A Verdadeira Leitura
As leituras que a gente faz em busca do saber não são, na verdade, leituras. As boas, as fecundas, as prazenteiras, são as que a gente faz sem pensar em instruir-se.
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4483 resultadosDiferentes Caminhos para uma Felicidade Sempre Insuficiente
O objectivo para o qual o princípio do prazer nos impele — o de nos tornarmos felizes — não é atingível; contudo, não podemos — ou melhor, não temos o direito — de desistir do esforço da sua realização de uma maneira ou de outra. Caminhos muito diferentes podem ser seguidos para isso; alguns dedicam-se ao aspecto positivo do objectivo, o atingir do prazer; outros o negativo, o evitar da dor. Por nenhum destes caminhos conseguimos atingir tudo o que desejamos. Naquele sentido modificado em que vimos que era atingível, a felicidade é um problema de gestão da libido em cada indivíduo. Não há uma receita soberana nesta matéria que sirva para todos; cada um deve descobrir por si qual o método através do qual poderá alcançar a felicidade. Toda a espécie de factores irá influenciar a sua escolha. Depende da quantidade de satisfação real que ele irá encontrar no mundo externo, e até onde acha necessário tornar-se independente dele. Por fim, na confiança que tem em si próprio do seu poder de modificar conforme os seus desejos. Mesmo nesta fase, a constituição mental do indivíduo tem um papel decisivo, para além de quaisquer considerações externas. O homem que é predominantemente erótico irá escolher em primeiro lugar relações emocionais com os outros;
A Audácia é Má no Conselho e boa na Execução
A audácia é filha da ignorância e da rudeza, e muito inferior a todos os outros dons. Ela fascina, porém, atando-lhes os pés e as mãos, aos que são débeis de entendimento e falhos de coragem que formam a maioria; e prevalece até sobre os homens sábios nas horas da fraqueza. Por isso vemos que ela fez maravilhas nos Estados populares, menos do que nos governados por Senados ou por Príncipes; e muito mais ao primeiro arranco das pessoas audaciosas, do que depois, porque a audácia é má cumpridora de promessas.
(…) Certamente aos homens de grande entendimento, os audacciosos dão um espectáculo de muito gozo; e até mesmo para o vulgo, a audácia não deixa de ser ridícula. Porque se o absurdo é o fundamento do riso não duvideis de que uma grande audácia raramente existe sem absurdo.
(…) Deve ser bem considerado que a audácia é sempre cega, para não ver os perigos e as inconveniências. Por isso ela é má no conselho e boa na execução; para bem aproveitar e utilizar as pessoas audacciosas é preciso que elas nunca estejam na chefia do comando, mas em segundo lugar, sob a direcção de outros. Porque no conselho é bom ver os perigos,
A Distração e a Categorização da Vida
Mas tu, meu amgo, onde estás? Sobre a tua sorte, quanta coisa fascinante e absurda imaginámos! No entanto, tudo isso que imaginámos, vê tu, quantas vezes o não foi tanto como resposta para as nossas interrogações, como um motivo para nos distrairmos mais ainda… Porque a distracção é a parte mais rebelde e a mais insidiosa da nossa condição. Ela infilta-se-nos não apenas no nosso consentimento, nas tréguas que nos damos, mas até mesmo no que é uma conquista da nossa rara grandeza.
A arte, o heroísmo, a própria evidência da vertigem, do milagre, os sonhos da redenção e da nobreza, tudo o que é da nossa profunda unidade, um nada o reabsorve em solidez, em moeda de compra-e-venda para a transaccionarmos com os outros no mercado da vaidade, do passatempo, na grande feira da vida. Há uma distância infinita entre a aparição da verdade, a imediata evidência de seja o que for, e até mesmo o seu reconhecimento: quando olhamos a evidência pela segunda vez, já ela está alinhada, classificada, endurecida entre as coisas que nos cercam. Eis porque nós ignoramos ou esquecemos depressa a face do que há de estranho nos factos mais banais: no da vida,
Teorias Precipitadas
É vulgar uma teoria ser resultado da precipitação de um entendimento impaciente que, desejoso de se ver livre dos fenómenos, os substitui por imagens, conceitos, ou com frequência por meras palavras. Pressente-se, e por vezes vê-se até com clareza, que se trata apenas de expedientes. Mas não é sabido que a paixão e o partidarismo se deixam atrair pelos expedientes? E com toda a razão, porque tanta falta lhes fazem.
(…) Avançar precipitadamente para o fim a alcançar, sem reflectir sobre os meios. Como se, para poder ajudar tão cedo quanto possível uma cirança de berço, lhe quiséssemos matar o pai.
