Uma Grande parte da Arte é para Morrer
A pasmaceira dum domingo português, que até mesmo em Lisboa é de desiludir um pícnico (quanto mais um asténico!), levou-me ao abismo onde todo o provinciano que aqui chega tem de cair, se não quer esperar no café pelo comboio do regresso. Refiro-me, claro, à inevitável revista. E fez-me bem, porque assentei ideias sobre alguns problemas de literatura e arte.
Os risos desarticulados que pelo mundo a cabo desaguam nos muitos parques Meyer, o que são em verdade senão o prolongamento protoplásmico de certas farsas medievais? Revistas também daqueles atribulados tempos, as peças primitivas que até nós chegaram não têm outro mérito senão mostrar-nos que já então se dizia mal dos tiranos em trocadilhescas palavras e significativos gestos, ficando-nos ao cabo da sua penosa leitura a humana consolação de sabermos que o povo ria a bandeiras despregadas da própria miséria, e aliviava assim as suas penas.
Uma grande parte da arte é para morrer, e a pedra de toque da sua caducidade está em ela falar apaixonadamente de pessoas e acontecimentos inteiramente esquecidos da lembrança da História. Poder-se-á dizer que não se trata de beleza pura, a qual tem uma perenidade que transcende o circunstancial. Não é verdade.
Textos sobre Necessidades
268 resultadosA Cegueira do Amor
Desde que se ame, o mais sensato dos homens não vê nenhum objecto tal como é. Exagera para menos as suas próprias vantagens e para mais os menores favores do objecto amado. Os temores e as esperanças transformam-se imediatamente em algo de romanesco. Deixa de atribuir seja o que for ao acaso; perde o sentido das probabilidades; uma coisa imaginada é uma coisa existente que influi na sua felicidade.
Um signo aterrador de que se está a perder a cabeça é que, ao pensar em qualquer facto, por minúsculo e difícil de observar que seja, o vejamos branco e o interpretemos em favor do nosso amor; um instante depois, verificamos que na realidade era negro, e mesmo assim ainda o achamos favorável ao nosso amor.
É nessa altura que uma alma presa de mortais incertezas sente vivamente a necessidade de um amigo; mas para um amante já não há amigos, como muito bem se sabia nas cortes. Eis a fonte da única espécie de indiscrição que uma mulher é capaz de perdoar.
Preciso de Ti
Antes de começar… Acabei de suplicar dez minutos para este bilhete… Terrivelmente, terrivelmente vivo, dorido, e sentindo absolutamente que preciso de ti. Permiti o silêncio deliberadamente, sentindo uma grande necessidade de me retirar em mim mesmo, para escrever, e mil coisas prevalecendo.
Mudei para outra máquina, assustadora; a máquina francesa… maldita, e eu bêbedo com o desejo de te escrever. Ouve, ligo-te de manhã: esta noite ou escrevo ou rebento, mas tenho de te ver. Vejo-te brilhante e maravilhosa e ao mesmo tempo tenho estado a escrever à June e todo dividido mas tu compreenderás — tens de compreender. Vou atirar-me a uma pausa e faço uma chamada. Anais, apoia-me. Não deixes que os silêncios te preocupem: estás toda à minha volta como uma chama clara. Nada a não ser dois pontos, não encontro o ponto nem os apóstrofos. Nenhuma cópia disto também: óptimo: bêbedo… bêbedo de vida… Anais, por Cristo: se tu soubesses o que estou a sentir agora.
Isto foi [escrito] ao chegar [ao escritório]. Agora 3h20 da manhã no quarto do Fred… Toda a força desaparecida e destruída por imagens. O Fred está na cama com a Gaby do chambre 48. Está deitada como um cadáver.
