Uma Mentira
Uma mentira, fina como um cabelo, perturba para sempre a ordem do mundo. Aquilo que sabemos tem muita importância. Tomamos decisões, vamos por aqui ou por ali, consoante aquilo que sabemos. E tudo o que virá a seguir, o futuro até ao fim dos tempos, será diferente se formos por um lado em vez de irmos por outro. Nascem pessoas devido a insignificâncias, morrem pessoas pelo mesmo motivo. Uma pessoa é uma máquina de coisas a acontecer, possibilidades multiplicadas por possibilidades em todos os instantes do seu tempo. Uma mentira, mesmo que transparente, perturba o entendimento que os outros têm da realidade, leva-os a acreditar que é aquilo que não é. Essa poluição vai turvar-lhes a lógica do mundo. As conclusões a que forem capazes de chegar serão calculadas a partir de um dado falso e, desse ponto em diante, todas as contas serão multiplicações de erros. Uma mentira baralha tudo aquilo em que toca, desequilibra o mundo. É por isso que uma mentira precisa sempre de mentiras novas para se suster. O mundo não lhe dá cobertura. Para alcançar coerência, cada mentira requer a criação apressada de um mundo de mentira que a suporte. É assim que a mentira vai avançando pela verdade adentro,
Textos sobre Movimento de JosĂ© LuĂs Peixoto
5 resultadosAo Longo da Escrita deste Livro
No ano passado, em outubro, talvez a 27, sei que foi a uma terça-feira, a minha mĂŁe incentivou-me a dar um passeio. Há muito que desistiu de me dissuadir dos livros, tanto lĂŞs que treslĂŞs, mas mantĂ©m o hábito de, cuidadosa, depois de bater Ă porta com pouca força, entrar no meu quarto e perguntar: nĂŁo te apetece dar um passeio? Na maioria das vezes, nĂŁo tenho disposição para lhe responder mas, nessa tarde, estava a meio de um capĂtulo altruĂsta e decidi fazer-lhe a vontade. O volante do carro, as minhas mĂŁos a sentirem todas as pedras quase como se estivesse a deslizá-las na estrada. Estacionei no campo, a pouca distância de um grupo de homens e mulheres, botas de borracha, que estavam a apanhar azeitona. Espalhavam uma gritaria animada que nĂŁo se alterou quando saĂ do carro e me aproximei, boa tarde. Uma vantagem do meu nome Ă© que dispenso alcunha. Olha o Livro, boa tarde. O sol estava a pĂ´r-se. Troquei graças, enquanto dois homens recolheram os panões carregados debaixo da Ăşltima oliveira e os levaram Ă s costas.
Não esqueço o que vi a seguir. As mulheres dobraram os panões vazios e dispuseram-nos na terra, em forma de corredor.
Este Livro Podia Acabar Aqui
Este livro podia acabar aqui. Sempre gostei de enredos circulares. E a forma que os escritores, pessoas do tamanho das outras, tĂŞm para sugerir eternidade. Se acaba conforme começa Ă© porque nĂŁo acaba nunca. Mas tu, eu, os Flauberts, os Joyces, os Dostoievskis sabemos que, para nĂłs, acaba. Com um ligeiro desvio, os cĂrculos transfor-mam-se em espirais e, depois, basta um ponto como este: . O bico de uma caneta espetada no papel. Um gesto a acertar na tecla entre , e -. Um movimento sobre um quadradinho de plástico. Isto: . Repara como Ă© pequeno, insuficiente para espreitarmos atravĂ©s dele, floco de cinza a planar, resto de formiga esmagada. Se o pudĂ©ssemos segurar entre os dedos, nĂŁo serĂamos capazes de senti-lo, grĂŁo de areia. Mas tu ainda estás aĂ, olá, eu ainda estou aqui e nĂŁo poderia ir-me embora sem te agradecer. AĂ e aqui ainda Ă© o mesmo lugar. Sinto-me grato por essa certeza simples. A paisagem, mundo de objectos, apenas ganhará realidade quando deixarmos estas palavras. AtĂ© lá, temos a cabeça submersa neste tempo sem relĂłgios, sem dias de calendário, sem estações, sem idade, sem agosto, este tempo encadernado. As tuas mĂŁos seguram este livro e, no entanto,
A Voz que Ouço quando Leio
Quando leio, há uma voz que lĂŞ dentro de mim. Paro o olhar sobre o texto impresso, mas nĂŁo acredito que seja o meu olhar que lĂŞ. O meu olhar fica embaciado. É essa voz que lĂŞ. Quando Ă© sĂ©ria, ouço-a falar-me de assuntos sĂ©rios. Ă€s vezes, sussurra-me. Ă€s vezes, grita-me. Essa voz nĂŁo Ă© a minha voz. NĂŁo Ă© a voz que, em filmagens de festas de anos e de natais, vejo sair da minha boca, do movimento dos meus lábios, a voz que estranho por, num rosto parecido com o meu, nĂŁo me parecer minha. A voz que ouço quando leio existe dentro de mim, mas nĂŁo Ă© minha. NĂŁo Ă© a voz dos meus pensamentos. A voz que ouço quando leio existe dentro de mim, mas Ă© exterior a mim. É diferente de mim. Ainda assim, nĂŁo acredito que alguĂ©m possa ter uma voz que lĂŞ igual Ă minha, por isso Ă© minha mas nĂŁo Ă© minha. Mas, claro, nĂŁo posso ter a certeza absoluta. NĂŁo sĂł porque uma voz Ă© indescritĂvel, mas tambĂ©m porque nunca ninguĂ©m me tentou descrever a voz que ouve quando lĂŞ e porque eu nunca falei com ninguĂ©m da voz que ouço quando leio.
Pai
Pai. A tarde dissolve-se sobre a terra, sobre a nossa casa. O céu desfia um sopro quieto nos rostos. Acende-se a lua. Translúcida, adormece um sono cálido nos olhares. Anoitece devagar. Dizia nunca esquecerei, e lembro-me. Anoitecia devagar e, a esta hora, nesta altura do ano, desenrolavas a mangueira com todos os preceitos e, seguindo regras certas, regavas as árvores e as flores do quintal; e tudo isso me ensinavas, tudo isso me explicavas. Anda cá ver, rapaz. E mostravas-me. Pai. Deixaste-te ficar em tudo. Sobrepostos na mágoa indiferente deste mundo que finge continuar, os teus movimentos, o eclipse dos teus gestos. E tudo isto é agora pouco para te conter. Agora, és o rio e as margens e a nascente; és o dia, e a tarde dentro do dia, e o sol dentro da tarde; és o mundo todo por seres a sua pele. Pai. Nunca envelheceste, e eu queria ver-te velho, velhinho aqui no nosso quintal, a regar as árvores, a regar as flores. Sinto tanta falta das tuas palavras. Orienta-te, rapaz. Sim. Eu oriento-me, pai. E fico. Estou. O entardecer, em vagas de luz, espraia-se na terra que te acolheu e conserva. Chora chove brilho alvura sobre mim.