Se atentarmos em certos problemas de Aristóteles ficamos supreendidos com o dom de observação e com a imensidade de coisas que não escapavam ao olhar dos gregos. E contudo cometiam o erro da precipitação, já que saltavam imediatamente dos fenómenos para a explicação, de onde resultaram formulações teoréticas totalmente inadequadas. Trata-se todavia de um erro geral que ainda hoje continua a ser cometido.
Somos para Nós mesmos Objecto de Descontentamento
Se os outros se observassem a si próprios atentamente como eu achar-se-iam, tal como eu, cheios de inanidade e tolice. Não posso livrar-me delas sem me livrar de mim mesmo. Estamos todos impregnados delas, mas os que têm consciência de tal saem-se, tanto quanto eu sei, um pouco melhor.
A ideia e a prática comuns de olhar para outros lados que não para nós mesmos de muito nos tem valido! Somos para nós mesmos objecto de descontentamento: em nós não vemos senão miséria e vaidade. Para não nos desanimar, a natureza muito a propósito nos orientou a visão para o exterior. Avançamos facilmente ao sabor da corrente, mas inverter a nossa marcha contra a corrente, rumo a nós próprios, é um penoso movimento: assim o mar se turva e remoinha quando em refluxo é impelido contra si mesmo.
Cada qual diz: «Olhai os movimentos do céu, olhai para o público, olhai para a querela deste homem, para o puso daquele, para o testamento daqueloutro; em suma, olhai sempre para cima ou para baixo, ou para o lado, ou para a frente, ou para trás de vós.»
O mandamento que na antiguidade nos preceituava aquele deus de Delfos ia contra esta opinião comum: «Olhai para dentro de vós,
A Adopção de Novas Ideias
Que um ou vários homens inventem uma nova ideia ou um novo sentimento não faz alterar o cariz da história, o tom dos tempos, como a cor do Atlântico não muda porque um pintor de marinhas limpa nele o seu pincel carregado de vermelhão. Mas se, de súbito, uma massa ingente de homens adopta aquela ideia e vibra com aquele sentimento, então a ária da história, a face dos tempos tinge-se de um novo colorido. Pois bem: as massas ingentes de homens não adoptam uma ideia nova, não vibram com o seu peculiar sentimento simplesmente porque se lhes faça prédicas. É preciso que essa ideia e esse sentimento se achem neles pré-formados, inatos, prontos. Sem essa predisposição radical, espontânea da massa, todo o pregador seria um pregador no deserto.
Daqui que as mudanças históricas supõem o nascimento de um tipo de homem diferente em mais ou menos do que antes havia; isto é, supõem a mudança de gerações.
O Pessimismo é Excelente para os Inertes
O Pessimismo é uma teoria bem consoladora para os que sofrem, porque desindividualiza o sofrimento, alarga-o até o tornar uma lei universal, a lei própria da Vida; portanto lhe tira o carácter pungente de uma injustiça especial, cometida contra o sofredor por um Destino inimigo e faccioso! Realmente o nosso mal sobretudo nos amarga quando contemplamos ou imaginamos o bem do nosso vizinho – porque nos sentimos escolhidos e destacados para a Infelicidade, podendo, como ele, ter nascido para a Fortuna. Quem se queixaria de ser coxo – se toda a humanidade coxeasse? E quais não seriam os urros, e a furiosa revolta do homem envolto na neve e friagem e borrasca de um Inverno especial, organizado nos céus para o envolver a ele unicamente – enquanto em redor toda a humanidade se movesse na benignidade de uma Primavera? (…) O Pessimismo é excelente para os Inertes, porque lhes atenua o desgracioso delito da Inércia.
Deus Precisa de Companhia
A minha proposição inicial, que me atrevo a considerar indiscutível, é de que Deus criou o universo porque «se sentia» só. Em todo o tempo antes, isto é, desde que a eternidade começara, «tinha estado» só, mas, como não «se sentia» só, não necessitava inventar uma coisa tão complicada como é o universo. Com o que Deus não contara é que, mesmo perante o espectáculo magnífico das nebulosas e dos buracos negros, o tal sentimento de solidão persistisse em atormentá-lo. Pensou, pensou, e ao cabo de muito pensar fez a mulher, «que não era à sua imagem e semelhança». Logo, tendo-a feito, viu que era bom. Mais tarde, quando compreendeu que só se curaria definitivamente do mal de estar só deitando-se com ela, verificou que era ainda melhor. Até aqui tudo muito próprio e natural, nem era preciso ser-se Deus para chegar a esta conclusão. Passado algum tempo, e sem que seja possível saber se a previsão do acidente biológico já estava na mente divina, nasceu um menino, esse sim, «à imagem e semelhança de Deus». O menino cresceu, fez-se rapaz e homem. Ora, como a Deus não lhe passou pela cabeça a simples ideia de criar outra mulher para a dar ao jovem,
Alegra-te pelo facto de não te ser mais facultativo aquilo que somente para teu prejuízo
Alegra-te pelo facto de não te ser mais facultativo aquilo que somente para teu prejuízo poderia ser.