Deixar Sempre as Coisas a Meio
A grandeza, o verdadeiro luxo, está nessa displicência algo aristocrática, não na pior aceção da palavra, de deixar sempre as coisas a meio: esse copo de conhaque que se abandona na varanda do bar, as moedas que nunca mais se acabam de recolher da bandejinha em que o criado nos trazia o troco, os pratos por limpar, as tardes inteiras de torpor e moleza, desperdiçadas sem culpa porque sobra vida, porque haverá tempo. Essa é a atitude que se opõe à do miserável a quem a necessidade mais visceral e mesquinha faz ver poesia nesse sorver até à última gota o que a vida lhe oferece. E não deita nada fora, então, e guarda para amanhã, e mesquinhamente esconde as sobras para as aproveitar depois como um cão saciado que enterra os ossos junto de uma árvore para não desperdiçar nem um grama de alimento; e molha no chocolate todos os churros que fazem parte da dose, mesmo a rebentar de cheio, caibam ou não dentro do seu estômago. E mil vezes preferível deixar sempre qualquer coisa no prato, desdenhar com elegância de parte do festim; jantar, por exemplo, com uma senhora admirável e permitir graciosamente que escape viva. E,
Só Chegamos a Ser uma Parte Mínima do que Poderíamos Ser
A actividade de comprar conclui em decidir-se por um objecto; mas é também antes uma eleição, e a eleição começa por perceber as possibilidades que oferece o mercado. De onde resulta que a vida, no seu modo «comprar», consiste primeiramente em viver as possibilidades de compra como tais. Quando se fala de nossa vida sói esquecer-se disto, que me parece essencialíssimo: a nossa vida é em todo o instante e antes que nada consciência do que nos é possível. Se em cada momento não tivéssemos à nossa frente mais que uma só possibilidade, careceria de sentido chamá-la assim. Seria apenas pura necessidade. Mas ai está: esse estranhíssimo facto da nossa vida possui a condição radical de que sempre encontra ante si várias saídas, que por serem várias adquirem o carácter de possibilidades entre as quais havemos de decidir. Tanto vale dizer que vivemos como dizer que nos encontramos num ambiente de determinadas possibilidades. A este âmbito costuma chamar-se «as circunstâncias».
Toda a vida é achar-se dentro da «circunstância» ou mundo. Porque este é o sentido originário da idéia (mundo). Mundo é o repertório das nossas possibilidades vitais. Não é, pois, algo à parte e alheio à nossa vida,
Considerações Sobre a Amizade
É a insuficiência do nosso ser que faz nascer a amizade, e é a insuficiência da própria amizade que a faz perecer. Está-se sozinho, sente-se a própria miséria, sente-se necessidade de apoio, procura-se quem lhe favoreça os gostos, um companheiro nos prazeres e nos pesares; quer-se um homem de quem se possa possuir o coração e o pensamento. Então a amizade parece ser o que de mais doce há no mundo; tem-se o que se desejou, logo se muda de ideia. Quando se vê de longe algum bem, ele fixa de início os nossos desejos, e quando se chega a ele, sente-se o seu nada. A nossa alma, de que ele prendia a vista na distância, não pode repousar-se nele quando vê mais adiante: assim a amizade, que de longe limitava todas as nossas pretensões, cessa de limitá-las de perto; não preenche o vazio que prometera preencher; deixa-nos necessidades que nos distraem e nos levam a outros bens.
Então a gente torna-se negligente, difícil, exige-se logo como um tributo as complacências que de início eram recebidas como um dom. É do carácter dos homens apropriar-se a pouco e pouco até das graças de que beneficiam; uma longa posse acostuma-os naturalmente a olhar as coisas que possuem como sendo deles;
A Castração da Personalidade
O homem é um animal gregário. Político, dizia Aristóteles, ou seja, membro da cidade. Mas não só da cidade – de todas as greis espontâneas ou artificiais, estáveis ou precárias, onde quer que se encontre. Não pode suportar a ideia de estar só, consigo – quer ser unidade e não individualidade. Tem necessidade de se sentir cotovelo com cotovelo, pele com pele, no calor de uma multidão, ligado, seguro, uniforme, conforme. Se o leão anda só, em nós predomina o instinto ovino, do rebanho – os próprios individualistas, para afirmar o seu individualismo, congregam-se: sempre segundo a prática ovina.
O homem, quando só, sente-se incompleto – tem medo. Opor-se à grei significa separar-se, permanecer só, morrer. Os conceitos do bem e do mal nascem da necessidade de convivência. É bem o que aproveita ao grupo, mal o que o prejudica ou não beneficia. O rebanho não quer que cada ovelha pense demasiado em si, e como a privilegiada é a que obtém a boa opinião das outras, vê-se forçada, ainda que contra os seus gostos e interesses, a agir no sentido do bem supremo do rebanho. Há que pagar, com a castração da personalidade, a segurança contra o medo.
O Verdadeiro Homem
É evidente que a natureza se preocupa bem pouco com o que o homem tem ou não no espírito. O verdadeiro homem é o homem selvagem, que se relaciona com a natureza tal como ela é. Assim que o homem aguça a sua inteligência, desenvolve as suas ideias e a forma de as exprimir, ou adquire novas necessidades, a natureza opõe-se aos seus desígnios em toda a linha. Só lhe resta violentá-la, continuamente. Ela, pelo seu lado, também não fica quieta. Se ele suspende por momentos o trabalho que se impusera, ela torna-se de novo dominadora, invade-o, devora-o, destrói ou desfigura a sua obra; dir-se-ia que acolhe com impaciência as obras-primas da imaginação e da perícia do homem.
