A Dádiva da Evidência de Si
Que havia, pois, mais para a vida, para responder ao seu desafio de milagre e de vazio, do que vivê-la no imediato, na execução absoluta do seu apelo? Eliminar o desejo dos outros para exaltar o nosso. Queimar no dia-a-dia os restos de ontem. Ser só abertura para amanhã. A vida real não eram as leis dos outros e a sua sanção e o seu teimoso estabelecimento de uma comunidade para o furor de uma plenitude solitária. O absoluto da vida, a resposta fechada para o seu fechado desafio só podia revelar-se e executar-se na união total com nós mesmos, com as forças derradeiras que nos trazem de pé e são nós e exigem realizar-se até ao esgotamento. Este «eu» solitário que achamos nos instantes de solidão final, se ninguém o pode conhecer, como pode alguém julgá-lo? E de que serve esse «eu» e a sua descoberta, se o condenamos à prisão? Sabê-lo é afirmá-lo! Reconhecê-lo é dar-lhe razão. Que ignore isso o que ignora que é. Que o despreze e o amordace o que vive no dia-a-dia animal. Mas quem teve a dádiva da evidência de si, como condenar-se a si ao silêncio prisional? Ninguém pode pagar, nada pode pagar a gratuitidade deste milagre de sermos.
Textos sobre Ontem
43 resultadosMedo de Casar
Resumo de todos os argumentos a favor e contra o meu casamento:
1. Incapacidade de suportar a vida sozinho, o que não implica incapacidade de viver, pelo contrário; até é improvável que eu saiba viver com alguém, mas sozinho não consigo aguentar o assalto da minha própria vida, as exigências da minha pessoa, os ataques do tempo e da idade, a vaga pressão do desejo de escrever, a insónia, a proximidade da loucura — não consigo aguentar isto só. É claro que junto «talvez» a tudo isto. A relação com F. vai dar à minha existência mais força para resistir.
2. Tudo me faz imediatamente pensar. Todas as piadas no jornal humorístico, o que me lembro de Flaubert e de Grillparzer, as camisas de noite nas camas dos meus pais, ali postas para a noite, o casamento de Max. Ontem a minha irmã disse: «Todas as pessoas casadas (as pessoas que conhecemos) são felizes. Não percebo», esta afirmação também me fez pensar, fiquei outra vez com medo.
3. Tenho de estar só muito tempo. O que consegui fazer foi apenas o resultado de estar só.
4. Odeio tudo o que não se relacione com a literatura,
Somos de ontem, não sabemos nada
Somos de ontem, não sabemos nada.
Preciso de Ti
Antes de começar… Acabei de suplicar dez minutos para este bilhete… Terrivelmente, terrivelmente vivo, dorido, e sentindo absolutamente que preciso de ti. Permiti o silêncio deliberadamente, sentindo uma grande necessidade de me retirar em mim mesmo, para escrever, e mil coisas prevalecendo.
Mudei para outra máquina, assustadora; a máquina francesa… maldita, e eu bêbedo com o desejo de te escrever. Ouve, ligo-te de manhã: esta noite ou escrevo ou rebento, mas tenho de te ver. Vejo-te brilhante e maravilhosa e ao mesmo tempo tenho estado a escrever à June e todo dividido mas tu compreenderás — tens de compreender. Vou atirar-me a uma pausa e faço uma chamada. Anais, apoia-me. Não deixes que os silêncios te preocupem: estás toda à minha volta como uma chama clara. Nada a não ser dois pontos, não encontro o ponto nem os apóstrofos. Nenhuma cópia disto também: óptimo: bêbedo… bêbedo de vida… Anais, por Cristo: se tu soubesses o que estou a sentir agora.
Isto foi [escrito] ao chegar [ao escritório]. Agora 3h20 da manhã no quarto do Fred… Toda a força desaparecida e destruída por imagens. O Fred está na cama com a Gaby do chambre 48. Está deitada como um cadáver.
