pedras que se chocam. Da discussão não nasce a luz, porque a luz a nascer seria a que iluminasse a obscuridade de nós, a profundeza das nossas sombras profundas.
Decerto uma ideia que nos semeiem pode germinar e por isso as ideias é necessário que no-las semeiem. Mas a sua fertilidade não está na nossa mão ou na estrita qualidade da ideia semeada, porque o que somos profundamente só se altera quando isso que somos o quer –
A Moral é Imperiosa e Injustificável
O comportamento moral implica sempre um juiz e a memória nele desse nosso comportamento. Assim se admite a nossa responsabilidade perante outrem e a ideia de que nesse outrem perdurará a memória de nós pelos séculos. Ora o que é que significa hoje o comportamento dos que viveram há cem anos? e há mil? Quando Deus se dava ao luxo de existir, ele garantiria a memória do que fomos. Mas agora que ele desistiu? E todavia a ordem moral continua. O «se Deus não existe tudo é permitido» de Dostoievski é perfeitamente ilusório. Nós construímos a nossa moral como se ela existisse. Alguma coisa portanto deve persistir perante a qual nos comportamos.
Os homens célebres compreende-se. Mas o comum dos mortais? Será a «consciência» um hábito? Teremos nós a vocação da imortalidade para agirmos dentro dela? Perante quem nos comportaríamos numa ilha deserta com a certeza absoluta de que ninguém saberia dos nossos actos? Que é que persiste de nós após a morte para nos julgarmos vivos então e podermos envergonhar-nos do mal que tivéssemos praticado? Toda a nossa vida é tecida de ilusão. E nada em nós consente que a dissipemos. Mas o próprio animal tem um comportamento que pode prejudicá-lo e de que não abdica.