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O Dom da Simpatia

Ter o dom da simpatia. É das coisas que mais se invejam. Tem, como tudo, a sua técnica, mas os efeitos são sempre problemáticos. Há o sujeito amável, como o distante, o inteligente como o mediano, o modesto ou o vaidoso, o convincente como o retraído, o irónico ou o sério e assim por diante, com todas as qualidades que se quiserem e o seu contrário. Num caso e noutro pode-se ser «simpático» ou «antipático», captarmos os favores dos outros ou a sua repulsa. Não é fácil determinar o que realmente decide de uma adesão. E se fosse simplesmente o ter-se «personalidade»? O assumir-se verticalmente aquilo que se é? Isso ao menos imporia uma deferência ou «respeito». Lembra-se uma frase de um antigo tragediógrafo latino (Ácio) – que nos odeiem desde que nos temam. Não é evidentemente o caso aqui. Mas é qualquer coisa de parecido: que se seja o que se for, desde que se assuma isso em responsabilidade. O resto são apenas formas de «simpatia», ou seja, do «sentir-se com». E de todas elas, a base delas – ou seja, a admiração. Porque se não tem simpatia se não houver seja o que for de admiração: tem-se apenas tolerância ou piedade.

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O Mundo Só se Dá para os Simples

Minha gula pelo mundo: eu quis comer o mundo e a fome com que nasci pelo leite — esta fome quis se estender pelo mundo e o mundo não se queria comível. Ele se queria comível sim — mas para isso exigia que eu fosse comê-lo com a humildade com que ele se dava. Mas fome violenta é exigente e orgulhosa. E quando se vai com orgulho e exigência o mundo se transmuta em duro aos dentes e à alma. O mundo só se dá para os simples e eu fui comê-lo com o meu poder e já com esta cólera que hoje me resume. E quando o pão se virou em pedra e ouro aos meus dentes eu fingi por orgulho que não doía eu pensava que fingir força era o caminho nobre de um homem e o caminho da própria força. Eu pensava que a força é o material de que o mundo é feito e era com o mesmo material que eu iria a ele. E depois foi quando o amor pelo mundo me tomou: e isso já não era a fome pequena, era a fome ampliada. Era a grande alegria de viver — e eu pensava que esta sim,

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O Medo como Orientador da Nossa Vida

Uma vez que estamos sós no mundo, ou pelo menos não tão sós como gostaríamos de estar, temos o dever de dominar as nossas explosões, de fazer com que as explosões inevitáveis da nossa maldade ou da nossa bondade paradoxais vão aproximativamente no sentido do fim aproximativo. Quanto ao fim, talvez não seja lá muito importante determiná-lo com a precisão sádica que encontramos no sistema do mundo e no destino quando ambos se associam para determinar a posição do homem no espaço e no tempo.
Devemos evidentemente batermo-nos contra os dois, e como o mais importante é manter a direcção justa do fim talvez errado, é-nos necessário aguçar a nossa lucidez a fim de a tornarmos cortante como uma lâmina, acerada como uma seta, percuciente como uma punção. É graças a essa lucidez que funciona a nossa consciência, que não passa afinal de uma transcrição idílica do nosso medo, porque o medo lembra-nos infatigavelmente a direcção justa, e se sufocarmos o nosso medo, perderemos a possibilidade de nos orientarmos numa direcção determinada e daremos aqui e ali lugar a uma série de estúpidas explosões privadas, causando os piores estragos para um mínimo de resultados. É por isso que devemos conservar dentro de nós o nosso medo como um porto sempre livre de gelos que nos ajude a passar o Inverno,

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A Base da Actividade

Em nenhuma actividade é bom sinal se, de início, existe o desejo de vencer – emulação, violência, ambição, etc. Deve começar-se por amar a técnica de cada actividade por si própria, como se ama a vida pelo simples parazer de viver.
Nisto consiste a verdadeira vocação e a promessa de êxito sério. Em seguida, poderão vir todas as paixões sociais imagináveis, para reanimar o puro amor da técnica – têm mesmo que vir -, mas começar por elas é indício de que se deseja perder tempo. Em suma, é preciso amar uma actividade, como se mais nada existisse no mundo, por si própria.
É por isso que o momento significativo é o do início: porque, então, é como se o mundo (paixões sociais) não existisse ainda no que diz respeito a essa actividade.
Também porque toda a gente é capaz de se interessar por um trabalho que se sabe quanto rende; o difícil é apaixonarmo-nos gratuitamente.