Se Pudesses Estar Comigo Vinte e Quatro horas do Dia
Se pudesses estar comigo durante as vinte e quatro horas do dia, observar cada gesto meu, dormir comigo, comer comigo, trabalhar comigo, tudo isto não poderia ter lugar. Quando me vejo afastado de ti, penso em ti constantemente e isso dá cor a tudo o que eu diga ou faça. Se soubesses o quão fiel te sou! Não apenas fisicamente, mas mentalmente, moralmente, espiritualmente. Aqui não há qualquer tentação para mim, absolutamente nenhuma. Estou imune a Nova Iorque, aos meus velhos amigos, ao passado, a tudo. Pela primeira vez na minha vida, estou completamente centrado em outro ser… Em ti. Sinto-me capaz de dar tudo, sem ter medo de ficar exaurido ou de me ver perdido. Quando ontem escrevi no meu artigo que «se eu nunca tivesse ido para a Europa…», não era a Europa que tinha em mente, mas sim tu.
Mas não posso dizer isso ao mundo num artigo. Tu és a Europa. Pegaste em mim, um homem despedaçado, e tornaste-me completo. E não hei-de desintegrar-me — não existe o menor perigo disso. Mas agora vejo-me mais sensível, mais receptivo a qualquer sinal de perigo. Se te persigo loucamente, se te imploro para ouvires, se fico à tua porta e espero por ti,
A Memória é o Maior Tormento do Homem
Considera o rebanho que passa ao teu lado pastando: ele não sabe o que é ontem e o que é hoje; ele saltita de lá para cá, come, descansa, digere, saltita de novo; e assim de manhã até a noite, dia após dia; ligado de maneira fugaz por isto, nem melancólico nem enfadado. Ver isto desgosta duramente o homem porque ele vangloria-se da sua humanidade frente ao animal, embora olhe invejoso para a sua felicidade – pois o homem quer apenas isso, viver como animal, sem melancolia, sem dor; e o que quer entretanto em vão, porque não quer como o animal. O homem pergunta mesmo um dia ao animal: por que não falas sobre a tua felicidade e apenas me observas?
O animal quer também responder e falar, isso deve-se ao facto de que sempre se esquece do que queria dizer, mas também já esqueceu esta resposta e silencia: de tal modo que o homem se admira disso. Todavia, o homem também se admira de si mesmo por não poder aprender a esquecer e por sempre se ver novamente preso ao que passou: por mais longe e rápido que ele corra, a corrente corre junto. É um milagre: o instante em um átimo está aí,
O Encanto da Vida
Todas as noites acordado até desoras, à espera da última cena de pancadaria num jogo de futebol, do último insulto num debate parlamentar, do último discurso demagógico num comício eleitoral, da última pirueta dum cabotino entrevistado, da última farsa no palco internacional. Crucificações masoquistas, que a prudência desaconselha e a imprudência impõe. Vou deste mundo farto de o conhecer e faminto de o descobrir.
Mas não há perspicácia, nem constância de atenção capazes de lhe prefigurar os imprevistos. O que acontece hoje excede sempre o que sucedeu ontem. A violência, o facciosismo, a ambição de poder, a crueldade e o exibicionismo não têm limites. Felizmente que a abnegação, a generosidade e o altruísmo também não. E o encanto da vida é precisamente esse: nenhum excesso nela ser previsível. Nem no mal nem no bem. E não me canso de o verificar, de surpresa em surpresa, à luz dos acontecimentos.
Quando julgo que estou devidamente informado sobre o amor, sobre o ódio, sobre a santidade, sobre a perfídia, sobre as virtudes e os defeitos humanos, acabo por concluir que soletro ainda o á-bê-cê da realidade. Cabeçudo como sou, teimo na aprendizagem. Hoje fizeram-me a revelação surpreendente de que um avarento meu conhecido,
As Coisas Humanas São Efémeras E Sem Valor
Pensa de contínuo em quantos médicos morreram, eles que tinham tanta vez carregado o sobrolho à cabeceira dos seus doentes; quantos astrólogos que julgaram maravilhar os outros predizendo-lhes a morte; quantos filósofos após uma infinidade de ásperas disputas sobre a morte e a imortalidade; quantos príncipes depois de terem dado a morte a tanta gente; quantos tiranos que, como se fossem imortais, abusaram, com uma arrogância nunca vista, do poder, a ponto de atentarem contra a vida humana. Quantas cidades, se assim podemos dizer, morreram de raiz: Heliqué, Pompeia, Herculano, e outras que não têm conto! Enumera agora, um após outro todos aqueles que conheceste. Este, depois de prestar os últimos serviços àquele, foi posto de pés juntos no leito fúnebre por um terceiro a quem também chegou a sua vez.
