Textos de MillĂ´r Fernandes

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Textos de Millôr Fernandes. Conheça este e outros autores famosos em Poetris.

A Ambição Superada

Certo dia uma rica senhora viu, num antiquário, uma cadeira que era uma beleza. Negra, feita de mogno e cedro, custava uma fortuna. Era, porĂ©m, tĂŁo bela, que a mulher nĂŁo titubeou – entrou, pagou, levou para casa.
A cadeira era tão bonita que os outros móveis, antes tão lindos, começaram a parecer insuportáveis à simpática senhora. (Era simpática).
Ela entĂŁo resolveu vender todos os mĂłveis e comprar outros que pudessem se equiparar Ă  maravilhosa cadeira. E vendeu-os e comprou outros.
Mas, então a casa que antes parecia tão bonita, ficou tão bem mobilada que se estabeleceu uma desarmonia flagrante entre casa e móveis. E a senhora começou a achar a casa horrível.
E vendeu a casa e comprou uma outra maravilhosa.
Mas dentro daquela casa magnífica, mobilada de maneira esplendorosa, a mulher começou, pouco a pouco, a achar seu marido mesquinho. E trocou de marido.
Mas mesmo assim não conseguia ser feliz. Pois naquela casa magnífica, com aqueles móveis admiráveis e aquele marido fabuloso, todo mundo começou a achá-la extremamente vulgar.

O Socorro

Ele foi cavando, foi cavando, cavando, pois sua profissĂŁo – coveiro – era cavar. Mas, de repente, na distracção do ofĂ­cio que amava, percebeu que cavara de mais. Tentou sair da cova e nĂŁo conseguiu. Levantou o olhar para cima e viu que, sozinho, nĂŁo conseguiria sair. Gritou. NinguĂ©m atendeu. Gritou mais forte. NinguĂ©m veio. Enlouqueceu de gritar, cansou de esbravejar, desistiu com a noite. Sentou-se no fundo da cova, desesperado. A noite chegou, subiu, fez-se o silĂŞncio das horas tardas. Bateu o frio da madrugada e, na noite escura, nĂŁo se ouvia mais um som humano, embora o cemitĂ©rio estivesse cheio dos pipilos e coaxares naturais dos matos. SĂł pouco depois da meia-noite Ă© que lá vieram uns passos. Deitado no fundo da cova o coveiro gritou. Os passos se aproximaram. Uma cabeça Ă©bria apareceu lá em cima, perguntou o que havia: «O que Ă© que há?»
O coveiro entĂŁo gritou, desesperado: «Tire-me daqui, por favor. Estou com um frio terrĂ­vel!». «Mas coitado!» – condoeu-se o bĂŞbado. – «Tem toda razĂŁo de estar com frio.
Alguém tirou a terra toda de cima de você, meu pobre mortinho!». E, pegando na pá, encheu-a de terra e pôs-se a cobri-lo cuidadosamente.

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O JuĂ­zo Final

Chegou o miserável milionário no céu e, impacientemente, esperou a sua vez de ser julgado. Introduziram-no numa sala, noutra sala, noutra sala, até que se viu frente a uma luz ofuscante, na qual pouco a pouco foi dintinguindo a figura santa do pai dos Homens. Em voz tonitroante este, tendo à direita, Pedro, e, à esquerda, uma figura que ele não conhecia, julgou sumariamente dois outros pecadores que estavam à sua frente. E, afinal, dirigiu-se a ele:
– Que fez vocĂŞ de bom na sua vida ?
– Bem, eu nasci, cresci, amei, casei, tive filhos, vivi.
– Ora – disse o Senhor – isso sĂŁo actos sociais e biolĂłgicos a que vocĂŞ estava destinado. Quero saber que bondade especĂ­fica e determinada vocĂŞ teve para com o seu semelhante.
– Bem – disse o milionário – eu criei indĂşstrias, comprei fazendas, dei emprego a muita gente, melhorei as condições sociais de muita gente.
– NĂŁo, isso nĂŁo serve – disse o Todo-Poderoso – essas acções estavam implĂ­citas ao acto de vocĂŞ enriquecer. VocĂŞ as praticou porque precisava viver melhor. NĂŁo foram intrinsecamente boas acções, desprendidas, nĂŁo servem.
O milionário escarafunchou o cérebro e não encontrou nada.

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O Homem Amesquinhado

Apesar do quadro negro de uma cúpula política e intelectual desvairada e grossa e de um povo abandonado a seu próprio destino, ainda havia ali, no país, naquele espantoso verão de 1955, uma considerável energia vital, uma exaltada alegria de viver, acentuada, em alguns lugares e num ou noutro indivíduo, ainda mais possuído do gozo pleno de um extraodinário senso lúdico tropical. Estávamos, poderíamos nos considerar como estando, num dos últimos redutos do ser humano. Depois disso viria o fim, não, como todos pensavam, com um estrondo, mas com um soluço. A densa nuvem desceria, não, como todos pensavam, feita de moléculas radioativas, mas da grosseria de todos os dias, acumulada, aumentada, transmitida, potenciada. O homem se amesquinharia, vítima da mesquinharia do seu semelhante, cada dia menos atento a um gesto de gentileza, a um ato de beleza, a um olhar de amor desinteressado, a uma palavra dita com uma precisa propriedade. E tudo começou a ficar densamente escuro, porque tudo era terrivelmente patrocinado por enlatadores de banha, fabricantes de chouriço e vendedores de desodorante, de modo que toda a pretensa graça da vida se dirigia apenas à barriga dos gordos, à tripa dos porcos, ou, no máximo de finura e elegância,

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Pensar Custa

Pensar é a todo momento e a todo custo. Pensar dói, cansa e só traz aborrecimentos. Melhor é não pensar. Mas pensar não é facultativo. Se o cérebro, a mínima parte dele que seja, deixa de estar alerta por um momento, penetram lá, como parasitas difíceis de erradicar, «ideias» vindas da imprensa, do rádio, da televisão, da propaganda geral, dos produtos em série, do consumo degenerado, dos doutores em lei, arte, literatura, ciência, política, sociologia. Essa massa de desinformação, não só inútil como nociva, nos é, aliás, imposta de maneira criminosa nos primeiros anos de nossa vida. E se, algum dia, chegamos a pensar no verdadeiro sentido do termo, todo o restante esforço da existência é para nos livrarmos de uma lamentável herança cultural. Pois, infelizmente, o cérebro humano é um dos poucos órgãos do corpo que não têm uma válvula excretora. E as fezes culturais ficam lá, nos envenenando pelo resto da vida, transformando o mais complexo e mais nobre órgão do corpo numa imensa fossa, imunda e fedorenta. Um lamentável erro da Criação.