A Nossa Vitória de cada Dia

Olhe para todos ao seu redor e veja o que temos feito de nós e a isso considerado vitória nossa de cada dia. Não temos amado, acima de todas as coisas. Não temos aceite o que não se entende porque não queremos passar por tolos. Temos amontoado coisas e seguranças por não nos termos um ao outro. Não temos nenhuma alegria que não tenha sido catalogada. Temos construído catedrais, e ficado do lado de fora pois as catedrais que nós mesmos construímos, tememos que sejam armadilhas. Não nos temos entregue a nós mesmos, pois isso seria o começo de uma vida larga e nós a tememos.
Temos evitado cair de joelhos diante do primeiro de nós que por amor diga: tens medo. Temos organizado associações e clubes sorridentes onde se serve com ou sem soda. Temos procurado nos salvar mas sem usar a palavra salvação para não nos envergonharmos de ser inocentes. Não temos usado a palavra amor para não termos de reconhecer a sua contextura de ódio, de amor, de ciúme e de tantos outros contraditórios. Temos mantido em segredo a nossa morte para tornar a nossa vida possível. Muitos de nós fazem arte por não saber como é a outra coisa.

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A Cegueira do Amor

Desde que se ame, o mais sensato dos homens não vê nenhum objecto tal como é. Exagera para menos as suas próprias vantagens e para mais os menores favores do objecto amado. Os temores e as esperanças transformam-se imediatamente em algo de romanesco. Deixa de atribuir seja o que for ao acaso; perde o sentido das probabilidades; uma coisa imaginada é uma coisa existente que influi na sua felicidade.
Um signo aterrador de que se está a perder a cabeça é que, ao pensar em qualquer facto, por minúsculo e difícil de observar que seja, o vejamos branco e o interpretemos em favor do nosso amor; um instante depois, verificamos que na realidade era negro, e mesmo assim ainda o achamos favorável ao nosso amor.
É nessa altura que uma alma presa de mortais incertezas sente vivamente a necessidade de um amigo; mas para um amante já não há amigos, como muito bem se sabia nas cortes. Eis a fonte da única espécie de indiscrição que uma mulher é capaz de perdoar.

A Busca das Coisas

Só o combate nos apraz, mas não a vitória: gostamos de ver os combates de animais, não o vencedor a encarniçar-se sobre o vencido; que desejámos ver, senão o fim da vitória? E logo que ela é alcançada, ficamos saciados. Assim no jogo, assim na busca da verdade. Gostamos de ver, nas disputas, a luta de opiniões; mas não de contemplar a verdade encontrada: para a saudarmos gostosamente temos de vê-la nascer da disputa. Do mesmo modo, nas paixões, o que dá prazer é assistir ao combate de duas contrárias; mas quando uma delas domina, tudo se reduz a brutalidade. Nunca buscamos as coisas, mas sim a busca das coisas.

O Saudável Receio Como Base de Felicidade no Amor

Sempre uma pequena dúvida a acalmar, eis o que faz a sede de todos os instantes, eis o que constitui a vida do amor feliz. Como o receio nunca o abandona, os seus prazeres não podem nunca entediar. O carácter desta felicidade é a sua extrema seriedade.