E em tão pouco espaço de tempo! Em suma, as coisas humanas é considerá-las como efémeras e sem valor: ontem, um pouco de greda; amanhã, múmia e um punhado de cinzas. Esta minúscula duração vive-a a tom com a natureza e chega ao fim com a alma contente: como a azeitona madurinha que tombasse abençoando a terra que a criou e dando graças à árvore que a deixou crescer.
Intragável é Estar Parado
Intragável é estar parado. Não mudar. Aguentar. Sobreviver. Permanecer. Mesmo que seja pouco, mesmo que seja insuficiente. Manter tudo como está apenas para não correr o risco de ficar pior. Intragável é não perdoar, não ilibar. E só criticar, só apontar, só atacar. E não criar, não refazer, não imaginar. Intragável é não acreditar. Intragável é o que não é maravilhoso, o que não é delicioso, o que não é fantástico, monumental, abençoado, miraculoso, espantoso. Intragável é acordar para o dia a recusar o dia, a não querer o dia, a não apetecer o dia, a não pensar nas mil e uma maneiras de o tornar inesquecível. Deixar estar. Não mexer, não querer a ferida se for através da ferida que se chega à cura. Ser cauteloso, prevenido. Intragável é o que não é exagerado, o que não é desproporcionado, o que não parece incomportável. Se não parece incomportável, é insuportável. Não quero. Não admito. Não me admito. Intragável é repetir. Hoje como réplica exacta de ontem e como réplica exacta de amanhã. As mesmas coisas, as mesmas palavras, os mesmos actos, os mesmos movimentos. Sempre igual. Sempre o mesmo. Intragável é continuar por continuar, andar por andar, viver por viver.
Amar até Sempre
A Maria João e eu vivemos juntos, todos os dias, a não ser os poucos (mais do que quarenta) em que os hospitais nos desinstalaram, desde o primeiro dia de Janeiro do ano 2000.
Mas, mesmo que conte só a data do casamento – no dia 30 deste mês, uma sexta-feira, alcançaremos 11 anos de casamento – acho que prescindimos alegremente de qualquer crise. O meu amor por ela é cada vez maior. O amor dela por mim, de tanto ser amada, começa a ser uma possibilidade. Foram só menos de quatro mil dias – uma pequena parte das nossas vidas – mas foram quatro mil dias de amor, felicidade ou medo de não ser amado, mais a sorte de ter sido. Uma eternidade.
Assim aconselho os amantes e os apaixonados: a primeira coisa a reter, sejam quais forem as primeiras e segundas reacções das pessoas amadas, é que se está a espalhar e visitar uma sorte amorosa sobre elas. Não é uma questão de amor. É uma questão de tempo. Esperar e não reparar é fundamental. Para quem ama, amanhã, por muito improvável que seja, é melhor do que ontem. Mas hoje pode ser, quando se tem sorte,
Cada Dia que Passa me Aproxima de Si
Bom! Recebo neste instante a sua carta escrita à luz de uma só vela – e tenho de retirar tudo, tudo, tudo o que escrevi! Pois acabou-se! Não retiro. A minha querida dizia no outro dia que devíamos mostrar um ao outro todos os estados de espírito em que tivéssemos estado. Mostro-lhe, assim, que estive hoje, ontem, antes de ontem num estado de impaciência por uma palavra sua, gemendo e queixando-me de «ne voir rien venir». E mostro-lhe assim o desejo de ter todos os dias, ou quase todos, um doce, adorado, apetecido e consolador «petit mot». (…) As pessoas que se estimam nunca deviam se apartar; a culpa tem-na a nossa complicada civilização; o encanto seria que os que se amam se juntassem em tribos, acampando aqui e além, com as suas afeições e a sua bilha de água, and «settling down to be happy, anywhere, under a tree».
Cada dia que passa, agora, me aproxima de si. (…) Eu também não realizo bem a situação. Ela não deixa de ser ligeiramente romântica. Separamo-nos amigos, reencontramo-nos noivos. Que profunda, grave, séria diferença! Enquanto a gente se escreve, num tom de alegre felicidade, gracejando por vezes, falando de sentimentos e dando «notícias do coração» –
Vive o Dia de Hoje!