Notas para uma Regra de Vida
1. Cada um de nós não tem de seu nem de real senão a sua própria individualidade.
2. Aumentar é aumentar-se.
3. Invadir a individualidade alheia é, além de contrário ao princípio fundamental, contrário (por isso mesmo também) a nós mesmos, pois invadir é sair de si, e ficamos sempre onde ganhamos (Por isso o criminoso é um débil, e o chefe um escravo.) (O verdadeiro forte é um despertador, nos outros, de energias deles. O verdadeiro mestre é um mestre de o não acompanharem.)
4. Atrair os outros a si é, ainda assim, o sinal da individualidade.
Em que Medida o Homem Activo é Preguiçoso
Creio que cada um deve ter uma opinião própria sobre todas as coisas, acerca das quais são possíveis opiniões, porque ele mesmo é uma coisa singular, única, que ocupa uma posição nova, nunca vista, em relação a todas as outras coisas. Mas a preguiça, que jaz no fundo da alma do homem activo, impede-o de tirar água do seu próprio poço. Com a liberdade das opiniões passa-se o mesmo que com a saúde: ambas são individuais, nem de uma nem de outra se pode formular um conceito universalmente válido. Aquilo de que um indivíduo necessita para a sua saúde já é motivo de doença para outro, e muitos caminhos e meios para se chegar à liberdade de espírito podem ser considerados por naturezas superiormente desenvolvidas como caminhos e meios que afastam da liberdade.
Horizontes de Eternidade
A morte não é um acontecimento da vida. A morte não pode ser vivida. Caso se compreenda por eternidade não uma duração temporal infinita, mas a intemporalidade, quem vive no presente é quem vive eternamente. A nossa vida é tanto mais sem fim quanto mais o nosso campo de visão não tem limites.
A Nossa Personalidade Deve Ser Indevassável
A nossa personalidade deve ser indevassável, mesmo por nós próprios: daí o nosso dever de sonharmos sempre, e incluirmo-nos nos nossos sonhos, para que nos não seja possível ter opiniões a nosso respeito.
E especialmente devemos evitar a invasão da nossa personalidade pelos outros. Todo o interesse alheio por nós é uma indelicadez ímpar. O que desloca a vulgar saudação – como está? – de ser uma indesculpável grosseria é o ser ela em geral absolutamente oca e insincera.
Os Juízos Ligeiros da Imprensa
Incontestavelmente foi a imprensa, com a sua maneira superficial e leviana de tudo julgar e decidir, que mais concorreu para dar ao nosso tempo o funesto e já irradicável hábito dos juízos ligeiros. Em todos os séculos se improvisaram estouvadamente opiniões: em nenhum, porém, como no nosso, essa improvisação impudente se tornou a operação corrente e natural do entendimento. Com excepção de alguns filósofos mais metódicos, ou de alguns devotos mais escrupulosos, todos nós hoje nos desabituamos, ou antes nos desembaraçamos alegremente do penoso trabalho de reflectir. É com impressões que formamos as nossas conclusões. Para louvar ou condenar em política o facto mais complexo, e onde entrem factores múltiplos que mais necessitem de análise, nós largamente nos contentamos com um boato escutado a uma esquina. Para apreciar em literatura o livro mais profundo, apenas nos basta folhear aqui e além uma página, através do fumo ondeante do charuto.
O método do velho Cuvier, de julgar o mastodonte pelo osso, é o que adoptamos, com magnífica inconsciência, para decidir sobre os homens e sobre as obras. Principalmente para condenar, a nossa ligeireza é fulminante. Com que esplêndida facilidade exclamamos, ou se trate de um estadista, ou se trate de um artista: «É uma besta!
Literatura Real e Literatura Aparente
Em todas as épocas, existem duas literaturas que caminham lado a lado e com muitas diferenças entre si: uma real e outra apenas aparente. A primeira cresce até se tornar uma leitura permanente. Exercida por pessoas que vivem para a ciência ou para a poesia, ela segue o seu caminho com seriedade e tranquilidade, produzindo na Europa pouco menos de uma dúzia de obras por século, que, no entanto, permanecem. A outra, exercida por pessoas que vivem da ciência ou da poesia, anda a galope, com rumor e alarido por parte dos interessados, trazendo anualmente milhares de obras ao mercado. Após poucos anos, porém, as pessoas perguntam: Onde estão essas obras? Onde está a sua glória tão prematura e ruidosa? Por isso, pode-se também chamar esta última de literatura que passa, e aquela, de literatura que fica.