Que importam à ronda das estações, ao curso dos astros, dos rios e dos ventos, o Parténon, São Pedro de Roma e tantas outras maravilhas da arte? Um tremor de terra ou a lava de um vulcão reduzem-nos a nada; os pássaros farão os seus ninhos nas suas ruínas; os animais selvagens irão buscar os ossos dos construtores aos seus túmulos entreabertos.
Instinto de Sociabilidade
O instinto de sociabilidade de cada um está na proporção inversa da sua idade. A criancinha solta gritos de medo e de dor, lamentando ter sido deixada sozinha por alguns minutos. Para jovens rapazes, estar sozinho é uma grande penitência. Os adolescentes reunem-se com facilidade: só os mais nobres e mais dotados de espírito já procuram, às vezes, a solidão. Contudo, passar um dia inteiro sozinhos ainda lhes é penoso. Para o homem adulto, todavia, isso é fácil: ele consegue passar bastante tempo sozinho, e tanto mais quanto mais avança nos anos. O ancião, único sobrevivente de gerações desaparecidas, encontra na solidão o seu elemento próprio, em parte porque já ultrapassou a idade de sentir os prazeres da vida, em parte porque já está morto para eles. Entretanto, em cada indivíduo, o aumento da inclinação para o isolamento e a solidão ocorrerá em conformidade com o seu valor intelectual.
Pois tal tendência, como dito, não é puramente natural, produzida directamente pela necessidade, mas, antes, só um efeito da experiência vivida e da reflexão sobre ela, sobretudo da intelecção adquirida a respeito da miserável índole moral e intelectual da maioria dos homens. O que há de pior nesse caso é o facto de as imperfeições morais e intelectuais do indivíduo conspirarem entre si e trabalharem de mãos dadas,
Liberdade e Constrangimento São Dois Aspectos da Mesma Necessidade
Liberdade e constrangimento são dois aspectos da mesma necessidade, que é ser aquele e não um outro. Livre de ser aquele, não livre de ser um outro. (…) Não há quem o não saiba. Os que reclamam a liberdade reclamam a moral interior, para que nem assim o homem deixe de ser governado. O gendarme – dizem eles de si para si – está no interior. E os que solicitam a coacção afirmam-te que ela é liberdade de espírito. Tu, na tua casa, tens a liberdade de atravessar as antecâmaras, de medir a passos largos as salas, uma por uma, de empurrar as portas, de subir ou descer as escadas. E a tua liberdade cresce à medida que aumentam as paredes e as peias e os ferrolhos. E dispões de um número tanto maior de actos possíveis onde escolher aquele que hás-de praticar, quantas mais obrigações te impôs a duração das tuas pedras. E, na sala comum, onde assentas arraiais no meio da desordem, deixas de dispor de liberdade, passa a haver dissolução.
E, afinal de contas, todos sonham com uma e a mesma cidade. Mas um reclama para o homem, tal como ele é, o direito de agir.
Os Homens não Sabem o que é o Amor
De forma geral, os homens não sabem o que é amor, é um sentimento que lhes é totalmente estranho. Conhecem o desejo, o desejo sexual em estado bruto e a competição entre machos; e depois, muito mais tarde, já casados, chegam, chegavam antigamente, a sentir um certo reconhecimento pela companheira quando ela lhes tinha dado filhos, tinha mantido bem a casa e era boa cozinheira e boa amante – então chegavam a ter prazer por dormirem na mesma cama. Não era talvez o que as mulheres desejavam, talvez houvesse aí um mal-entendido, mas era um sentimento que podia ser muito forte – e mesmo quando eles sentiam uma excitação, aliás cada vez mais fraca, por esta ou aquela mulher, já não conseguiam literalmente viver sem a mulher e, se acontecia ela morrer, eles desatavam a beber e acabavam rapidamente, em geral uns meses bastavam. Os filhos, esses, representavam a transmissão de uma condição, de regras e de um património. Era evidentemente o que acontecia nas classes feudais, mas igualmente com os comerciantes, camponeses, artesãos, de forma geral com todos os grupos da sociedade. Hoje, nada disso existe.
As pessoas são assalariadas, locatárias, não têm nada para deixar aos filhos.
Da Liberdade
A: Eis uma bateria de canhões que atira junto aos nossos ouvidos; tendes a liberdade de ouvi-la e de a não ouvir?
B: É claro que não posso evitar ouvi-la.