Não penses para amanhã. Não lembres o que foi de ontem. A memória teve o seu tempo quando foi tempo de alguma coisa durar. Mas tudo hoje é tão efémero. Mesmo o que se pensa para amanhã é para já ter sido, que é o que desejamos que seja logo que for. É o tempo de Deus que não tem futuro nem passado. Foi o que dele nós escolhemos no sonho do nosso absoluto. Não penses para amanhã na urgência de seres agora. Mesmo logo à tarde é muito tarde. Tudo o que és em ti para seres, vê se o és neste instante. Porque antes e depois tudo é morte e insensatez. Não esperes, sê agora. Lê os jornais. O futuro é o embrulho que fizeres com eles ou o papel urgente da retrete quando não houver outro.
É Absurdo Falar da Ignorância da Juventude
Para recuperar a minha juventude era capaz de fazer tudo no mundo, excepto ginástica, levantar-me cedo, ou ser respeitável. A Juventude! Não há nada que se lhe compare. É absurdo falar da ignorância da juventude. Hoje em dia só tenho algum respeito pelas opiniões das pessoas muito mais novas do que eu. Parecem-me estar à minha frente. A vida revelou-lhes a sua última maravilha. Quanto aos velhos, contradigo-os sempre. É uma questão de princípio. Se lhe pedirmos opinião sobre uma coisa que aconteceu ontem, eles dão-nos solenemente as opiniões correntes em 1820, quando as pessoas usavam golas altas, acreditavam em tudo e não sabiam absolutamente nada.
Enfrentar-se a Si Próprio
Ódio da introspecção activa. Explicações da nossa alma, tais como: ontem eu estava assim e assado, por esta ou por aquela razão; hoje estou assim e assado, por qualquer outra razão. Não é verdade, nem por esta razão nem por aquela razão, e por isso também nem assim nem assado.
Enfrentar-se a si próprio calmamente, sem precipitações, viver como se tem de viver, não andar à caça do próprio rabo como o cão.
Adormeci nos arbustos. Um barulho acordou-me. Encontrei um livro nas minhas mãos, que tinha estado a ler. Deitei-o fora e levantei-me de um salto. Passava pouco do meio-dia; em frente da colina em que eu estava estendia-se uma grande planura com aldeias e lagos e sebes todas iguais, altas, que pareciam feitas de junco. Pus as mãos nas ancas, examinei tudo com o olhar, e ao mesmo tempo escutei o barulho.
Predisposição de Espírito
A nossa tristeza faz-nos parecer tudo o que vemos triste; a nossa alegria tudo nos mostra alegre; e o nosso contentamtento tudo nos mostra com agrado; os objectos influem menos em nós, do que nós influímos em nós mesmos. Vemos como de fora as aparências de que o mundo se compõe, por isso não conhecemos o seu verdadeiro ser, nem gozamos delas no estado em que as achamos, mas sim naquele em que elas nos acham. A delícia dos olhos, e do gosto, dependem mais da nossa disposição que da sua eficácia; o mesmo, que ontem nos atraiu hoje nos aborrece; ontem porque estava sem perturbação o nosso ânimo, hoje porque está com desassossego; e tudo porque não somos hoje, o que ontem fomos: o mesmo que hoje nos agrada, amanhã nos desgosta, e os objectos, por serem os mesmos, não causam sempre em nós as mesmas impressões; por motivos diferentes recebemos alterações iguais. O pouco que basta para afligir-nos, ou para contentar-nos, bem mostra o pouco constantes, que são em nós a aflição, e o contentamento; por isso uma, e outra coisa nos deixa com a mesma facilidade com que nos penetra.
Reivindico o Meu Direito Próprio de Pensar
Queixas-te de teres aí falta de livros. Não interessa a quantidade, mas sim a qualidade: a leitura é proveitosa se for metódica, se apenas for variada torna-se um mero divertimento. Quem deseja chegar à meta que se propôs deve seguir um só caminho, e não vaguear por vários: de outro modo não viaja, deixa-se ir ao acaso.
(…) Confio, e muito, no pensamento dos grandes homens, mas reivindico o meu direito próprio de pensar. De resto eles não nos legaram verdades acabadas, mas sim sujeitas à investigação; e porventura teriam descoberto o essencial se não tivessem investigado também temas supérfluos. Mas gastaram tempo imenso em jogos de palavras, em discussões capciosas que aguçam inutilmente o engenho. Construimos argumentos tortuosos, empregamos termos de significação ambígua, finalmente desatamos toda a trama. Temos assim tanto tempo livre? Já sabemos como encarar a vida e a morte? O que devemos procurar, com todas as forças, é o modo de nos não deixarmos enganar pelas coisas, e não pelas palavras.