Não Há Descoberta sem Transgressão
Se pensarmos quais são as qualidades que levam a fazer descobertas, damos de caras com: imunidade a escrúpulos e inibições tradicionais, coragem, igual percentagem de espírito empreendedor e de espírito de destruição, exclusão de considerações de ordem moral, paciência para regatear as mínimas vantagens, tenacidade na espera pela via que conduz aos objectivos, se necessário for, e o respeito pela medida e pelo número, a mais nítida expressão de desconfiança em relação a tudo o que é incerto.
Não se Consegue ser Exterior à Nossa Própria Indiferença
A dificuldade da existência estava precisamente neste problema concreto: por diversas vezes Walser se vira, ao longe, alegre, e também de longe observara a sua própria tristeza ou irritação. Nada de mais. Mas o que nunca conseguira era ser exterior à indiferença; ser exterior a si nos momentos, inúmeros, em que se encontrava neutro face às coisas, inerte e em estado de espera perante a possibilidade de um acto ou do seu contrário. Quanto mais intensidade existia no corpo, mais fácil era afastar-se, ser testemunha de si próprio. As dificuldades de observação privilegiada, de uma existência que lhe pertencia, surgiam assim, de um modo extremo, quando a intensidade dos sentimentos era quase nula. Se ele já lá não estava – na existência – como se poderia ainda afastar mais?
Mas o que era concretamente este lá, este outro sítio que por vezes parecia ser o seu centro outras vezes o seu oposto? Sobre a localização geral desse lá, Walser não tinha dúvidas: era o cérebro. Era ali que tudo se passava ou que tudo o que se passava era observado. Ali fazia, e ali via-se a fazer. Como qualquer louco normal, pensou Walser, e sorriu da fórmula.
Gonçalo M.
A Minha Biblioteca é o Meu Harém
Olho para as centenas de livros no meu gabinete e apercebo-me que não toquei na maior parte deles depois de os ter lido ou dado uma vista de olhos pela primeira vez. Mas nem sequer considero a hipótese de me desfazer deles – então, e se eu quiser abrir este ou aquele um dia destes? Gastei o meu último dinheiro tanto a adquirir novos livros como em prostitutas. Comprar livros novos é um prazer muito diferente do prazer de ler: examinar, cheirar, folhear um livro novo é a própria felicidade.
Os livros dão-me confiança pela sua disponibilidade, de que posso sempre aproveitar-me se quiser. O mesmo acontece com as mulheres – preciso de muitas delas e têm de se abrir à minha fente como os livros. Na verdade, para mim, os livros e as mulheres são semelhantes de muitas formas. Abrir as páginas de um livro é o mesmo que afastar as pernas de uma mulher – o conhecimento revela-se à nossa vista.
Todos os livros têm um odor próprio: quando abrimos um livro e cheiramos, cheiramos a tinta, e é diferente em cada livro. Rasgar as páginas de um livro é um prazer inenarrável. Mesmo um livro estúpido me dá prazer quando o abro pela primeira vez.
O Absoluto do Ser
– Deus não é bom?
– Não, para falar com propriedade, Deus não é bom: é. Bom, mau, são pobres palavras que se aplicam a um conjunto de regras respeitantes a alguns pormenores da nossa vida material. Porque é que Deus seria limitado pelas nossas pobres palavras e valores? Não, Deus não é bom. É mais do que isso. É a forma mais rica, mais completa, mais poderosa do ser, de qualquer maneira. Torna concreta a abstracção mesmo da forma do ser. E penso que o «envisagement» do ser não podia ser possível se Deus não lhe tivesse dado anteriormente o seu estado. Deus é a criação. É pois um princípio inextinguível, não orientado, a própria vida. Lembrem-se das palavras: «Eu sou Aquele que sou». Nenhuma outra palavra humana compreendeu e relatou melhor a forma divina. Intemporal, não, nem sequer intemporal e infinita. O princípio. O facto de que há qualquer coisa no lugar onde não havia nada.
– Mas então, Deus não tem necessidade…
– E até mesmo para lá de toda a expressão. Se quiser, eu sou Deus. Não há dúvida a sustentar, pergunta a fazer. Você existe. Portanto é Deus. Você não pode existir de outro modo.