A: Desejaríeis que esse canhão decepasse a vossa cabeça e as da vossa mulher e da vossa filha que estivessem convosco?
B: Que espécie de proposição me fazeis? Eu jamais poderia, no meu são juízo, desejar semelhante coisa. Isso é-me impossível.
A: Muito bem; ouvis necessariamente esse canhão e, também necessariamente, não quereis morrer, vós e a vossa família, de um tiro de canhão; não tendes nem o poder de não o ouvir nem o poder de querer permanecer aqui.
B: Isso é evidente.
A: Em consequência, destes uma trintena de passos a fim de vos colocardes ao abrigo do canhão: tivestes o poder de caminhar comigo estes poucos passos?
B: Nada mais verdadeiro.
A: E se fôsseis paralítico? Não teríeis podido evitar ficar exposto a essa bateria; não teríeis o poder de estar onde agora estais: teríeis então necessariamente ouvido e recebido um tiro de canhão e necessariamente estaríeis morto?
B: Nada mais claro.
A: Em que consiste, pois,
A Vantagem do Conhecimento Alargado
No que se refere ao espírito dotado de capacidades elevadas – o único que pode ousar a solução dos grandes e difíceis problemas concernentes ao universal e geral das coisas -, ele fará bem em estender o máximo possível o seu horizonte, mas sempre com equanimidade, para todos os lados, sem se perder muito numa dessas regiões bem específicas e conhecidas apenas por poucos. Ou seja, sem penetrar demasiado profundamente nas especialidades de alguma ciência isolada, muito menos envolver-se com a micrologia. Pois não tem necessidade de se dedicar a objectos de difícil acesso para livrar-se da multidão de concorrentes; pelo contrário, justamente aquilo que está ao alcance de todos é o que fornecerá a matéria para combinações novas, importantes e verdadeiras. Desse modo, o seu mérito poderá ser apreciado por todos os que conhecem os dados, portanto, por uma boa parte do género humano. Nisso reside a imensa diferença entre a glória que os poetas e os filósofos alcançam e aquela acessível a físicos, químicos, anatomistas, mineralogistas, zoólogos, filólogos, historiadores, etc.
Pensamos de Mais e Sentimos de Menos
Queremos todos ajudar-nos uns aos outros. Os seres humanos são assim. Queremos viver a felicidade dos outros e não a sua infelicidade. Não queremos odiar nem desprezar ninguém. Neste mundo há lugar para toda a gente. E a boa terra é rica e pode prover às necessidades de todos.
O caminho da vida pode ser livre e belo, mas desviámo-nos do caminho. A cupidez envenenou a alma humana, ergueu no mundo barreiras de ódio, fez-nos marchar a passo de ganso para a desgraça e a carnificina. Descobrimos a velocidade, mas prendemo-nos demasiado a ela. A máquina que produz a abundância empobreceu-nos. A nossa ciência tornou-nos cínicos; a nossa inteligência, cruéis e impiedosos. Pensamos de mais e sentimos de menos. Precisamos mais de humanidade que de máquinas. Se temos necessidade de inteligência, temos ainda mais necessidade de bondade e doçura. Sem estas qualidades, a vida será violenta e tudo estará perdido.
O avião e a rádio aproximaram-nos. A própria natureza destes inventos é um apelo à fraternidade universal, à união de todos. Neste momento, a minha voz alcança milhões de pessoas através do mundo, milhões de homens sem esperança, de mulheres, de crianças, vítimas dum sistema que leva os homens a torturar e a prender pessoas inocentes.
O Passado é Tão Importante Quanto o Presente, e Vice-Versa
Assim como não se poderão compreender coisas novas e jovens, sem se familiarizar com a tradição, assim deverá o amor às antigas permanecer estéril e falso, se nos fecharmos no espírito novo, que delas provém, segundo uma necessidade histórica.
A Capacidade de Adaptação dos Portugueses
Os observadores estrangeiros maravilham-se de que Portugal resista à crise política e económica com tal poder de adaptação. Há nos Portugueses uma sinceridade para com o imediato que desconcerta o panorama que transcende o imediato. O infinito é o que eu situo – dizem. E assim vivem. Protegidos talvez por essa condição de afecto pelas coisas, pelos seus próprios delitos, que não consideram dramáticos, só ao jeito das necessidades. De resto — quem se apresenta a salvar-nos que não esteja suspeitamente indignado? Os que muito se formalizam muito escondem; os que acusam demasiado privam-se de ser leais consigo próprios. O país não precisa de quem diga o que está errado; precisa de quem saiba o que está certo.