Para quê analisar as diferenças entre palavras sinónimas, que não causam dificuldade a ninguém a não ser em discussões de escola? As coisas enganam-nos: aprendamos a observá-las. Tomamos por bens coisas que o não são,
Dava a Vida para te Apertar Contra o Meu Peito
Nunca te vira tão linda e sedutora ao mesmo tempo como ontem à noite. Dava a vida para te apertar contra o meu peito. Diz-me, era o amor que eu te inspiro que te fazia assim tão bela? Seria a paixão que me abrasa que te tornava tão atraente a meus olhos? Bem viste: não podia deixar de olhar para ti, nem de beijar a candeiazinha de oiro. Quanto tu saíste tive vontade de me prosternar a teus pés e de te adorar como a uma divindade. Ah! Se tu me quisesses metade do que eu te quero! Deste volta à minha pobre cabeça; repara no mal que me fizeste querendo-me como me queres. Às oito, esperar-te-ei numa ansiedade.
A Verdadeira Divisão Humana
Sois vós um daqueles a quem se chama feliz? Pois bem, vós estais tristes todos os dias. Cada dia tem uma grande amargura e um pequeno cuidado. Ontem tremíeis pela saúde de alguém que vos é caro, hoje receais pela vossa; amanhã será uma inquiteação de dinheiro, depois a diatribe de um caluniador ou a infelicidade de um amigo, mais tarde o mau tempo que faz, qualquer coisa que se quebrou ou se perdeu, uma vez um prazer que a vossa consciência e a coluna vertebral reprovam, outra vez a marcha dos negócios públicos. Isto sem contar as penas de coração. E assim sucessivamente. Uma nuvem que se dissipa e outra que se forma logo. Apenas um dia em cem de plena felicidade e cheio de sol. E sois desse pequeno número que é feliz! Quanto aos outros homens, envolve-os a noite estagnante.
Os espíritos reflectidos usam pouco desta locução: os felizes e os infelizes. Neste mundo, evidentemente vestíbulo de outro, não há felizes.
A verdadeira divisão humana é esta: os iluminados e os tenebrosos.
Diminuir o número dos tenebrosos e aumentar o dos iluminados, eis o fim. É por isso que nós gritamos: ensino, ciência! Aprender a ler,
Quer-te Muito a Tua Mulherzinha
Recebi ontem à noite o telegrama que mandaste da Foz. Desejo que tivesses encontrado tudo bem na nossa casinha. Espero com ansiedade a primeira cartinha tua que já cá devia estar. Estou a escrever-te sentada a uma janela com o papel em cima dum livro e o tinteiro no chão; é 1 hora e meia, a hora de ir até às galinhas a ver se já havia algum ovo.
Há quanto tempo isso foi! Escreve para cá só até ao dia 23 ou 24 porque dia 26 pela manhã partimos para Vila Viçosa. O carnaval é dia 8 e já vejo que para minha desgraça o vou passar no covil enjaulada como as feras perigosas. Pouca sorte a da pobre Bela! Não posso ainda hoje falar com o advogado nem amanhã que é domingo, de forma que só segunda-feira te poderei dizer qualquer coisa a esse respeito. Há só um comboio dia sim dia não para Lisboa de forma que não estranhes nem te inquietes por alguma pequena demora na correspondência.
Aí vai um belo soneto que as saudades tuas me trouxeram ontem; só quando estou triste sei fazer versos com jeito como esses. Provavelmente não gostas…
A Influência dos Livros
Não há dúvida nenhuma: se um leitor não se tem firme nos pés diante de certos livros e de certos autores, acontece-lhe como quando a gente se debruça a uma alta janela e olha com adesão exagerada para o fundo: atira-se dali abaixo. E coisa curiosa: tanto monta que o aceno venha dum clássico, como dum romântico, como dum realista, como dum futurista. Desde que a mão feiticeira que o faz saiba da sua poda, um homem, que ainda ontem era enforcado de Villon, passa a satânico de Baudelaire sem qualquer cerimónia.