Verdade e Mentira

Sei que há imensas coisas na história de uma família que são pura fantasia. Qualquer família. as histórias vão passando de geração em geração e a verdade vai-se perdendo. Quem conta um conto acrescenta um ponto, como se costuma dizer. Alguns talvez achem que isto significa que a verdade não consegue competir com a mentira. Mas eu cá não acredito nisso. Cá para mim, depois de todas as mentiras terem sido contadas e esquecidas, a verdade perdura ainda. Não anda a fugir de um lado para o outro e não muda com o passar do tempo. É impossível corrompê-la, assim como é impossível salgar o sal. É impossível corrompê-la porque é pura, sem adornos. É a matéria de que são feitas as nossas palavras. Já ouvi compará-la à rocha – talvez a bíblia – e não discordo dessa ideia. Mas a verdade permanecerá, mesmo quando a rocha tiver desaparecido. Tenho a certeza que certas pessoas discordam isto. Bastantes, aliás. Mas nunca cheguei a perceber em que é que nenhuma delas acredita.

A Sociedade Destroça o Indivíduo

Trata-se dum conjunto, dum todo, a sociedade, e, podre, uma vez que é preciso contar com ela ao mesmo tempo que se não deve contar. Quer dizer, é como um conjunto estável, composto por elementos instáveis. Ora é impossível viver no interior, sem sofrer essa instabilidade, esse monte de mentiras. Surge então o medo de utilizar o mínimo pormenor que participe dessa instabilidade. É a revolta. Você duvida do valor das palavras, dos gestos, do que representam as palavras, das ideias, das simples associações de ideias, dos sonhos e até da realidade, das sensações mais claras, mais agudas. Você duvida mesmo da sua dúvida, da organização que toma, da forma que adopta. Não lhe fica nada, nada. Já não é nada, é um camaleão, um eco, uma sombra. Isso é obra da sociedade, compreende?

J.-M. G.

Faz da Sociedade uma Devedora

O homem vem ao mundo com dívidas e morre com dívidas ainda maiores. Nasce com dívidas porque muitos se sacrificaram antes dele para lhe dar as condições de vida de que pode usufruir. Médicos, cientistas, professores, operários, prepararam muitos dos confortos de que ele beneficia; e houve homens e mulheres que lutaram e morreram pela sua liberdade. A sua sáude, a sua capacidade criadora, a sua inteligência, herdou-os; são uma dádiva da humanidade. Morre com dívidas ainda maiores porque durante a vida foi ajudado por muitos. Ele próprio deve contribuir com qualquer coisa enquanto está no mundo como um ser criador, e deve fazer progredir a arte de viver por ter vivido. Faça o bem se quer ser bem sucedido. Esta á a suprema lei da vida. Esteja entre os grandes servidores, os benfeitores da humanidade. É o único caminho para o sucesso. «O que deres ser-te-á tornado.» Faça da sociedade uma devedora e poderá encontrar o seu lugar entre os imortais.

O Mercado Pode Tornar-se uma Ditadura

A diferença (entre a ditadura e o capitalismo) é que não é a ditadura como nós conhecemos. É o que eu chamo de «capitalismo autoritário». A ditadura tinha cara, e nós dizíamos é aquela, ou aqueles militares, o Hitler, o Franco, o Pinochet, mas agora não tem cara. E como não tem cara não sabemos contra quem lutar. Não há contra quem lutar. O mercado não tem cara, só tem nome. Está em toda a parte e não podemos identificá-lo, dizer «és tu». Mesmo as pessoas que lutaram contra a ditadura, entrando na democracia acham que não têm mais que lutar. E os problemas estão todos aí. O mercado pode tornar-se uma ditadura.

