Não Julgues Segundo a Soma
Não hás-de julgar segundo a soma. Vens-me dizer que não há nada a esperar daqueles acolá. São grosseria, gosto do lucro, egoísmo, ausência de coragem, fealdade. Mas se me podes falar assim das pedras, as quais são rudeza, peso morno e espessura, já o não podes daquilo que tiras das pedras: estátua ou templo. Quase nunca vi o ser comportar-se como o teriam feito prever as suas partes. Se pegares em vizinhos à parte, virás a concluir que cada um deles odeia a guerra e não está disposto a abandonar o lar, porque ama os filhos e a esposa e as refeições de aniversário; nem a derramar o sangue, porque é bom, dá de comer ao cão e faz carícias ao burro, nem a roubar outrem, pois tu bem vês que ele apenas preza a sua própria casa e puxa o lustro às suas madeiras e manda pintar as paredes e perfuma o jardim de flores.
E dir-me-ás: «Eles representam no mundo o amor à paz…» No entanto, o império deles não passa de uma grande terrina onde se vai cozendo a guerra. E a bondade deles e a doçura deles pelo animal ferido e a emoção deles à vista de flores não passam de ingrediente de uma magia que prepara o tilintar das armas,
Textos sobre Mundo de Antoine de Saint-Exupéry
5 resultadosMiseráveis Macabros
É que não foram tão poucas como isso as vezes que vi a piedade enganar-se. Nós, que governamos os homens, aprendemos a sondar-lhes os corações, para só ao objecto digno de estima dispensarmos a nossa solicitude. Mais não faço do que negar essa piedade às feridas de exibição que comovem o coração das mulheres. Assim como também a nego aos moribundos, e além disso aos mortos. E sei bem porquê.
Houve uma altura da minha mocidade em que senti piedade pelos mendigos e pelas suas úlceras. Até chegava a apalavrar curandeiros e a comprar bálsamos por causa deles. As caravanas traziam-me de uma ilha longínqua unguentos derivados do ouro, que têm a virtude de voltar a compor a pele ao cimo da carne. Procedi assim até descobrir que eles tinham como artigo de luxo aquele insuportável fedor. Surpreendi-os a coçar e a regar com bosta aquelas pústulas, como quem estruma uma terra para dela extrair a flor cor de púrpura. Mostravam orgulhosamente uns aos outros a sua podridão e gabavam-se das esmolas recebidas.
Aquele que mais ganhara comparava-se a si próprio ao sumo sacerdote que expõe o ídolo mais prendado. Se consentiam em consultar o meu médico, era na esperança de que o cancro deles o surpreendesse pela pestilência e pelas proporções.
Não Há Comunicação Sem Envolvimento
Só através de um cerimonial consegues comunicar. Se ouvires distraído essa música e considerares distraídamente esse templo, não nascerá nada em ti, nem serás alimentado. O único meio de que disponho para te explicar a vida a que te convido é, por conseguinte, que tu te comprometas pela força e te deixes amamentar por ela. Como te havia eu de explicar essa música que ouvi-la não basta, se não te achas preparado para te deixares formular por ela? Tão prestes vejo a morrer em ti a imagem da propriedade, que dela pouco mais resta do que gravatos. A palavra irónica é própria mas é do cancro; um sono mau, um barulho que perturba, e aí estás tu privado de Deus. E recusado. Vejo-te sentado no portal, tendo atrás de ti a porta da tua casa fechada, totalmente separado do mundo, que não passa do somatório de objectos vazios. Porque tu não comunicas com os objectos, mas com os laços que os ligam.
Cerimonial do Amor
Se não houver esperanças de que o teu amor seja recebido, o que tens a fazer é não o declarar. Poderá desenvolver-se em ti, num ambiente de silêncio. Esse amor proporciona-te então uma direcção que permite aproximares-te, afastares-te, entrares, saíres, encontrares, perderes. Porque tu és aquele que tem de viver. E não há vida se nenhum deus te criou linhas de força.
Se o teu amor não é recebido, se ele se transforma em súplica vã como recompensa da tua fidelidade, se não tens coração para te calares, nessa altura vai ter com um médico para ele te curar. É bom não confundir o amor com a escravatura do coração. O amor que pede é belo, mas aquele que suplica é amor de criado.
Se o teu amor esbarra com o absoluto das coisas, se por exemplo tem de franquear a impenetrável parede de um mosteiro ou do exílio, agradece a Deus que ela por hipótese retribua o teu amor, embora na aparência se mostre surda e cega. Há uma lamparina acesa para ti neste mundo. Pouco me importa que tu não possas servir-te dela. Aquele que morre no deserto tem a riqueza de uma casa longínqua, embora morra.
De que Serve Discutir as Ideologias?
Para compreendermos o homem e as suas necessidades, para o conhecermos naquilo que ele tem de essencial, não precisamos de pôr em confronto as evidências das nossas verdades. Sim, têm razão. Têm todos razão. A lógica demonstra tudo. Tem razão aquele que rejeita que todas as desgraças do mundo recaiam sobre os corcundas. Se declararmos guerra aos corcundas, aprenderemos rapidamente a exaltar-nos. Vingaremos os crimes dos corcundas. E, sem dúvida, também os corcundas cometem crimes.
A fim de tentarmos separar este essencial, é necessário esquecermos por um instante as divisões que, uma vez admitidas, implicam todo um Corão de verdades inabaláveis e o inerente fanatismo. Podemos classificar os homens em homens de direita e em homens de esquerda, em corcundas e não corcundas, em fascistas e em democratas, e estas distinções são incontestáveis.
Mas sabem que a verdade é aquilo que simplifica o mundo, e não aquilo que cria o caos. A verdade é a linguagem que desencadeia o universal.
Newton não «descobriu» uma lei há muito disfarçada de solução de enigma, Newton efectuou uma operação criativa. Instituiu uma linguagem de homem capaz de exprimir simultaneamente a queda da maçã num prado ou a ascensão do sol.