O Homem não Foge da Dor
Não é verdade que o homem procure o prazer e fuja da dor. São de tomar em conta os preconceitos contra os quais invisto. O prazer e a dor são consequências, fenómenos concomitantes. O que o homem quer, o que a menor partícula de um organismo vivo quer, é o aumento de poder: é em consequência do esforço em consegui-lo que o prazer e a dor se efectivam; é por causa dessa mesma vontade que a resistência a ela é procurada, o que indica a busca de alguma coisa que manifeste oposição.
A dor, sendo entrave à vontade de poder do homem, é portanto um acontecimento normal – a componente normal de qualquer fenómeno orgânico. E o homem não procura evitá-la, pois tem necessidade dela, já que qualquer vitória implica uma resistência vencida.
Tome-se como exemplo o mais simples dos casos, o da nutrição de um organismo primário; quando o protoplasma estende os pseudópodes para encontrar resistências, não é impulsionado pela fome, mas pela vontade de poder; acima de tudo, ele intenta vencer, apropriar-se do vencido, incorporá-lo a si. O que se designa por nutrição é pois um fenómeno consecutivo, uma aplicação da vontade original de devir mais forte.
Amo-te Por Todas as Razões e Mais Uma
Por todas as razões e mais uma. Esta é a resposta que costumo dar-te quando me perguntas por que razão te amo. Porque nunca existe apenas uma razão para amar alguém. Porque não pode haver nem há só uma razão para te amar.
Amo-te porque me fascinas e porque me libertas e porque fazes sentir-me bem. E porque me surpreendes e porque me sufocas e porque enches a minha alma de mar e o meu espírito de sol e o meu corpo de fadiga. E porque me confundes e porque me enfureces e porque me iluminas e porque me deslumbras.
Amo-te porque quero amar-te e porque tenho necessidade de te amar e porque amar-te é uma aventura. Amo-te porque sim mas também porque não e, quem sabe, porque talvez. E por todas as razões que sei e pelas que não sei e por aquelas que nunca virei a conhecer. E porque te conheço e porque me conheço. E porque te adivinho. Estas são todas as razões.
Mas há mais uma: porque não pode existir outra como tu.
Nós Queimaremos o Mundo, Querida
Diz a Madame de Stael que os primeiros amores não são os mais fortes porque nascem simplesmente da necessidade de amar. Assim é comigo; mas, além dessa, há uma razão capital, e é que tu não te pareces nada com as mulheres vulgares que tenho conhecido. Espírito e coração como o teu são prendas raras; alma tão boa e tão elevada, sensibilidade tão melindrosa, razão tão recta não são bens que a natureza espalhasse às mãos cheias (…). Tu pertences ao pequeno número de mulheres que ainda sabem amar, sentir, e pensar. Como te não amaria eu? Além disso tens para mim um dote que realça os mais: sofreste. É minha ambição dizer à tua grande alma desanimada: «levanta-te, crê e ama: aqui está uma alma que te compreende e te ama também».
A responsabilidade de fazer-te feliz é decerto melindrosa; mas eu aceito-a com alegria, e estou certo que saberei desempenhar este agradável encargo. Olha, querida; também eu tenho pressentimento acerca da minha felicidade; mas que é isto senão o justo receio de quem não foi ainda completamente feliz?
Obrigado pela flor que mandaste; dei-lhe dois beijos como se fosse a ti mesma, pois que apesar de seca e sem perfume,
A Vulgaridade Intelectual
Hoje, (…) o homem médio tem as «ideias» mais taxativas sobre quanto acontece e deve acontecer no universo. Por isso perdeu o uso da audição. Para quê ouvir, se já tem dentro de si o que necessita? Já não é época de ouvir, mas, pelo contrário, de julgar, de sentenciar, de decidir. Não há questão de vida pública em que não intervenha, cego e surdo como é, impondo as suas «opiniões».
Mas não é isto uma vantagem? Não representa um progresso enorme que as massas tenham «ideias», quer dizer, que sejam cultas? De maneira alguma. As «ideias» deste homem médio não são autenticamente ideias, nem a sua posse é cultura. A ideia é um xeque-mate à verdade. Quem queira ter ideias necessita antes de dispor-se a querer a verdade, e aceitar as regras do jogo que ela imponha. Não vale falar de ideias ou opiniões onde não se admite uma instância que as regula, uma série de normas às quais na discussão cabe apelar. Estas normas são os princípios da cultura. Não me importa quais são. O que digo é que não há cultura onde não há normas. A que os nossos próximos possam recorrer.
Não há cultura onde não há princípios de legalidade civil a que apelar.