A Miséria do Divertimento

Se o homem fosse feliz, sê-lo-ia tanto mais quanto menos divertido, como os Santos e Deus. – Sim; mas não sendo feliz pode animar-se pelo divertimento? – Não; porque vem doutro sítio e de fora; e assim é dependente e, portanto, sujeito a ser perturbado por mil acidentes que tornam as aflições inevitáveis.
(…) A única coisa que nos consola das nossas misérias é o divertimento, e contudo é a maior das nossas misérias. Porque é isto que nos impede principalmente de pensar em nós, e que nos faz perder insensivelmente. Sem isso, estaríamos no tédio, e este tédio levava-nos a procurar um meio mais sólido de sair dele. Mas o divertimento distrai-nos e faz-nos chegar insensivelmente à morte.

É preferível a tua própria tarefa, embora realizada com falhas, do que te imiscuíres em tarefa alheia, embora a faças de maneira excelente.

A Ordem e a Variedade

Não basta mostrar à alma muitas coisas, é necessária mostrá-las com ordem, porque nesse caso lembramo-nos daquilo que vimos e começamos a imaginar o que veremos; a nossa alma alegra-se pelo seu alcance e pela sua capacidade de penetração; mas numa obra onde não existe qualquer ordem, a alma vê vacilar em cada instante quem deseja introduzir-se nela. A sequência que o autor cria confunde-se com aquela que nós fazemos; a alma não retém nada, não prevê nada; é humilhada pela confusão das suas ideias, pela inutilidade que lhe resta; encontra-se verdadeiramente fatigada e não pode apreciar qualquer prazer.
(…) Mas se a ordem é necessária às coisas, é também necessária a variedade: sem ela a alma esmorece, porque as coisas semelhantes lhe parecem as mesmas e, se uma parte de um quadro se assemelhasse a outra que tivéssemos visto, esse objecto seria novo sem o parecer e não proporcionaria qualquer prazer. E, como a beleza das obras de arte, tal como a da natureza, consiste no prazer que nos proporciona, é necessário torná-la o mais possível apta a variar esses prazeres; é necessário fazer a alma ver coisas que nunca viu; é necessário que o sentimento que lhe propocionamos seja diferente do que tem sentido até ali.

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O Ideal é a Vida

A nossa vida sem ideais nenhuns, toda quotidiana, quer no presente quer pelo pensamento do futuro. Perdendo a religião, nada reavemos para a substituir; nem arte, porque a arte é, como religião, para muito poucos; nem ciência, que é para menos ainda, nem filosofia, que é para quase nenhuns.
Não me refiro à conducta mas a ideais. Uma sociedade nunca pode ser grande nem pura sem ideais, porque na moral que nasce, na moral para uso quotidiano e de quotidiana origem, caberá uma certa decência, uma honestidade, razoáveis instintos humanitários, mas não uma nobreza de qualquer espécie, não uma grandeza de carácter. E o ponto importante é este. O ideal é a vida; vamos perdendo o ideal, e a nossa vitalidade vai diminuindo tristemente.

Originalidade Medíocre

Não procureis a originalidade. Ela acompanha, o mais das vezes, inteligências medíocres. Só tem direito de ser original quem não procura sê-lo. O génio não é feito apenas de originalidade. Esta precisa de ser a expressão do pensamento ou da aspiração universal. A originalidade, por si só, é qualidade negativa; precisa de juntar-se a outra para ter valor, e este valor dependerá da qualidade positiva que a acompanha.

Ages Impelido por Mil Coisas

Dizes-te livre e todos os dias ages impelido por mil coisas. Vês uma mulher e ama-la, morres de amor por ela; serás livre de acalmar esse sangue que pulsa, de serenar essa cabeça ardente, de refrear esse coração, de aplacar esses ardores que te devoram? Serás livre de pensar? Mil cadeias te retêm, mil aguilhões te impelem, mil entraves te fazem parar. Vês um homem pela primeira vez, há um dos seus traços que te choca, e durante a tua vida sentes aversão por esse homem, que talvez tivesses amado se tivesse o nariz mais pequeno. Tens mau estômago, e és brutal para com aquele que terias acolhido com benevolência. E de todos estes factos derivam, ou neles se encadeiam, também fatalmente, outras séries de factos, de que outros derivam por sua vez.